Da série“A Sociedade contra o Estado”
No primeiro capitulo de A Sociedade contra o Estado, “Copérnico e os Selvagens”, Clastres faz uma breve discussão a respeito do pensamento antropológico de seu período, e suas deficiências a respeito da análise das sociedades ditas primitivas. Fazendo referencia a Nicolau Copérnico (1473-1543) astrônomo e matemático polonês considerado o criador da teoria heliocêntrica, da qual o sol é o centro do sistema solar, Clastres frisa a necessidade de uma descentralização do mundo ocidental como a base da análise antropológica.
Nesse capitulo, Clastres faz sua análise em torno de algumas questões:
Quais são os aspectos que tornam o conceito de poder presentes em uma sociedade? Politicamente, que elementos dão o direito de um determinado grupo étnico ser reconhecido no campo antropológico de análise? O que é poder? E qual sua ligação com o Estado?
A essência do poder em Lapierre
Clastres incia o texto comentando a respeito da ideia de dever por meio da ordem. Existe uma “consciência formal” em cada indivíduo que remete a costumes do principio da humanidade, onde sempre há uma hierarquia humana formada por poucos, que está designada a comandar uma maioria.
Os estudos antropológicos que se desenvolvem em volta do caráter político, e no centro disso a discussão de poder, são o ponto aonde Clastres chama a atenção, pois há uma deficiência na antropologia de analisar como a política surge em outras sociedades não ocidentais. Em uma estância positiva ela fez com que um numero crescente de artigos e textos tem surgidos a respeito do tema.
J.W Lapierre (1921-2007) é um autor que faz essa busca pela origem do poder político. Clastres frisa a conclusão do autor em sua obra Essai Sur le Fondement Du Pouvoir Politique quando este busca desvendar se o poder se origina da natureza, em vez da cultura. Para isso, Lapierre realiza uma pesquisa no meio animal para tentar responder se a questão de poder ultrapassa o meio biológico.
Clastres refuta a maneira como Lapierre se coloca em sua análise a respeito do poder entre os selvagens, mesmo ele usando de uma vasta quantidade de exemplos para a sua pesquisa. Pois segue com a ideia de que as sociedades selvagens são classificadas com os mesmos moldes e padrões que uma sociedade civil.
Agora, seguindo a análise de Lapierre, apesar da profundidade das sociedades, uma não tem a impressão de ser testemunha de uma ruptura, uma descontinuidade, um salto radical que, descolando os grupos humanos de sua estagnação pré-politica, iria transformá-los em uma sociedade civil. Isso quer dizer que entre sociedades com uma marca de + e aquelas com – a transição é gradual, contínua e quantitativa na natureza? Em tais casos, a maior possibilidade de classificar sociedades iria desaparecer, entre os dois extremos – sociedades com estado e sociedades sem estado.[1]
Classificando desse modo, segundo Pierre Clastres, não seria possível verificar a profundidade de cada sociedade, as limitando apenas em sociedades com Estado e sociedades sem poder. O que faz com que a questão da origem do poder, analisando as sociedades dessa maneira, continue um mistério.
“Poder se realiza dentro de uma relação social típica: comando – obediência”[2] com esse tipo de afirmação, Clastres aponta que a questão base da análise antropológica é a da coerção, e de que o conceito de sociedade se baseia na violência. Caso formos analisar sobre o parâmetro ocidental/europeu de sociedades, esses fatores sempre foram concretos, mas falando sobre o conceito das sociedades arcaicas, aonde pode não existir coerção ou violência, o poder é inexistente?
Na maioria dos povos indígenas da Américas, com exceção das culturas do alto México, América central e o Andes, o conceito de escrita não existe, e a economia é de subsistência. E em sua liderança estão chefes que não usam seu poder no conceito de comando e obediência. “Esta é a maior diferença do mundo indígena, sendo possível falar das tribos americanas como um universo homogêneo, sem levar em conta a extrema diversidade de culturas entre elas.”[3]
Voltando a obra de Lapierre, Clastres destaca que os povos indígenas acabam sendo colocados na mesma categoria de sociedades com poder praticamente inexistente. Devido a necessidade desse encaixe nos moldes antropológicos estabelecidos pelo ocidente, povos como os Iroquois são identificados como protótipos do conceito de Estado. Só que não é certo dizer que essa liderança seja a formação de uma noção de Estado, pois é apenas uma organização formada por chefes das tribos sob o conjugo dos Iroquois. Para Clastres “não há uma diferença essencial entre a chefia Iroquoi e o líder de um grupo nômade pequeno.”[4] Dada essas colocações, a ideia de Clastres é problematizar como esse conceito de poder é formado sendo tradicionalmente postulado pelos antropólogos a necessidade de violência e coerção em sua estrutura:
Não é evidente para mim que coerção e subordinação constituam a essência de poder político em todos os lugares e em todas as ocasiões. Consequentemente, uma alternativa se torna presente: Ou a concepção clássica de poder é adequada à realidade que a contempla, que nesse caso deve constar para a falta de poder aonde for que seja localizada; ou é inadequado e deve ser descartado e transformado.[5]
Como o conceito de poder pode ser algo inadequado, é preciso analisar a própria ideia da estrutura de poder político.
Analisando a ideia de sociedade “arcaica”
Pierre Clastres se volta à Etnologia para verificar a concepção de arcaico: “a falta da escrita e uma economia de subsistência.”[6]
O primeiro ponto não é necessárias muitas explicações, já que a escrita existe em uma sociedade ou não, sem considerarmos outros meios de expressões.
Em referencia a economia de subsistência, que é a produção de recursos primários para uma sociedade, em um ponto do quais estes são realizadas de maneiras escassas, quase não atingindo a quantidade de indivíduos pertencentes ao grupo social, Clastres defronta essa ideia a respeito das sociedades chamadas de primitivas.
Fica registrado que uma boa maioria dessas sociedades arcaicas “com uma economia de subsistência” na América do Sul, por exemplo, produz uma quantidade excedente de comida frequentemente equivalente a quantidade requerida para o consumo anual da comunidade: Uma produção capaz, portanto, de satisfazer a necessidade suas necessidades duas vezes, ou capaz de alimentar uma população do dobro de seu tamanho.[7]
Clastres, com essas afirmações, não tenta dizer que as sociedades arcaicas não contêm nada de arcaico, mas ele levanta questões desse a priori para demonstrar como o ocidente analisa as outras sociedades apenas pelo o seu ponto de vista.
Baseado na contemporaneidade da qual se encontra, o embasamento para a analisa etnológica é feita apenas na sua linha de progresso científico e social, fazendo com que o ponto critico transforme as outras sociedades em atrasadas, subdesenvolvidas e até mesmo anacrônicas, sob essa perspectiva.
Mas como esse viés se relaciona com a questão de poder, principalmente da área política? Ela nos mostra que esses conceitos ocidentais são características sectárias, sendo encontradas repetidas vezes quando ocorre o encontro com sociedades mais “selvagens”, sempre um reflexo da deficiência de interpretação.
Outro exemplo: Clastres compara o encontro dos povos europeus com os Tupinambás brasileiros e com civilizações pré-coloniais mais avançadas nesse conceito de organização de Estado, como os Incas no Peru e os Astecas do México.
A primeira sociedade causa um estranhamento incomodo, um povo que não tem nada em comum com o mundo absolutista de reinos como Portugal e Espanha e a falta de um “poder” nos chefes locais (Mburuvicha).
Já nos outros exemplos, foi possível encontrar algumas características com a noção de poder dos reinos da Europa, aonde existia um sistema de comando, uma Hierarquia, além de uma forma de coerção as sociedades menores que remetiam as suas.
Nessa mesma perspectiva, Clastres aponta que no discurso antropológico existem termos da sua linguagem que ajudam a trazer essas sociedades para esse mesmo enquadramento da noção ocidental de poder, além da classificação em quadros equívocos.
Voltando ao texto de Lapierre, Clastres comenta a respeito de algumas palavras:
O que é implicado por esse tipo de vocabulário em que as palavras “Embrionário,” “Nascente,” “Mal desenvolvida” frequentemente aparecem? O objetivo não é para forçar uma disputa com o autor (Lapierre), porque pelo o que estou ciente essa é a língua da Antropologia.
O que é necessário é acessar o que é a arqueologia dessa língua e o conhecimento que preconiza o sentido. A questão levantada é: o que exatamente esta língua está dizendo e o que é a localidade de onde se diz as coisas ditas? [8]
Na chamada “arqueologia” dessa língua (inglês), é necessário constatar que o ocidente encara a relação de poder como algo que surge das relações hierárquicas e de violência, então uma sociedade que não demonstre, exerça ou se origine dessas formas para executar o poder, carece dele em qualquer sentido.
Etnocentrismo e a afirmação do evolucionismo
Todas as sociedades têm um pouco de narcisismo em seu viés a respeito do mundo. Entretanto, a diferença essencial segundo Clastres é que enquanto algumas sociedades “primitivas” tendem a ver sua cultura como superior, elas não sentem uma necessidade de um discurso afirmativo e esse respeito, como acontece com o conceito do etnocentrismo.
No viés cientifico, o etnocentrismo se perde em sua própria tese de universalidade, quando este se afirma como o conceito total de razão. Nesse cenário, Clastres encontra o ponto fundamental de sua critica a esse conceito: sendo o etnocentrismo incapaz de entender uma sociedade que não possui o mesmo conceito de poder, porque não compartilha nada de similar com a nossa cultura.
É uma espécie de falha estrutural que faz com que ele interprete ou tente encaixar o outro em suas características, e quando falha o analisa como “pobre” ou miserável, pela sua não existência de poder. Contudo, a antropologia não é uma área que oculta a reflexão, pelo contrário, mas a critica de Clastres se baseia nessa interpretação voltada para o poder.
Em relação ao Evolucionismo, ele se torna um grande aliado do etnocentrismo para afirmar a sua teoria. Mesmo sendo uma ideia que não é mais falada, no imaginário ocidental ainda existe o modelo definitivo do homem branco, erudito e europeu como sendo o objetivo para ser alcançado por todas as sociedades. Isso explica os usos de palavras como “embrionárias” e “mal desenvolvidas” usadas por Lapierre: é necessário, basicamente, evoluir.
E por que essas essências culturais são sempre destinadas a perecer? Como acontece que as sociedades que guardam essa essência as “abortam” tão frequentemente? Obviamente, essa fragilidade congênita esta atribuída ao seu arcaísmo, seu subdesenvolvimento, pelo fato de que eles não são o Ocidente. Sociedades arcaicas acabam por ser uma espécie de salamandras sociológicas, incapazes de alcançar o estado adulto sem ajuda externa.[9]
Clastres, em um caráter de denuncia, comenta a respeito da ideia do Ocidente de sempre achar necessário interferir nas sociedades “arcaicas” para impulsioná-las ao próximo passo da evolução. Esse pensamento se mostrou brutalmente presente durante as colonizações ibéricas das Américas, que afetaram severamente os povos indígenas, dos quais Clastres teve contato.
Indo um pouco além do conceito básico do Etnocentrismo, o autor comenta como alguns antropólogos usaram os próprios povos da América mais próximos de seu conceito de poder político para compará-los com as sociedades “primitivas”, assim como feito pelos colonizadores ao chegarem nas Américas.
A antropologia política
Devido essa busca incessante sobre algum resquício de poder e cunho político nas sociedades arcaicas, a Antropologia do inicio do século XX acaba se voltando totalmente para esse tema.
Isso é um problema do próprio campo dos estudos antropológicos do período. Até aquele momento, ela só levanta questões das quais consegue responder, se encontrando perdida em seus próprios conceitos.
O caminho do qual se extraviou foi o mais fácil, aquele que pode ser seguido cegamente; aquela traçada pelo seu próprio mundo cultural; não enquanto fosse desenrolado dentro do universal, mas em vez de se mostrar sendo limitado como qualquer outra. A qualidade necessária é abandonar – esteticamente, como é – a concepção exótica do mundo arcaico, uma concepção na qual, em ultima análise, esmagadoramente caracteriza a falta de comprovação do discurso científico a respeito desse mundo.[10]
Será necessário para o ocidente respeitar o homem e a mulher primitiva como um membro de uma cultura distinta e com suas próprias particularidades. A partir daí, será possível realizar uma concepção mais abrangente, que ultrapassaria o do cânone ocidental.
O maior obstáculo é a própria questão do poder, pois não se consegue pensar em uma sociedade apolítica, ou com um conceito de organização totalmente diferente sem se voltar para a questão do poder!
Segundo Clastres, se de uma maneira geral, a reflexão continuar se voltando para a questão do poder, tentando sempre achá-lo em toda a perspectiva observada, então qualquer consistência no discurso antropológico e etnográfico ira desaparecer, e “a ciência poderá se permitir se degenerar em opinião.” [11]
Todas as sociedades, primitivas ou não, contém uma noção de política e que não é preciso que o poder vindo desse caráter seja pela estrutura hierárquica e da violência. Fáceis de analisar ou não, o poder existe. Com isso Clastres chega a algumas conclusões:
- Sociedades não podem ser dividas apenas em dois grupos: sociedades políticas e apolíticas. É na visão ocidental que elas são dividas, e se manifestam em poder coercivo e não coercivo;
- A coerção como base de poder político não é o modelo definitivo de poder, mas sim um caso especifico, uma solução encontrada na cultura do ocidente;
- O social não pode existir sem poder. Mas esse poder não precisa ser ligado a uma figura política central, ele pode existir em uma sociedade por outros meios.
O poder coercivo e a inovação social
Retornando a Lapierre, Clastres analisa a teoria do autor de que o Poder político deriva da inovação social. Mesmo concordando, Clastres frisa que isso se aplica somente as sociedades aonde o conceito de comando – obediência esta aplicado. “Em outras palavras, inovação social é talvez a base do poder político coercivo, mas certamente não é a base do poder não-coercivo, a menos que seja decidido (algo impossível) que só poder coercivo existe. O alcance da teoria de Lapierre é limitada a um certo tipo de sociedade, um modo especifico de poder político e implica que onde não há inovação social, não há poder político.” [12]
Esse poder específico também pode ser assimilado com o conceito de sociedades históricas, aquelas que se transformam e modificam, que são a base do poder coercivo, que têm consequentemente como base a inovação. Com isso, sociedades sem poder são sociedades sem história.
Analisando as questões colocadas por Lapierre, Clastres conclui que ele só examina metade do problema, pois as indagações relativas ao poder não coercivo carecem de serem elaboradas.
O conceito de poder e história voltam para questões essenciais na critica de Clastres a Lapierre:
1) O que é poder político? Isto é: o que é sociedade?
2) O que explica a transição de poder não coercivo para poder coercivo, e como essa transição se sucedeu? Isto é: o que é história?[13]
É necessário analisarmos como os métodos históricos veem a origem da história de uma sociedade e de onde surge o poder nesse algarismo, sendo o mais importante que se esses métodos fizeram as questões a respeito Lapierre comenta que para o viés histórico do marxismo não existe poder político se não houver o conflito entre as classes. Mas será que as sociedades do comunismo primitivo, sem conflitos, contam na transição da não história para a história o surgimento da violência? E Clastres responde que “se ele consegue, seria um fator universal da sociedade e história, e portanto seria antropologia.” [14]
A Revolução de Copérnico
Os primeiros passos para a renovação antropológica se iniciaram para Clastres dentro da própria antropologia política. É necessário uma inversão da perspectiva, que o ocidente saia do “geocentrismo” no qual se vê como o centro do universo. Clastres já vê na antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, que foi seu professor, um novo respirar para essa quebra de paradigma, uma mudança de perspectiva.
Voltando a Lapierre em Essai Sur le Fondement Du Pouvoir Politique, ele inicia fazendo uma critica à suposta quebra das ciências sociais com a filosofia, para que com isso haja uma afirmação do conceito científico.
Mas para Clastres a questão é diferente, e envolve uma ideia de excluir o raciocínio, por meio desse pretexto.
Isto quer dizer, então, que a sociedade e o pensamento são mutuamente exclusivos: que a ciência é construída do não-pensamento, ou mais ainda do anti-pensamento? A falta de senso – As vezes suave, as vezes abrasivo – proferida de todos os lados pelos militantes da “ciência” parece levar a essa direção. Mas nessa instância alguém deve ser capaz de reconhecer onde a inclinação frenética para o anti-pensamento leva: com o disfarce de “ciência”, de banalidade epigonal, ou de um esforço mais simplório, leva diretamente ao obscurantismo.[15]
Não se pode separar a filosofia (nesse caso, o conceito do pensamento e da critica) do caráter científico da análise social. Caso isso ocorra, para Clastres, toda a base perderá o esforço critico, e questões tão complexas como a falha em sairmos do “umbigo ocidental” do viés antropológico irão surgir.
Referências
[1] CLASTRES, PIERRE. Society Against the State. Urizen Books, Nova Iorque. 1977, p. 4.(Tradução nossa)
[2]CLASTRES, PIERRE em LAPIERRE, JEAN-WILLIAM, Essai Sur le Fondement Du Pouvoir Politique, 1968. pg 44
[3] CLASTRES, PIERRE. Society Against the State… p. 5.(Tradução nossa)
[4] CLASTRES, PIERRE. Society Against the State… p 6.(Tradução nossa)
[5] CLASTRES, PIERRE. Society Against the State… p 6.(Tradução nossa)
[6] CLASTRES, PIERRE. Society Against the State… p 6 .(Tradução nossa)
[7] CLASTRES, PIERRE. Society Against the State… p 7 .(Tradução nossa)
[8] CLASTRES, PIERRE. Society Against the State…p 9 .(Tradução nossa)
[9]CLASTRES, PIERRE. Society Against the State… p 11 .(Tradução nossa)
[10] CLASTRES, PIERRE. Society Against the State…p 12.(Tradução nossa)
[11]CLASTRES, PIERRE. Society Against the State…p 14. (Tradução nossa)
[12]CLASTRES, PIERRE. Society Against the State…p 16.(Tradução nossa)
[13]CLASTRES, PIERRE. Society Against the State…p 16.(Tradução nossa)
[14]CLASTRES, PIERRE. Society Against the State…p 17.(Tradução nossa)
[15]CLASTRES, PIERRE. Society Against the State…p 18. (Tradução nossa)
Dissonante desde o momento em que eu bater na sua bigorna.
Escritor do acaso. Na vida amarga, que horas apodrece mais rápido mas também estabiliza no prazer.
adorei
Obrigado! 🙂
Muito bom!