O que é ambivalência em Bauman, ou qual o trajeto da razão?

Apesar do conceito de ambivalência aproximar o sujeito de suas impossibilidades e, sendo assim, o colocar em posição de ignorância, impossibilidade de alcançar a totalidade, de viver sem segurança existencial, ele também funciona como propulsão a uma nova forma de relação social. É por isso que Bauman fornece a perspectiva para experimentar a ambivalência como um elemento dado na constituição humana.

Índice

Introdução

Zygmunt Bauman
Foto: Samuel Sánchez.

Antes de discutir precisamente o que é ambivalência para Zygmunt Bauman, é necessário entender alguns antecedentes. Este conhecimento prévio que deverá ser discutido, tem relação com a formação da modernidade e da sensação tipicamente moderna do progresso. Tomaremos como base o artigo de Sandro L. Bazzanella[1].

A criação do conceito de razão, inventado no ocidente sob o nome de logos, iniciou um projeto de categorização e classificação do mundo. Foi dada largada a uma corrida que tinha na racionalidade sua maior arma. O objetivo da racionalidade era, portanto, eliminar a ambivalência, a possibilidade de dupla interpretação de um fato, de maneiras diferentes de se pensar e agir sobre o mundo.


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No entanto, vivemos em tempos de desmoronamento das verdades, tão bem construídas por toda a modernidade[2]. A ambivalência, estado existencial humano, imputa a total falta de conceitos preestabelecidos aos indivíduos, que seguem caminho inverso ao da categorização geral exercida pela razão,

Vivenciamos uma sensação de cansaço, de exaustão, um sentimento de falta de sentido e finalidade da existência. Quase que diariamente desmoronam verdades, certezas que davam sustentação a uma determinada cosmovisão predominante durante a grande parte da ocidentalidade e consequentemente na modernidade[3].

Vivemos com tecnologias de comunicação inimagináveis por nossos bisavôs, mas não conseguimos manter diálogo com nossos vizinhos; utilizamos aplicativos de celular para melhorar a nossa possibilidade de encontrar alguém para sair, ao invés de procurar este alguém através das tecnologias que já estão marcadas em nosso cotidiano. Essas situações criam uma ruptura na lógica implícita à razão.

A cada entrada de ano novo assistimos aos apelos dramáticos de chefes de estados, líderes religiosos e comunitários pela construção da paz mundial, no entanto multiplicam-se os conflitos entre países, povos, culturas, fruto da intolerância cultural, de interesses econômicos e políticos mais variados[4].

Isso porque as mesmas potências que pedem paz, causam guerra no mundo: como no caso de Obama ganhar o prêmio Nobel da Paz e financiar as tropas rebeldes na Síria e o exército israelense[5].

Afinal, devemos ter certeza de que os EUA são bons porque seu presidente ganhou o Nobel ou devemos ter certeza de que os EUA são maus porque fabricam as armas de Israel?

Neste sentido, a ambivalência caracteriza-se pela dificuldade que enfrentamos de nomear, ordenar, dar sentido ao mundo. Estes sintomas de desordem, estes paradoxos expressos em situações ambivalentes na base do modelo civilizatório ocidental, nos trazem um profundo desconforto na medida em que somos incapazes de nos posicionar “adequadamente” a partir de uma determinada ordem que nos possibilite a segurança, fazer opções com garantias diante das inúmeras possibilidades de ação colocadas à existência[6].

Com já dito, esse sentimento de ambivalência não é específico do contemporâneo: se trata de um sentimento plausível na lógica da modernidade. A própria classificação exaustiva da modernidade, as relações que estabelece entre o homem e a natureza, ou a cultura e a natureza, carregam este afeto. O esforço da construção da ordem sobre o caos a carrega.

E o mundo da ordem é aquele no qual sabemos para onde estamos indo, sabemos como calcular a probabilidade de cada evento, sabemos minimizar e maximizar suas consequências. É um mundo estável, que parte de uma lógica cumulativa, que faz do passado, fundamento do presente e em que nós podemos nos basear no passado para traçar um bom futuro. A dinâmica da modernidade está na busca incansável da verdade, da harmonia. Esta noção se tornou hegemônica após passar por cima da cosmovisão anterior, de matriz greco-romana e judaico-cristã.

A construção da ordem civilizatória moderna se efetivou na medida em que sua afirmação significava a secularização de conceitos e perspectivas de mundo judaico-cristãs, do triunfo da vontade humana, da vontade de poder, de domínio sobre o mundo em sua multiplicidade de configurações, por parte de uma racionalidade calculadora e planejadora das múltiplas manifestações existenciais presentes no mundo[7].

O esforço de organizar o mundo empreendido pela civilização ocidental tinha como objetivo eliminar o estranho, o anormal, aquilo que não se encaixaria na construção da ordem. Jogá-los para a periferia da sociedade juntamente com os pressupostos metafísicos que sustentavam a presença deles na sociedade.

Para que a lógica moderna de ordenação do caos na busca de segurança, de garantias e certezas alcançasse êxito, fazia-se mister estabelecer, justificar e fundamentar uma visão imanente da sociedade e da natureza, separadas e afastadas da presença e da interferência direta de Deus e de suas verdades reveladas. Esta imanência seria a possibilidade do homem desencadear uma lógica de organização, planejamento e administração da esfera social e natural do mundo moderno, cabendo unicamente ao homem conduzir a existência na esfera social e natural que o cercava[8].

No entanto, a imanência se transformou em transcendência, na modernidade, com a constituição do Estado, instituição acima dos indivíduos, acima do bem e do mal, que legisla, organiza e utiliza seu poder coercitivo para manter os indivíduos dentro da ordem (ou expeli-los). Aos poucos, foi necessário renunciar ao prazer, aos instintos, para ter segurança, esta, fornecida pelo Estado.

A cosmovisão antropocêntrica se vê com paradoxos insolúveis, substituindo sua perspectiva imanente pela transcendência estatal, substituindo a satisfação individual pela segurança fornecida pelo Estado.

A proposta civilizatória ocidental também separa a natureza do social. A primeira, por sua vez, passa a ser objetivo passivo no mundo, aberto à descoberta humana, refém das experiências humanas. Dentro da civilização ocidental, quem deve explorar a natureza é o cientista: novamente, explica Bazzanella, o imanente é substituído pelo transcendente, na medida em que o cientista passa a trabalhar a natureza longe do mundo social, criando formas artificiais de manipulá-la e estabelecendo leis e princípios universalizantes para ela e para o mundo social. A criação dessas leis descola a possibilidade da sociedade se guiar, ter um fim em si, já que passa a ser gerida por leis que ela própria desconhece.

O paradoxo da ambivalência

O esforço da ordenação, presente da proposta civilizatória ocidental, é colocado em um paradoxo,

O esforço ordenador, purificador da modernidade é uma tentativa de abafar, de revestir por meio de definições estáticas, conceituais, científicas a multiplicidade de forças nas quais se manifesta a diversidade da vida em sua perspectiva ambivalente[9].

Somente a crença e aposta na razão poderia levar às últimas consequências o esforço antropocêntrico de racionalização, ordenação e planejamento do mundo. Ela seria a responsável por guiar a humanidade à verdade, devido seu otimismo gnosiológico. Ainda seria tarefa da razão dar armas para o homem vencer o caos, “a indeterminação, a contingência, afirmando e fundamentando o que é natural e suas leis de funcionamento, o que é humano e seus padrões de comportamento”[10].

É tarefa da razão, portanto, livrar o mundo ordenado de ambivalências, incertezas e contingências que poderiam assolar a humanidade. No entanto, ao agir sobre a lógica cumulativa da Civilização Ocidental, a razão cria o “mito do progresso infindável”[11]: de que a solução dos problemas que vivemos está sempre à frente, que será resolvida cedo ou tarde, a partir de nossos recursos científicos e técnicos. Essa solução faria parte de um rol de novidades salvacionistas sempre evocado e criado dentro do progresso. Se tudo isso é fragmentado, no início da modernidade, com o fortalecimento do Estado, passa a ser centralizado:

Bauman chama-nos a atenção para o fato de que, a partir destas estruturas fragmentadas e ordenadoras do caos, construídas pelo processo civilizatório ocidental moderno, a gerência, o planejamento e a administração de tal arquitetura passam a ser conduzidos por um saber estabelecido, por um conhecimento burocratizado e especializado na “missão” de dar sentido e finalidade à existência humana, ao mundo […] Surgem as propostas de organização da sociedade a partir de propósitos positivistas, liberais, marxistas, socialistas, anarquistas, todos propondo o melhor gerenciamento possível do caótico mundo humano[12].

No entanto, todas as formas de gerenciamento produzem mortes. E Bauman, com seu conceito de ambivalência, nos permite ver que alguns dos pilares do modelo civilizatório ocidental criam uma demanda existencial de alto preço. Na medida em que a civilização ocidental se formava com sua lógica cumulativa e linear, o homem e suas experiências em meio à contingência eram eliminados.

Nenhuma classificação binária usada na construção da ordem pode se sobrepor inteiramente à experiência contínua e essencialmente não discreta da realidade. A oposição, nascida do horror à ambiguidade torna-se a principal fonte de ambivalência. A imposição de qualquer classificação significa inevitavelmente a produção de anomalias (isto é, fenômenos que são percebidos como “anômalos” apenas na medida em que atravessam as categorias cuja separação é o significado da ordem). Assim “qualquer cultura dada deve enfrentar eventos que parecem desafiar suposições. Ela não pode ignorar as anomalias que seu esquema produz, exceto com o risco de perder a confiança[13].

Ordem e ambivalência

A ambivalência para Bauman, desta maneira, pode ser entendida como o reverso da ordem, um incômodo causado pela multiplicidade presente, pela incerteza. Um sentimento de profundo desconforto com a impossibilidade de regrar o mundo ao bel prazer. Ela permite um tipo de sensação diferente da ordem,

a ambivalência coloca-se como a possibilidade de o homem civilizado moderno vivenciar a experiência do sem sentido dos esforços civilizatórios na construção de utopias, de sociedades centradas na coletividade, na racionalidade científica, nos dispositivos da técnica, onde os desejos, as necessidades, as angústias de cada indivíduo são suprimidas em nome da perfeição, da salvação do homem de rebanho, da segurança alcançada pela previsibilidade e domínio sobre o tempo e o espaço, sobre padrões comportamentais estatisticamente definidos[14].

A ambivalência impulsiona o homem moderno a superar posições passivas em relação à vida, situações de aceitação mecânica e binária (como bem e mal, certo e errado). Ela coloca diante do homem a possibilidade de talvez ser inerente às características humanas a incerteza, a contingência e a insegurança.

Bauman incentiva seu leitor a ser cético em relação às próprias certezas e, desta maneira, conseguir visualizar um horizonte maior, diverso, que não reduz todo o cosmo a uma narrativa. E é a ciência quem reduz o mundo com suas leis universalizantes, assim como a instrumentalidade técnica que acaba eliminando o espaço ético entre uma ação e suas consequências possíveis.

Considerações finais

Bazzanella conclui que, apesar do conceito de ambivalência aproximar o sujeito de suas impossibilidades e, sendo assim, o colocar em posição de ignorância, impossibilidade de alcançar a totalidade, de viver sem segurança existencial, ele também funciona como propulsão a uma nova forma de relação social,

Para revelar o potencial emancipatório da contingência como destino, não bastaria evitar a humilhação dos outros. É preciso também respeitá-los – e respeitá-los precisamente na sua alteridade, nas suas preferências, no seu direito de ter preferências. É preciso honrar a alteridade no outro, a estranheza no estranho, lembrando – com Edmond Jabès – que “o único é universal”, que ser diferente é que nos faz semelhantes uns aos outros e que eu só posso respeitar a minha própria diferença respeitando a diferença do outro[15].

É por isso que Bauman dá perspectiva para experimentar a ambivalência como um elemento dado na constituição humana. A oportunidade de encarar a vida como um jogo: local de vitórias e derrotas, mas sem certeza de tudo, sem certeza das jogadas. Viver a vida como um jogo não é esperar pela vitória, mas é viver o prazer do próprio jogo, portanto, não é esperar por um final feliz, mas caminhar um trajeto prazeroso.

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Referências

[1] ↑ BAZZANELLA, Sandro Luiz. O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman. Cadernos Zygmunt Bauman ISSN 2236-4099, v 2, n. 4 (2012), p. 59-82, Dez/2012.

[2]Modernidade Líquida, o que é. Colunas Tortas. Acessado em 27/03/2016.

[3]O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.62.

[4]O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.63.

[5]Poderio militar israelense “made in USA” esmaga palestinos. Revista Fórum. Acessado em 27/03/2016.

[6]O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.64.

[7]O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.65.

[8]O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.66.

[9]O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.67.

[10] ↑ O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.69.

[11]O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.71.

[12]O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.72.

[13] ↑ BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999 Apud BAZZANELLA, Sandro Luiz. O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman. Cadernos Zygmunt Bauman ISSN 2236-4099, v 2, n. 4 (2012), p. 59-82, Dez/2012.

[14]O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman… p.75.

[15] ↑ BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999 Apud BAZZANELLA, Sandro Luiz. O conceito de ambivalência em Zygmunt Bauman, p79.

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