Janta Filosófica #36: O que é preconceito linguístico a partir de Marcos Bagno

Da série “Janta Filosófica“.

Índice

Introdução

Nossa Janta Filosófica nº36 abordou o conceito de preconceito linguístico a partir das reflexões trazidas por Marcos Bagno em seu livro seminal sobre o assunto.

Falamos sobre o funcionamento do preconceito linguístico enquanto uma ferramenta de poder, enquanto um elemento de submissão das massas brasileiras mas, de certa forma, enquanto submissão essencializada no próprio ato de falar a língua portuguesa fora do padrão normativo.


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Ouça o áudio:

Abaixo, um trecho transcrito da live:

Vamos ao primeiro assunto. Para falar sobre preconceito linguístico, eu fui atrás do livro Preconceito linguístico: o que é, como se faz de Marcos Bagno e gostaria de seguir com esse início baseado em um ponto específico do livro.

Antes disso, há alguns mitos sobre a lingua portuguesa que dão concretude para os preconceitos:

Preconceito linguístico no Brasil

1 – “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”. Erro que até mesmo Darcy Ribeiro teria cometido. A extensão do Brasil e a extrema desigualdade social que gerava, na época de escrita do livro, um país com a segunda pior distribuição de renda do mundo isso, ainda no governo FHC, são o contexto de um alto grau de diversidade e variabilidade da língua. Na medida em que não há acesso universal e de qualidade ao sistema de ensino, parcelas gigantes continuam sem qualquer contato com a norma culta. E esse é o ponto, talvez o suposto universalismo da língua portuguesa em território nacional seja uma ferramenta justamente com função de emudecer o analfabeto no debate. Torná-los, como chama o autor, de sem-língua.

2 – “O brasileiro não sabe português / Só em Portugal se fala bem português”. Aqui, há um resquício do colonialismo que promove uma baixa autoestima marcantes nos povos colonizados. Que somos nós, né? Apesar de não ser algo lembrado a cada instante e quase até esquecido, nós somos fruto da colonização e literalmente toda forma de vida ocidental que está marcada na gente não passa de arbitrariedade. As diferenças entre o português de Portugal e o português brasileiro fornecem até desentendimentos semânticos. O termo português brasileira se faz necessário, mesmo com uma norma culta unificada.

3 – “O português é muito difícil”. De cara, aliada ao mito anterior, este é o que já taxa a população brasileira como burra. Isso porque todo falante nativo sabe sua própria língua. Saber uma língua, vai dizer Bagno, significa conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade as regras básicas de funcionamento dela.

E aqui vem o golpe de mestre do autor. Abre aspas: “Se tanta gente continua a repetir que ‘português é difícil’ é porque o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português”. Ou seja, o problema não está na língua, não está no falante, está no ensino da língua que leva a reconhecê-la como legítima somente na modalidade culta e, assim, cria condições materiais de distinção e dominação entre classes.

4 – “As pessoas sem instrução falam tudo errado”. Este preconceito é situado ao lado do primeiro dito, acerca da presença supostamente total da língua portuguesa em sua forma culta, ensinada nas escolas, catalogada nos dicionários e explicada nas gramáticas. Seria como dizer que falar pobrema é usar errado a língua portuguesa. O Marcos Bagno até cita alguns exemplos de palavras que hoje falamos com erre e sua derivação é uma palavra com éle, como branco, brando, cravo, dobro, fraco, frouxo etc.

5 – “O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão”. Bagno fala novamente sobre a subserviência da colônia à metrópole. O uso do pronome tu seguido de formas verbais clássicas podem levar a essa conclusão absurda e não verificada.

6 – “O certo é falar assim porque se escreve assim”. Absurdo, na medida em que a língua escrita não é a base da língua falada, na medida em que a norma da escrita é criada após o uso, para que se formalize. É possível dizer que há um certo e errado para se escrever uma palavra segundo a norma culta ou segundo a ortografia para que possam, todos que utilizam a língua, ler e compreender o que está escrito, mas um certo e errado na pronúncia como se fosse possível comparar a uma referência fixa, ideal, anterior, isso não faz sentido.

A língua escrita é até mesmo limitada para que se expresse tudo que é possível. Ela só nos entrega pontos de exclamação, interrogação,.. Há inflexões e intenções que funcionam na fala.

E, por fim, não faz sentido pq nós vivemos no Brasil e sabemos de nossa história de analfabetismo. Se se fala aquilo que se escreve, então quem não sabe ler e escrever não sabe falar automaticamente? A realidade empírica não mostra isso: os falantes de uma língua dominam seu modos, seus usos.

7 – “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”, ou seja, aqueles que estudam a gramática são potencialmente ótimos poetas e, supostamente, os poetas seriam ensinados na gramática. Na verdade, não há evidência sobre a necessidade a priori de saber a gramática para escrever ou falar bem. Isso delineia uma normalização da língua em que o falar bem ou escrever bem são tipos específicos ligados à norma e que não está na vida da maior parte dos brasileiros, falantes que dominam sua própria língua. Parece um dom, quando visto na concretude, na medida em que é raro. Falar bem e escrever bem e transformam em um dom divino ou num esforço individual hercúleo.

Só é possível falar que um texto bom é feito a partir deste tipo de escrever bem quando já se tem definido o que é o “bom”, quando ele já está delimitado e já excluiu diversas outras formas de escrita.

8 – “O domínio da norma culta é um instrumento de ascenção social”, o que ele tenta dizer é que o domínio da norma culta de nada adianta a uma pessoa que não tenha todos os dentes, casa decente para morar, luz elétrica e rede de esgoto. Na serve àqueles que não acesso às tecnologias modernas, avanços da medicina, aos empregos bem remunerados, a participação ativa e consciente das decisões políticas que afetam sua vida e de seus concidadão.

O domínio da norma culta de nada adianta àqueles que não têm seus direitos de cidadãos reconhecidos plenamente, à pessoa que viva numa zona rural onde um punhado de coroneis controlam uma extensão gigantesca de terra fértil enquanto milhões de famílias de lavradores sem terra não tem o que comer.

Nisso chegamos no círculo vicioso do preconceito linguístico: para o professor Marcos Bagno, ele passa pela gramática tradicional, pelos métodos tradicionais de ensino e pelos livros didáticos que vão fazer parte da santíssima trindade do preconceito linguístico. “A gramática tradicional inspira a prática de ensino que por usa vez provoca o surgimento da indústria do livro didático cujos autores, fechando o círculo, recorrem à gramática tradicional como fonte de concepções e teoria sobre a língua”, saliente Bagno.

Mas há também um quarto elemento que ele denomina como “comandos paragramaticais”, que podem ser identificados em todo o arsenal midiático, os manuais de redação de jornais, programas de rádio, colunas de jornal e revista, hoje em canais de YouTube que trabalham para esta normatização da língua. É interessante porque especificamente no YouTube, o nome que se dá a este tipo de profissional é “divulgador”, nome que qualifica positivamente o agente social do preconceito.

Norma padrão ou norma culta?

Em relação à norma, é possível considerar o português da gramática como uma norma pura, culta, e afirmar isso no sentido de as pessoas se cultivaram, estudaram, enriqueceram seu vocabulário e se tornaram, portanto, mais cultas. Essa é uma forma. Há de se pensar que isso é só uma bobagem, e isso é boa parte do sentido, pois não há a gramática em si ela não tem nenhuma utilidade do ponto de vista prático social da gramática normativa. Mas nós podemos também pensar o exercício da gramática normativa como uma norma padrão.

Se pensarmos em norma padrão em vez de norma conta, ela tem a sua utilidade porque é necessário certo padrão. Nós vivemos em sociedade e é necessário que haja um padrão. Esse padrão serve para que eu escreva e você entenda, para que uma bula de remédio não contenha, por exemplo, expressões idiomáticas; para a redação de leis porque as leis são escritas para toda a extensão do território nacional, então se deve estabelecer alguma norma para que seja ali aplicada nestes momentos institucionais de escrita.

É evidente que é arbitrário. Não é melhor que qualquer outra forma de uso da língua, mas é um padrão. É neste tipo de espaço onde se fala em norma padrão e, assim, é possível perceber que a gramática normativa tem uma utilidade, ela tem fim prático nestes casos, ela tem um fim social, ela permite que se estabeleça normas para o mesmo uso da língua em lugares oficiais. Neste sentido, a norma padrão se difere da norma culta e deixa de ser algo pertencente à dominação tentar, de alguma forma, estudar essa norma padrão e desenvolvê-la, aprendê-la.

É possível, também, tecer crítica ao livro de Bagno, pois ele tende a seguir uma vertente que descrever microprocessos concretos como determinantes na realidade macro, de tal forma que eles parecem ser processos conscientes, escolhas. É preciso aparar algumas arestas no livro do Bagno e evitar exageros empiricistas.

Ao se criticar a norma culta, esquece-se que é necessário uma norma padrão. É saudável pensar em uma norma padrão.

Preconceito linguístico: exemplos

  1. Marcos Bagno entende que figuras como o professor Pasquale representam um tipo de preconceito linguístico específico, o preconceito grafocêntrico, em que a análise de toda a língua suportamente poderia ser feita a partir do ponto de vista restrito da língua escrita;
  2. A professora Cinthia Chagas, muito famosa entre bolsonaristas, que realiza um papel parecido com o do professor pasquale, mas com requintes reacionários mais vistosos;
  3. Ao lidarmos com conteúdos acadêmicos, necessariamente lidamos com a forma culta para sermos respeitados, para termos nossos artigos aceitos pelas revistas e para sermos, no fim, escutados em eventos e congressos. A interdição do uso fora da norma culta em círculos acadêmicos representa um tipo de preconceito linguístico;
  4. O escárnio promovido pela classe média urbana em relação à fala de membros de regiões rurais. Este tipo de preconceito é percebido nos adjetivos “feio” e “errado”. Exemplificando, “o capiria fala feio” ou “o capiria fala errado”, por conta de usos fora da norma culta da utilização da língua. Neste tipo de preconceito, fica claro que há uma questão de classe e de distinção social, que transforma o “errado” em incivilizado.
  5. Escárnio promovido pelas classes médias e altas em relação às gírias e dialetos periféricos, o que, novamente, demonstra a necessidade da distinção social e a relação de dominação pertencente à estrutura econômica.

Preconceito linguístico: resumo

  • O preconceito linguístico é uma forma de dominação que se situa no uso da língua;
  • Este uso é marcado pela norma culta, que é entendida como o jeito certo de se falar;
  • Ele também se situa na suposta necessidade de educação formal para o uso correto da língua falada;
  • O preconceito linguístico pressupõe um preconceito regional (xenofobia), um preconceito de classe (classismo) ou um preconceito de raça (racismo);
  • A norma culta pode ser substituída por uma norma entendida como padrão, mas o desafio é ajustar esta norma padrão somente aos momentos institucionais, sem torná-la elemento de distinção social;
  • O pronceito linguístico é uma forma de dominação que pode ser agressiva (a partir do xingamento), interditória (a partir da exclusão) ou recreativa (a partir do escárnio).

Gostou? As Jantas acontecem todas as segundas-feiras às 19:30hs no canal do Colunas Tortas no YouTube.

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2 Comentários

  1. Bom dia, Colunas!

    Bons pontos a serem refletidos. Mas, fiquei na sensação de um “quero mais” – obviamente, o livro poderia me ampliar a percepção.

    Fico com outros questionamentos (im)pertinentes: como nós podemos dialetizar a questão do preconceito linguístico, sobretudo com as classes que mais sofrem com a desigualdade social, com a questão do acesso universal aos direitos fundamentais dos indivíduos, a bens e serviços sem a aquisição desse português “correto”?

    Sei que políticas públicas que caminhem ao encontro da reparação das desigualdades entre indivíduos são necessárias em todos os setores da vida em sociedade, principalmente na esfera educativa formal, sem que percamos a boniteza de nossos “dialetos” próprios, nossos modos autênticos de comunicar e expressar. Contudo, fico a pensar se no atual cenário em que o capitalismo neoliberal se apropriou da comunicação e da expressão para ampliação do acúmulo de capital, isso não exija de nós, brasileiros e brasileiras, a aquisição forçada da norma culta-intelectualizada da Língua. Poderíamos, na ausência dessas políticas de reparação, acessar e ocupar espaços sociais tomados quase que restritamente pelas elites burguesas sem a aprendizagem dessa linguem imperiosa?

    Ademais, não quero dizer que com essa aquisição “forçada” devamos abster de nossa coloquialidade fundante. Ao contrário, gostaria de melhor uma compreensão mais multirreferencializada entre linguagem, poder e sociedade de classes.

    1. Fala, Alex!

      Acho pertinente a questão sobre a possibilidade de evitar o preconceito linguístico e, ainda assim, enfrentar o desafio de uma educação em massa, para um território tão vasto como o Brasil. Ou seja, como fazer isso sem uma normatividade que destroi? Acredito que possamos até mesmo fazer outra live abordando este tema e levando uma pessoa que pesquise na área da Educação sobre o tema. Obrigado pela sugestão!

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