Foucault como arqueólogo – Norman Madarasz

O artigo visa mostrar a proposta de Norman R. Madarasz em assumir que Foucault utilizou o método arqueológico em toda sua obra, às vezes diretamente, às vezes subordinado à tática genealógica. Por fim, o autor procura salientar também que a arqueologia é um tipo de análise estrutural e, portanto, Foucault não rejeitou o estruturalismo em sua obra, apesar de se posicionar distante a ele.

Foucault: Leituras Acontecimentais.
Foucault: Leituras Acontecimentais, Norman R. Madarasz (Org.). Publicado pela Editora Fi.

O artigo presente é uma resenha de Foucault: Arqueólogo Estrutural[1], do pesquisador Norman R. Madarasz, da Pontifica Universidade Católica do Rio Grande do Sul, presente no livro Foucault: Leituras Acontecimentais e seu objetivo principal é discutir as rupturas na carreira do autor francês que teriam como resultado a tripla divisão de sua obra entre 1) fase arqueológica, 2) fase genealógica e 3) ética e cuidado de si.

Para Madarasz, a cátedra História dos Sistemas de Pensamento, que Michel Foucault ocupou no Collège de France entre 1970 e 1984, sempre foi dedicada à aplicação do método de análise arqueológica, como uma continuação das pesquisas nos anos 60, para alguns encerradas com o fim da década. Ainda mais ousado, o autor afirma que Foucault longe de “rejeitar o estruturalismo e suas variantes, de fato estava desdobrando a análise estrutural através de formas não cogitadas durante a década de 1960”[2].

Se isso é verdade, então a clássica sequência temporal da obra de Foucault fica estremecida: a linha saber-poder-ética, que divide a fase arqueológica, genealógica e a ética, não tem mais funcionamento prático para definir a trajetória do autor. Pior, esta simplificação encaixa um autor que desenvolveu modelos historiográficos heterodoxos dentro de uma linearidade diacrônica, coisa que o próprio filósofo negaria; mais ainda, o encaixe precipitado conduz às falsificações, já que guia o leitor à conclusão de que as análise em As Palavras e as Coisas e Arqueologia do Saber foram abandonadas nos trabalhos da década de 70 em diante.

Arqueologia como análise estrutural

A arqueologia nas pesquisas de Foucault era um procedimento que expunha as ciências enquanto práticas discursivas que tinham efeitos de subjetividade. Este efeitos, por sua vez, não eram fechados num sistema único do discurso analisado, já que sua explicação envolve outros discursos e relações não discursivas, o que faz com que o discurso não seja puramente do campo linguístico nem do campo epistemológico. Na medida em que a história e outros sistemas discursivos têm seu papel no momento de descrever uma formação discursiva dada, o discurso

é formado por um conjunto de ‘a priori’s históricos’ intensional. Este termo, apenas aparentemente paradoxal, diz respeito a um processo que se manifesta em sua conectividade imanente num nível em que o discurso não opera de maneira referencial. Sendo intensional sem totalização, o modelo também deixa de ser transcendental.[3]

A arqueologia de Foucault não só identifica as verdades das práticas discursivas, mas também percorre a sistematização de seus efeitos.

A dita primeira fase do autor, berço da análise arqueológica, aconteceu sob as influências da epistemologia e filosofia da ciência francesas, muito em voga na primeira década do pós-guerra e que foram decisivas também nos trabalhos de Pierre Bourdieu e Bruno Latour; também a análise estrutural foi importante influência: se trata de uma atividade de leitura específica de inter-relação, de constituição de uma rede de elementos analisados. Ela é praticada dentro dos domínios de conhecimento estudados (é uma análise interior) e visa entender “como a possibilidade do conhecimento de objetos e de teorias emerge”[4].

A arqueologia, dirá Madarasz, é uma análise estrutural[5].

No lado dos filósofos da ciência, haviam nomes como Karl Popper, Imre Lakatos, Paul Feyerabend e Thomas Kuhn, que estavam preocupados com as condições de manutenção da configuração de uma ciência e da extensão normativa que assegurava seu ideal de objetividade. Com este foco, a origem da verdade é deixada de lado, o que faz com que Foucault, um intruso na filosofia da ciência, seja deixado para trás nos círculos mais conservadores. O que não é novidade quando se entende que o autor examinou a história dos discursos formadores das ciências expondo seus procedimentos de exclusão. Esses, por sua vez, não eram somente da ordem do que era ou não válido como uma filosofia, por exemplo, procedimento integrante da institucionalização e reconhecimento do campo do saber, mas tais procedimentos também relevavam aspectos de raça, gênero, classe e até de língua[6].

Já com a análise estrutural, Foucault foi capaz de encontrar as origens das ciências ou dos saberes pré-científicos e demonstrar que seu surgimento não foi causal nem linear. Não era possível fazer uma história linear, coerente, das ciências. Por exemplo: a psicologia, a antropologia e a sociologia seriam formadas a partir das estruturas das três ciências vigentes no século XIX, a biologia, a economia e a filologia. A ruptura feita na episteme também transformou os objetos e os campos de estudo das ciências humanas quando comparadas com as três anteriores, no entanto, são delas que as humanidades ainda retiram suas referências de objeto e seus campos, o que faz com que Foucault conclua que as ciências humanas não são ciências.

Como Foucault mostrou em Les Mots et les choses, a biologia se atrelou à vida, a economia política ao trabalho, e a filologia à linguagem. No que diz respeito às ciências humanas, seu eixo era, justamente, o conceito de “homem”.[7]

Os objetos dessas ciências, explica Madarasz, não eram gerados positivamente, a partir de uma essência ou interioridade, mas era definidos de forma diferencial, na dispersão da rede de categorias que os cercava e os dava condição de emergência. A produção de conceitos também não era ligada à ideia de essência ou interioridade, o que tornava necessária a historicidade na hora de explicar seu surgimento e suas relações, afinal, a episteme é justamente aquilo que “na positividade das práticas discursivas, torna possível a existência das figuras epistemológicas e das ciências”[8].

As ciências empíricas são sistematizadas por Foucault como fenômenos de subjetivação com nascimento na emergência dos objetos das pré-ciências acima ditas. A emergência desses objetos em teorias ou ciências propriamente ditas tem relação direta com a mudança de episteme (da clássica para a moderna) e com a ruptura que essa mudança levou a cabo.

A arqueologia exemplificada acima (com a explicação da emergência das ciências humanas) é o tipo de método (Madarasz a chama de método) utilizado em toda obra de Foucault e, por sua vez, carrega a análise estrutural em seu bojo. Palavras do próprio filósofo:

O que tentei fazer era introduzir análises de estilo estruturalista em domínios onde elas não tinham penetrados até o presente, isto é, no domínio da história das ideias, da história dos conhecimentos, na história da teoria. Nesta medida, fui conduzido a analisar em termos de estrutura o nascimento do estruturalismo mesmo.[9]

Enquanto a genealogia funcionaria como uma maneira de inscrever os saberes assujeitados nas hierarquias das ciências e, assim, dar força para que se tornem livres, a arqueologia tem como papel principal servir à análise dos saberes.

Diria em duas palavras o seguinte: a arqueologia seria o método próprio à análise de discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz atuar, a partir destas discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem. Isso para restituir o projeto de conjunto.[10]

Arqueologia e genealogia são duas abordagens indissociáveis que funcionam sob a perspectiva da ruptura em relação às ciências vigentes.

Um novo eixo para Foucault

Madarasz propõe um novo eixo para pensar a progressão da obra de Foucault. Sua proposta é de considerar a arqueologia como primeira fase da obra de Foucault, sendo seguida de uma arqueologia subordinada à genealogia. Por último, a extensão da genealogia para a análise do governo de si e dos outros. Pode-se esquematizar da seguinte maneira:

  1. Arqueologia: método em que a história descontinuísta é capital;
  2. Arqueologia subordinada a uma genealogia que trata como problema os processos de subjetivação, não os acontecimentos e fatos históricos;
  3. Genealogia estendida à análise do surgimento da noção de bom governo de si e do poder dito pastoral, o bom governo dos outros.

Para Madarasz, as tentativas de iluminar um Foucault como um pensador que traz as técnicas de si para o presente, pensando-as como solução para escapar das relações de poder, não são eficientes na medida em que não conseguem ler a terceira fase de Foucault como uma genealogia do campo da ética filosófica acompanhada por uma teoria do governo de si e dos outros[11].

Se trata de um agenciamento específico entre arqueologia e genealogia, explica Madarasz.

O autor usa como referência a interpretação de Pierre Hadot, em que Foucault teria exagerado na ênfase às técnicas de si, esquecendo de seu objetivo final: gerar a consciência que alcança “a universalidade da perspectiva cósmica, a presença maravilhosa e misteriosa do universo”[12].

Desta maneira, ao negligenciar este último objetivo, e mitigar a potência da razão para ultrapassar o “si”, Foucault teria querido “oferecer implicitamente para o homem contemporâneo um modelo de vida”, o que é bastante contestável.[13]

Contestável na medida em que a fase da ética de Foucault não é uma fase de prescrição, mas sim de análise genealógica, como explicado anteriormente.

Por fim, termina Madarasz, um projeto que visa delinear uma teoria do sujeito própria a uma episteme pós-humanista só será compreensível a partir da atenção à atuação sempre presente do estruturalismo e da arqueologia.

A partir disso, a provocação seguinte é evocada:

Que Foucault se manteve arqueólogo subentende que continuou aplicando o método de análise estrutural, pois postula que todo objeto conceitual, inclusive o sujeito, é cortado, divido, cindido.[14]

Desta forma, a atividade teórica de análise estrutural nunca abandonou Foucault e foi parte de suas pesquisas mesmo com a criação e o abandono de diversos conceitos ao longo de sua obra (como o próprio conceito de episteme). A arqueologia como análise estrutural é um jeito específico de olhar um problema, mas não um conjunto rígido de conceitos que são aplicados aos problemas. É uma atividade que preenche toda a carreira de Michel Foucalt.

Referências

[1] MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo Estrutural. In: MADARASZ, N., JAQUET, G. M., FAVERO, D., CENTENARO, N. Foucault: Leituras acontecimentais. Porto Alegre: Editora Fi, 2016.

[2] MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural… p.21.

[3] MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural… p.24.

[4] MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural… p.26.

[5] MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural… p.22.

[6] MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural… p.28.

[7] MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural… p.29.

[8] FOUCAULT, Michel. L’Archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969, p. 215. IN: MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural. In: MADARASZ, N., JAQUET, G. M., FAVERO, D., CENTENARO, N. Foucault: Leituras acontecimentais. Porto Alegre: Editora Fi, 2016.

[9] FOUCAULT, Michel. La philosophie structuraliste permet de diagnostiquer ce qu’est“aujourd’hui”” [1967]. Dits et écrits, vol. 1, op. cit., p. 583. IN: MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural. In: MADARASZ, N., JAQUET, G. M., FAVERO, D., CENTENARO, N. Foucault: Leituras acontecimentais. Porto Alegre: Editora Fi, 2016.

[10] FOUCAULT, «Il faut défendre la société» Cours au Collège de France 1975-1976. Ed. M. Bertani e A. Fontana. Paris: Seuil-Gallimard, 1997, p. 11-12. [Tradução brasileira por Maria Ermantina Galvão.] IN: MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural. In: MADARASZ, N., JAQUET, G. M., FAVERO, D., CENTENARO, N. Foucault: Leituras acontecimentais. Porto Alegre: Editora Fi, 2016.

[11] MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural… p.37.

[12] HADOT, “Réflexions sur la notion de ‘Culture de soi’”. Art. cit., p. 268. IN: MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural. In: MADARASZ, N., JAQUET, G. M., FAVERO, D., CENTENARO, N. Foucault: Leituras acontecimentais. Porto Alegre: Editora Fi, 2016.

[13] MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural… p.38.

[14] MADARASZ, Norman R. Foucault: Arqueólogo estrutural… p.40.

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