A militância dementadora age conforme a ação do outro, não se afirma. Por isso, constrói sujeitos que não conseguem assumir posições para além do outro como referência – não se afirmam, não são ativos.
O que é este ciberativismo? É o que eu tento explicar logo abaixo, com base no que vejo, leio e observo, tanto na internet, como nos espaços em que as pessoas da internet acabam se encontrando e frequentando.
Pós-modernidade e fragmentação
Não gosto do termo “pós-modernidade”. Me soa como uma tentativa de dizer que houve uma cisão no mundo e, de repente, nossos problemas da modernidade foram superados, abrindo espaço para novos problemas, típicos de nossa era.
Não acredito que isso seja verdade, no entanto, não posso negar que a análise dos críticos da pós-modernidade faz sentido em um ponto: a fragmentação. Talvez, com o galopante desengajamento e com a quebra das referências morais, culturais e políticas claras (como na guerra fria, com o comunismo de um lado e o capitalismo de outro), seja mais fácil entender o que é esta fragmentação.
A quebra das grandes referências dito anteriormente é sinal de uma mudança um pouco mais profunda em relação à experiência da vida cotidiana: os grandes referenciais eram chamados de grandes porque emergiam de uma filosofia com fôlego para o universal. Se você perguntar o que é uma filosofia com fôlego para o universal, eu responderei diretamente: uma filosofia que quer se pôr como verdade universal (e como transformador universal da realidade).
Por exemplo: o marxismo, teoria que dava suporte para a maioria dos movimentos de emancipação de grupos explorados, parte de um princípio universal de que a luta de classes é o motor da História (esta com inicial maiúscula).
Conseguir reduzir a história em princípios básicos era conseguir agrupar forças para lutar contra poucos alvos. Estes, por sua vez, seriam os alvos privilegiados, aqueles que, depois de mortos, liberariam toda a avenida da organização do povo para o povo.
Qual foi a mudança na dita pós-modernidade? Esses referenciais universais foram embora, como já dito, mas a própria filosofia que os mantinha também perdeu seu prestígio (de certa forma, o próprio senso comum erigia-se a partir dessa filosofia e também se modificou com a passagem da modernidade para a pós-modernidade). É importante entender que a teoria sobre a pós-modernidade não é universal, mas tem um ponto fixo: o capitalismo globalizado. Por isso muitos sujeitos de grupos sociais distintos experimentam o mundo fora desta sanha hedonista fragmentária (como os evangélicos), mas mesmo assim, a existência das igrejas neopetecostais e sua função em grandes centros urbanos ainda pode ser relacionada com uma válvula de escape em um mundo sem moral.
Quando as filosofias com objetivo universal perdem sua legitimidade, as filosofias locais, microscópicas, ganham a guerra da hegemonia. Mas elas não ganham somente pela incapacidade das filosofias modernas: a pós-modernidade é um estado cultural hedonista, consumista e cínico. Não há espaço para nenhuma rigidez universal, para nenhum engajamento a longo prazo, para nada muito fixo. As tentativas de criar referências locais se encaixam muito bem nisso: elas são trocáveis, escolhíveis, encaixam perfeitamente em nós. Nós podemos gozar plenamente com elas, ao mesmo tempo, nunca iremos nos preocupar em encontrar o diferente dentro dos grupos que as filosofias locais/identitárias suportam.
Mas o que são essas “filosofias locais”? Continue lendo abaixo.
Vivência
No tópico acima, eu disse um termo errado. Não existem “filosofias locais”, pelo menos não no sentido que estamos tratando. O que existe é uma ideologia – no sentido marxista do termo – individualizante que, ao mesmo tempo em que retira o indivíduo da massa amorfa, somente o retira para depois colocá-lo de volta.
Por que eu digo isso? Parece um paradoxo, não?
Vejamos, a vivência é a vida que cada indivíduo viveu em sua particularidade local (esta é a parte interessante) transformada em coordenadas para tomadas de decisão. O que é viver algo em sua particularidade local? É viver algo que, de certa forma, só você viveria.
Por exemplo, um rapaz gay teria vivido uma vida que só rapazes gays podem viver. A vida de rapaz gay e todos os seus dissabores é única e exclusivamente uma experiência de pessoas gays (reparem, não é única e exclusivamente do rapaz gay em questão, mas de todo o grupo de indivíduos que compõem a classificação “gay”).
A vivência retira o indivíduo da massa amorfa – pois ele poderá, finalmente, bradar uma experiência que é só sua – ao mesmo tempo em que o coloca de volta em outra massa amorfa – pois essa experiência que é só sua é, na verdade, de todos que estão no mesmo grupo que ele. Sendo assim, esta experiência acaba se mostrando como algo imposto de fora, mas formulado como algo de dentro. É a vida que todos vivem, mas que, acima de tudo, todos PRECISAM VIVER.
Qual é o problema disso? A ideologia pode ser observada em suas expressões materiais, em sua teoria e na auto-experiência dos sujeitos: para-si, em-si e em-si/para-si.
Minha hipótese é que a ideologia da vivência se expressa materialmente em locais juvenis como as redes sociais ou os movimentos estudantis (para-si), tem sua filosofia da vivência retirada de blogs gringos (em-si) e se mostra “real” na auto-experiência dos participantes, que sentem na pele o sofrimento de fazer parte de um dado grupo identitário.
Agora uma parte importante: o sofrimento.
Sofrimento
Dentro deste campo onde a experiência individual contida na vivência torna-se, então, o ponto último da verdade política, uma faceta desta singularidade se expressa de maneira superior a todas as outras. Viver, dentro deste aspecto é algo extremamente passivo, a vivência é algo que fazem com você, e o nodo desta realidade “vivida” de maneira vegetativa é o sofrer. A dor do sofrimento se converte na evidência máxima de pertencimento social.
Como só quem vive algo pode compreender este algo, a experiência da opressão na forma do sofrimento é apresentada de maneira distintiva, uma marca que separar o Eu do Outro. Conquanto isso possa ter algum sentido, este encadeamento é rapidamente subvertido na medida em que pertencer a algo sobe os degraus das prioridades, e o sofrimento que deveria se encaixar em algum lugar entre sintoma e motivação, é orgulhosamente ostentado.
Esta exposição do próprio sofrer não é, de maneira alguma, aquela que pode ser vista em grupos de apoio terapêuticos, onde articular o que se sente é um passo na resolução do sentimento. Ela passa a existir quase que unicamente para fins de distinguir os bons dentre os maus. É necessário passar pelo calvário para que se encontre a redenção. Porém, como tudo mais que possa ser transformado desta maneira, o modo como se dão as relações entre pessoas no capitalismo tardio, onde indivíduos são trocados por coisas, o sofrer torna-se um fetiche, algo que substitui outra coisa. Neste caso o indivíduo.
Você não deve expurgar seu sofrimento, deve se apegar a ele na medida em que esta é a régua pela qual será medido. E, dentro de um espaço que transforma o indivíduo em prima donna da realidade, a troca de pessoas por coisas troca pessoas pelas suas experiências de sofrimento. É necessário viver este sofrimento, alimentá-lo, expô-lo, pois agora ele se tornou você.
Quem não sofre, precisa entender o sofrimento a partir da desconstrução, uma maneira de se posicionar no lugar no sofredor. Mas quais são os problemas desta desconstrução?
Disso eu trato na próxima seção, leia abaixo.
Desconstrução
Eu já falei sobre esta questão em outro texto aqui no Colunas Tortas (clique aqui para ler), mas posso rearticular aquele pensamento.
A desconstrução, como uma maneira cotidiana de retirar de si todas as causas do privilégio, na medida em que esta prática permite colocar-se no lugar do oprimido e, desta forma, não agir como opressor, não faz o menor sentido.
Há alguns motivos para isso:
- Desconstrução parte do princípio de que não existe um núcleo duro existente. Você desconstrói para não encontrar nada. O objetivo da desconstrução é o nada. Sendo assim, quando eu me desconstruo, eu não vou chegar a nenhum lugar – e isso não é ruim, pois mostra como a nossa vida é significada a partir das relações sociais.
- Desconstrução, como movimento subjetivo de se posicionar empaticamente em relação ao outro, não tem sentido. Como eu, que sou constituído pelo mundo que me cerca e, por causa deste mundo, sou privilegiado (e opressor) vou olhar para mim mesmo e deixar de ser assim? Eu não posso olhar para fora da janela e ver dentro do meu quarto.
- Se eu sou constituído externamente, se as ferramentas para opressão que me foram dadas, só estão comigo devido a posição social que eu ocupo, minha cor de pele, sexualidade e etc, como eu posso ESCOLHER não utilizá-las? Se eu fui feito pelo mundo desta forma, então utilizá-las é um pressuposto, não uma escolha.
Reparem, esta desconstrução que estou comentando não tem nada a ver com a desconstrução de Derrida, Heidegger, Nietzsche e etc. É um termo que foi pego e desfigurado como mostrei acima e melhor comentado em meu artigo (aqui o link, novamente, pra você ler).
Talvez o correto seria dizer que não se trata de uma desconstrução, mas de uma reconstrução. O problema é que reconstrução envolve uma positividade que a militância da desconstrução e do sofrimento não pode assumir (por ser passiva, como já dito).
Esta militância (e este ciberativismo) não está preocupada em impor valores que acham bons. Ela está preocupada em retirar os valores que são ruins e deixar o resto fluir naturalmente.
O problema é que este fluir não existe assim, naturalmente. Ele é sempre constituído por regras. SEMPRE. Mas como você vai impor valores se você acha que a desconstrução levará as pessoas para a autorreflexão e para o caminho da paz?
É claro que a imposição de valores existe implicitamente, mas este que é o movimento inteligente: vivemos em uma época sem grandes referências de valores, desta forma, não podemos nos posicionar como uma. A positividade acaba ficando escondida em toda a negatividade posta na desconstrução, no sofrimento e na vivência. Todos esses conceitos mostram coisas que só são o que são na medida em que não são qualquer outras coisas. Mas não para por aí. Eles só são constituídos com base na vida “normal” do cidadão médio, não tentam se explicar a partir deles próprios.
Vida na internet = vida dentro da bolha
Para concluir, acredito que o ciberativismo sofre do mal de viver numa bolha. Conceitos como desconstrução, vivência, local de fala e etc, são coisas que não vão sair da internet e que, caso aplicadas ao cotidiano, não dão certo.
Todas essas exigências do outro precisam do consentimento do mesmo. Ou seja, só vão respeitar seu “local de fala” se quiserem. Percebe o quanto isso é humilhante? É necessário que queiram deixar você se expressar pra você se expressar.
É por isso que eu chamo este grupo de “militância dementadora”. A partir de maneiras negativas, esta militância prescreve formas de agir. Só quem sofre pode se expressar. Sofrer é parte constituinte do eu, é quase como um vício. Você precisa sofrer e caso você não sofra, fique quieto no seu canto aprendendo com os sofredores como a vida deve ser vivida.
Carlos Martinez escreveu um belo texto a militância da internet que foi traduzido no blog Tecedora. Martinez explica que:
Estas redes cresceram e se fortaleceram com o sucesso do Facebook primeiro e depois do Twitter, entre outras. O que nos transportou a outro extremo: submergimos em uma bolha junto com nossos “afins” e passamos a pensar que agora somos todos vermelhos, que somos uma legião e que temos muitos amigos e ou seguidores.
E pior, a militância na internet é a militância preguiçosa,
Sem dúvida, é muito mais fácil apertar o botão curtir ou dar RT do que distribuir panfletos nas portas das fábricas. Mas este último é o trabalho militante que devemos valorizar. Como diz meu amigo Serrano, não podemos aceitar o termo ‘ciberativismo’ assim como não podemos ‘cibercomer’.
Mas, apesar de tudo, a vida real é aquela que está sempre ao nosso redor, nos batendo e nos marcando,
Na web podemos ter tantas vidas quanto o tempo que estivermos dispostos a dedicar e manter diferentes perfis nas redes sociais. Mas a vida real é uma só, e algumas vezes curta, sem tempo para consertar.
Talvez ainda haja tempo para consertar a vida. Ser fodão no facebook não significa nada.
Já sou velho, mas olho para o mundo a partir de seu ineditismo, nunca sob o ranço interminável dos anciãos.
Que texto preconceituoso. A militância de internet ou ciberativismo vem galgando espaços importantes e levando ao grnade publico o debate e a viz que as minorias nunca tiveram Nao se trata de ser “o fodão” como vc colica, se trata de usar a ferramenta que se apresenta no momento pelo alcançe e pelo potencial democratico que tem. Muitas pessoas não tinham voz antes da internet e hj tem, fora o poder e a rapidez de articulações que conseguimos através desse espaço. Enfim, reveja seus preconceitos disfarçados de academicismo e se atualize, porque evidentemente, quem está na bolha é vc.
Pelo visto, você é exatamente de quem eu falo no texto.
“Como diz meu amigo Serrano, não podemos aceitar o termo ‘ciberativismo’ assim como não podemos ‘cibercomer’. ”
Comparar uma atividade fisiológica com uma atividade social não me parece uma maneira muito adequada de se argumentar.
Ademais, embora este passe longe de ser um mau texto, não consigo ignorar a impressão de que a mensagem é apenas uma versão intelectualizada do bom e velho discurso de conflito entre gerações.
Chame-o de pós-moderno, contemporâneo, ou do que quer que prefira, mas sem sombra de dúvidas é um mundo diferente. A tecnologia exerce um papel importantíssimo nessa mudança, tendo a Internet no centro de tudo.
Para o bem ou para o mal, são pouquíssimas (isso se houver alguma) as atividades que não foram dinamizadas, potencializadas, e, ouso dizer, até melhoradas com o advento da Internet. Isso inclui, para o desgosto de muitas pessoas, os relacionamentos sociais e a própria militância política.
Além disso, essa separação dicotômica entre Internet e vida real é falsa, pois essa é uma parte integral da realidade do Século XXI.
Há, inegavelmente, o mau uso (ou uso imaturo, para ser mais justo) do meio virtual, mas o potencial está presente e coisas maravilhosas já estão sendo realizadas através dele. Uma delas é a obsolescência dos panfletos. A natureza agradece.
Meu problema não é com a internet como um todo, mas com a ideologia própria que nasceu e circula pela internet. É ela que gera militantes dementadores, que não conseguem sair do mundo virtual.
Que limitam a vida ao mundo virtual. Daí a ironia do cibercomer. A militância é algo da vida real.
Ao meu ver, você generalizou e fez parecer que todos os grupos de minorias que encontram na internet uma voz, são extremistas em suas posições. Existem sim, dentro desses grupos, pessoas grosseiras que não admitem sequer um diálogo com outros que não passam pelas mesmas vivências. Assim como outras que só querem expor seu sofrimento e nada fazer para mudar algo na realidade. Mas banalizar todo ativismo virtual das minorias, todos os graus que já foram galgados, e até espaços alcançados graças a esse engajamento, me parece de forma contraditória ao objetivo do texto, também ausente de visão realista. E discordando de mais um ponto do texto, eu considero sim possível enxergar privilégios nas nossas próprias experiências e tentar não ser só mais um opressor´, por mais que o nosso lugar na sociedade nos leve a certas atitudes as vezes irrefletidas.
Antes de conhecer o movimento negro, ler mais sobre o racismo, sobre o privilégio de pessoas brancas, etc. Eu dizia coisas como: ” ah, essa negro é bonito, tem traços de branco” ou “nossa, que cabelo meio duro, ruim”. Depois que comecei a descontruir ou reconstruir – como achar melhor – percebi o quão racistas e preconceituosas eram essas minhas opiniões e abri meus olhos para belezas que antes passavam batido por mim e agora vejo com clareza, e admiro.
Eu não digo que são extremistas. Pelo contrário, acho que são conservadores.
Antes de tentar refutar o texto, eu achei bem mais simples tomá-lo como uma oportunidade de autocrítica e reflexão. Quem sabe que não se enquadra no perfil apresentado no texto, sabe que não precisa se “defender”, tornando-se emocionalmente reativo e buscando acatar o que foi apresentado no texto, chamando-o de generalista ou incongruente com a realidade em um todo (o que não deixa de sê-lo).
Quem é de verdade, se garante. Não precisa sair por aí tentando mostrar o que é e o que não é. Por isso eu guardo as minhas críticas e tomo o diálogo (leitor-texto) como uma oportunidade para expandir e reforçar ainda mais o que já venho construindo há anos…
Vejo que muitas pessoas nos comentários se sentiram ofendidas com o texto e viram a necessidade de se explicar, ou sendo mais clara, entraram na defensiva. Ou isso, ou estão com algum problema de interpretação de texto. Em lugar algum o texto generaliza todas as pessoas que se utilizam da internet para fins de militância: ele critica um tipo específico de “militância” que vem se apropriando da internet e que, obviamente, tem as características acima citadas.
Quem não se enquadra nessas características, não precisa se defender. E quem se enquadra também não, pelo contrário: pode aproveitar para mostrar que não é verdadeiro o que o autor diz sobre a desconstrução, que ela nunca é baseada em si próprio. Pratiquem auto-crítica. Não se ponham num pedestal. Eu o fiz e garanto que melhorei muito na militância e na vida.
Valter, conheci esse site a poucos dias e já li praticamente todos seus artigos, são excelentes! Suas análises vem de encontro a impressões que tenho já algum tempo,, que aliás venho tentando levar essas reflexões para determinados grupos. Lendo seus textos, com temas pouco abordados sob essa ótica, senti um certo alento, pois finalmente encontrei alguém falando sobre ciberativismo, local de fala e demais, com análises tão certeiras. Muito obrigada, vc me ajudou muito para ampliar a minha reflexão! Sigo lhe acompanhando! Abraço.