Uma fórmula discursiva: “bolivarianismo”

E o que é o bolivarianismo? Aqui a análise do termo sob uma perspectiva da análise do discurso.

O artigo em português da Wikipédia sobre “bolivarianismo” mostra como o termo condensa diversos nuances de significados, assim como sua (profícua) circulação no espaço brasileiro (em especial) e latino-americano. O termo remontaria, em suas origens, ao general venezuelano Simon Bolívar, obtendo visibilidade através do presidente da Venezuela Hugo Chávez – que intitula seu governo como “bolivariano”. Segundo o artigo, bolivarianismo é tido como um “conjunto doutrinas políticas que vigora em partes da América do Sul”, que designaria, de forma mais ou menos genérica, políticas consideradas “socialistas” ou de “esquerda”.

Em grandes portais o termo foi amplamente utilizado. Nos portais dos sites jornalísticos “Pragmatismo Político” a busca pelo termo constou 47 resultados; na “Carta Capital”, 4.830; no “Observatório da Imprensa” 530; na “Folha de São Paulo”, 59; no “Estadão”, 691; na “Carta Maior”, 131; no “Portal Fórum”, 12. Depreende-se que “bolivarianismo” é um termo amplamente utilizado pela mídia e pelos portais virtuais brasileiros. No google trends, é possível observar um pico de visualizações do termo em novembro de 2014, e, de acordo com este mecanismo de pesquisa, o termo circula majoritariamente (ou mesmo exclusivamente) no espaço brasileiro.

bolivarianismo

Pretendo neste texto compreender o funcionamento do termo “bolivarianismo”, a partir de um sucinto recorte de algumas notícias e textos da internet de portais brasileiros, através das considerações de Alice Krieg-Planque (2010) sobre o funcionamento das fórmulas discursivas. Segundo a autora, uma fórmula discursiva apresenta as seguintes propriedades:

  • Caráter cristalizado;
  • Inscrição numa dimensão discursiva;
  • Funcionamento como um referente social;
  • Aspecto polêmico.

A fórmula discursiva, nesta perspectiva, possui o caráter de “significar algo para todo mundo”, de modo que, enquanto o significante da fórmula permanece o mesmo na forma como o termo circula, os diversos discursos que o empregam, por sua vez, são extremamente heterogêneos quanto à sua significação. Assim, o aspecto de ser um referente social – a necessidade de que todos os locutores tomem posição frente à existência de uma fórmula – e o aspecto polêmico – a existência de inúmeros discursos que irão tomar posições ideológicas antagônicas em relação ao sentido (tanto pelo valor de re, quanto pelo valor de dicto) da fórmula – são indissociáveis. Segundo a autora

É porque constitui um problema, porque põe em jogo a existência das pessoas, porque é portadora de um valor de descrição dos fatos políticos e sociais, que a fórmula é objeto de polêmicas. Polemizando em torno dela, os atores-locutores não polemizam “por nada”: eles polemizam por uma descrição do real.(…) As fórmulas constituem um referente social em um espaço público dado e são objeto de debates porque estão carregadas de questões: nesse sentido elas têm um caráter histórico. Elas fazem parte da história. (p. 100-101)

Diversos exemplos de notícias e artigos corroboram a hipótese de que “bolivarianismo” seja uma fórmula discursiva. Quanto ao aspecto da cristalização, acredito que o fato de se tratar de uma fórmula de apenas um sintagma (uma “sequência atômica” nominalizada) – composto morfologicamente por um radical “bolivarian-” e um sufixo “-ismo” – aponta para uma maior facilidade de cristalização do termo no sistema linguístico, assim como uma maior facilidade de circulação e abertura à polissemia. Inúmeros textos da internet se propõem fornecer definições para o termo. Tais textos, antes de desvelarem uma suposta homogeneidade na forma como definem o termo, estão profundamente atravessados por outros discursos – que apresentam posições antagônicas – que significam o termo. Isso demonstra a relação de todo o discurso com o interdiscuso, assim como a relação dialógica constitutiva de toda forma de significação.

Os enunciados presentes no texto “Você sabe o que é o bolivarianismo?” da Carta Capital, “o que convencionou-se chamar bolivarianismo está muito longe de ser uma ditadura comunista” e “a associação entre bolivarianismo e socialismo é questionável” demonstram, respectivamente, o valor de dicto e de re.  Mesmo compreendendo a inadequação de uma distinção dicotômica entre valor de dicto e de re para uma análise mais minuciosa dos processos discursivos, Krieg-Planque (idem) enxerga uma pista interessante para a compreensão dos processos de significação e referenciação através destas categorias. Este tipo de debate, segundo a autora, “incide sobre o caráter real ou fantasmático do referente designado pela fórmula”. O valor de dicto relaciona-se ao uso do próprio termo, como visto no primeiro enunciado acima, no qual se questiona o uso da própria palavra a partir de sua inadequação para designar uma “ditadura comunista”. No segundo, há uma contestação da própria predicação na forma de associar bolivarianismo ao socialismo, de modo com que o enunciado remete para as relações de referenciação pressupondo uma partilha em comum (mesmo que relativa ou até mesmo contraditória) de sentidos, configurando um valor de re.

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O artigo também afirma “não fazer sentido” afirmar que o Brasil “virou uma Venezuela”, visto que “as diretrizes do governo Dilma e do governo de Nicolás Maduro são bastante distintas, tanto na retórica quanto na prática”. Aqui, o texto dialoga diretamente com discursos que afirmariam que o governo Dilma seria bolivariano, ou mesmo comunista. Outro texto, da Carta Capital, intitulado “Por que o novo decreto de Dilma não é bolivariano”, demostra novamente o embate entre diferentes discursos. Leonardo Avritzer argumenta que o decreto instituído pela presidenta acerca da Política Nacional de Participação Social não configura uma “medida bolivariana”. Aqui se torna evidente a divisão de sentidos e de posições discursivas e a passagem obrigatória da fórmula discursiva (atestando seu caráter de referente social): aqueles que são contra ou a favor das medidas, neste caso, da presidenta Dilma e do Partido dos Trabalhadores (PT) . “Bolivariano”, nesta dimensão discursiva, torna-se um adjetivo (seja ao governo, seja às medidas do governo Dilma) com um alto teor pejorativo: o termo é afirmado por aqueles que acreditam que a medida aprovada pela presidenta seja “bolivariana” e, por deslizamento, um “barbarismo político e jurídico” – posições identificadas como de direita e/ou críticas ao governo – e negado por aqueles que se alinham ao governo e/ou à esquerda. Esta relação interdiscursiva põe em evidencia a equivocidade da fórmula, que passa a circular e ser citada obsessivamente (e obrigatoriamente).

Em uma matéria da BBC Brasil, Marie Arana, autora de uma biografia de Simón Bolívar, diz que “Associar Bolivarianismo com Socialismo é erro”, em referência a proclamação de líderes latino-americanos (tidos neste texto, implicitamente como “socialistas”) como Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa enquanto “bolivarianos”. Desta forma, haveria uma “apropriação indevida” do nome próprio de Bolívar em certos discursos de esquerda segundo Arana:

BBC Brasil – A imagem de Símon foi apropriada de diversas formas na América Latina. No Brasil, o termo “bolivariano” é usado para falar de algumas ideias da esquerda, principalmente quanto à maior participação popular na elaboração de leis ou no debate sobre a lei. Isso faz sentido?

Marie Arana – Isso não tem nada a ver com Símon Bolívar e com seus escritos originais. Isso vem dessa aliança “bolivariana” instituída por Hugo Chávez na Venezuela e que agora tem nove nações-membro. A apropriação do nome de Bolívar é espantosa, porque ele tinha ideias fortes sobre injustiça, esclarecimento popular, liberdade. Estas eram as coisas básicas nas quais ele acreditava. E a apropriação de seu nome por esta aliança de esquerda e socialista é errada historicamente e inapropriada.

A presença de aspas em torno do termo “bolivarianismo” em diversos textos também é um forte indicativo de um típico funcionamento das fórmulas. As aspas marcam um distanciamento do termo em relação ao próprio ato de enunciação, tornando explícita a imprecisão quanto à significação do termo, assim como a relação com outros discursos e sentidos. Desta forma, é como se fosse possível demarcar uma distância entre o próprio discurso e os demais discursos que significam e circulam a fórmula, o que atesta a polissemia da palavra em questão que é condensada enquanto fórmula. As notícias intituladas “Para juiz, falar em ‘bolivarianismo’ no STF é retórica de incomodados” da Rede Brasil Atual; “Aos leitores que repetem ‘bolivarianismo’ e não fazem ideia do que falam”, do Portal Fórum e “O ano em que nos tornamos “bolivarianos””, da Carta Capital demonstram esse funcionamento. Vitor Nuzzi enxerga que usar este termo é apelar para um “argumento de retórica, de alguém que está incomodado com alguma coisa”. Maria Frô observa que o termo serve para uma estereotipização dos “governos progressistas legitimamente eleitos como foram os de Chávez na Venezuela e os de Evo Morales na Bolívia”. Em “Maldito bolivariano!”, Gilberto Maringoni defende que a “tendência de chamar desafetos de ‘bolivariano’ conta com a ignorância alheia” e que “o termo precisa ser mais bem definido antes de ser berrado a plenos pulmões”.

Em suma, o que estes textos indicam fortemente, a despeito de uma possível auto identificação com termo “bolivariano”, é que em espaço brasileiro o “Bolivariano” parece remeter sempre ao Outro (assim como um discurso do Outro). No debate político nacional ora se brada “bolivarianismo” como um insulto ora se trata de recusar esta interpelação injuriosa. Não foi encontrado por mim, até agora, nenhum texto de autor brasileiro que se reivindicasse enquanto tipicamente “bolivariano”, ao contrário de como poderíamos ver na identificação do presidente Chávez com seu próprio governo (em outro espaço de enunciação, portanto). Em todo caso, o termo “bolivarianismo”, em espaço brasileiro, tende a fazer crer na existência de um “problema/ameaça bolivariana”, fazendo funcionar um pré-construído “anti-esquerda/anti-comunista”.

Josué Medeiros põe em cena certo discurso acerca do significado de “bolivarianismo” como um “aparelhamento do Estado” e critica a visão “demofóbica” que este discurso subjaz. Aqui, como em diversos outros textos do mesmo portal, não se trata de criticar o que viria a ser de fato um “governo bolivariano”, mas criticar outros discursos que tomam o “bolivarianismo” como um tema (pré-construído enquanto uma “ameaça ao Brasil”). Aqui, novamente, fica evidente a passagem obrigatória da fórmula no próprio discurso ao relatar o discurso antagonista. Trata-se, portanto, de refutar o argumento do discurso antagonista (de que bolivarianismo seria uma ameaça) em que tal fórmula se encontra presente.

É a “Venezuelização” do Brasil, termo que deixa evidente a arrogância e os preconceitos das classes dominantes, menosprezando, bem ao estilo “Casa Grande”, as experiências populares sul-americanas. Os mais sofisticados conceituam o “bolivarianismo” brasileiro, combinação de aparelhamento do Estado com clientelismo, os pobres (menos instruídos segundo o sociólogo ex-presidente) capturados pelos programas sociais e pela democracia participativa. Por mais elaborado que seja o argumento, não esconde a demofobia estrutural das nossas elites, ignorando o sentido estratégico da Constituição de 1988 enquanto organizadora da prática cidadã e da cultura de direitos no Brasil e que autoriza tanto as políticas sociais quanto o aprofundamento da democracia.

Na mesma direção, em um artigo para o portal “Brasil 247”, Lula Miranda faz ácidas críticas aos discursos (“da classe média burra e por vezes ridícula”) que advogam a existência de uma “ameaça ao Brasil” que representaria um governo da presidenta Dilma. Através desta crítica, o autor também põe em questão a própria relevância do uso do termo “bolivarianismo” (que significaria discutir questões completamente alheias ao Brasil, segundo o colunista) demonstrando como o termo “bolivarianismo” têm repercutido “ad nauseam” no debate político brasileiro, o que desvela um típico funcionamento político (e por isso, polêmico) da fórmula:

Suposto “bolivarianismo” este que vem assombrando “de mentirinha” a oposição e repercutindo ad nauseam em suas caixas de ressonância e alto-falantes, estrategicamente instaladas em veículos da grande mídia de negócios e negociantes, e nos colunistas rola-bostas que levam, diligentemente, excrementos e excrescências das mais variadas aos ouvidos e cabeças de seus leitores fiéis – mais fiéis do que leitores, diga-se. (…) E não é que eu esteja querendo me colocar contra ou a favor do tal bolivarianismo, essa nem é a questão que se apresenta. Apenas não perco meu tempo debatendo-me com fantasmas ou discutindo questões e fenômenos que não me dizem respeito, diretamente, nem ao meu país. Tampouco fico vendo sombras e assombrações nas paredes do claustro da ignorância em que se escondem, e de onde se manifestam, os críticos do tal “bolivarianismo” que “ameaça” o Brasil e aflige parte da nossa classe média – burra, cheirosa, iletrada e, por vezes, ridícula.

Textos analisados

Bibliografia

KRIEG-PLANQUE, Alice. A noção de “fórmula” em análise do discurso: quadro teórico e metodológico. Trad. Luciana Salazar Salgado e Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

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