Da série O Estado.
Lênin foi o líder da Revolução de Outubro, de 1917, na Rússia, a primeira revolução comunista de sucesso e o nascimento do primeiro Estado socialista. Seu livro “O Estado e a Revolução” foi lançado em agosto daquele mesmo ano, pouco antes do clímax revolucionário, e é a partir dele que a temática do Estado será tratada no presente texto.
O Estado e a luta de classes
A necessidade de definir o que é o Estado tem grande importância por este ser o complexo administrativo geral de nossa sociedade. Nossos países são Estados-nações, a divisão dos países (e, portanto, do conjunto de regras jurídicas que regem nossa vida) são feitas com base no território e assegurada pela soberania nacional, praticada pelo aparelho estatal. Desta forma, o Estado tem um papel central no controle da vida em sociedade e tomar uma posição para defini-lo é uma maneira de entender como devemos lidar com sua existência.
É assim que Lênin inicia sua análise do Estado citando Friedrich Engels em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado,
“O Estado não é, de forma alguma, uma força imposta, do exterior, à sociedade. Não é, tampouco, ‘a realidade da ideia moral’, ‘a imagem e a realidade da Razão como pretende Hegel. É um produto da sociedade numa certa fase do seu desenvolvimento. É a confissão de que essa sociedade se embaraçou numa insolúvel contradição interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis de que não pode desvencilhar-se. Mas, para que essas classes antagônicas, com interesses econômicos contrários, não se entre devorassem e não devorassem a sociedade numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força que se colocasse aparentemente acima da sociedade, com o fim de atenuar o conflito nos limites da ‘ordem’. Essa força, que sai da sociedade, ficando, porém, por cima dela e dela se afastando cada vez mais, é o Estado”.
Eis, expressa com toda a clareza, a ideia fundamental do marxismo no que concerne ao papel histórico e à significação do Estado. O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis.
É necessário se afastar das concepções iluministas do Estado enquanto um agente da pura administração ou como um espaço de mediação imparcial. “De um lado, os ideólogos burgueses e, sobretudo, os da pequena burguesia, obrigados, sob a pressão de fatos históricos incontestáveis, a reconhecer que o estado não existe senão onde existem as contradições e a luta de classes, “corrigem” Marx de maneira a fazê-lo dizer que o Estado é o órgão da conciliação das classes”, denuncia Lênin.
“Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submisso de uma classe por outra; é a criação de uma ‘ordem’ que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes”, finaliza. Não há como conceber o Estado como um aparelho neutro e estático de mediação de conflitos ou de pura administração eficiente de recursos. Ele é, na tradição marxista, um instrumento de dominação, que nasce na necessidade de criar mecanismos fortes de submissão das classes exploradas, para que sejam sempre exploradas (mesmo que numericamente maior que as classes exploradoras).
O Estado é a arma que desconsidera o número de corpos: é a arma eficaz e legitimadora. É por meio do Estado que se diz o que é correto e que se move poder eficientemente, é por isso que quando um Estado é formado, também é construído um poder público, conforme explicarei adiante.
O aparelho repressor
Apesar de ser um termo althusseriano, o aparelho repressor é um conceito já carregado desde Engels, citado novamente por Lênin n’O Estado e a Revolução,
O segundo traço característico do Estado é a instituição de um poder público que já não corresponde diretamente à população e se organiza também como força armada. Esse poder público separado é indispensável, porque a organização espontânea da população em armas se tornou impossível desde que a sociedade se dividiu em classes … Esse poder público existe em todos os Estados. Compreende não só homens armados, como também elementos materiais, prisões e instituições coercivas de toda espécie, que a sociedade patriarcal (clã) não conheceu.
Engels desenvolve a noção dessa “força” que se chama Estado, força proveniente da sociedade, mas superior a ela e que dela se afasta cada vez mais. Em que consiste, principalmente, essa força? Em destacamentos de homens armados que dispõem das prisões, etc.
Quanto maior as contradições entre as classes na sociedade, maior também será a força estatal e seu complexo de penitenciárias, exército e etc. Esta força, ainda por cima, é legitimada pelo direito e pelo próprio estado das coisas, pois nos parece natural que haja uma instituição com monopólio da violência – só não é claro que este monopólio da violência tem um sentido claro: reproduzir as condições materiais da sociedade capitalista e perpetuar a exploração em favor do acúmulo de capital.
O aparelho repressor estatal, depois de conseguir montar um poder público, também coloca sob um manto de legitimidade todos aqueles que o administram, Lênin cita Engels,
Investidos do poder público e do direito de cobrança dos impostos – escreve Engels; – os funcionários, considerados como órgãos da sociedade, são colocados acima da sociedade. O respeito livre, voluntário, de que eram cercados os órgãos da sociedade patriarcal (do clã) já lhes não bastaria, mesmo que pudessem adquiri-lo.
Fazem-se leis sobre a “santidade” e “inviolabilidade” dos funcionários.
“O mais insignificante agente de polícia” tem mais “autoridade” que os representantes do clã; mas, o chefe militar de um país civilizado poderia invejar um chefe de clã, que a sociedade patriarcal cercava de um respeito “voluntário e não imposto pelo cacete”.
Mas o que coloca os funcionários do Estado tão acima do restante da sociedade? Antes de falar sobre isso, é necessário analisar que, se o Estado é uma arma de repressão às classes dominadas, então seus funcionários são as engrenagens que movem a produção e reprodução material da sociedade capitalista em seus moldes. Esta posição de grande importância necessita de um alto privilégio.
Dentro da sociedade capitalista, este alto privilégio assume a forma do dinheiro: os altos salários e a segurança daqueles que defendem o Estado é uma das maneiras de legitimar sua atividade (no entanto, não é e não pode ser a única, já que os policiais não recebem muito mais que um proletário comum). É interessante notar que a democracia burguesa é o ambiente ideal do prestígio que a riqueza pode fornecer.
Democracia, Estado e a revolução
A democracia em sua forma atual, baseada no sufrágio universal, não é uma maneira de conduzir a sociedade à sua autonomia e decisão deliberativa justa. Engels argumenta que o sufrágio universal é um instrumento de dominação da classe dominante. A sua única função é mostrar a o “indício da maturidade da classe operária. Nunca mais pode dar e nunca dará nada no Estado atual”, diz Lênin.
Segundo o autor, não há nada de libertador para classe operária em escolher durante um período de tempo algum representante da classe burguesa para falar por ela em um parlamento da classe dominante.
É este o ponto de denúncia de Lênin sobre os oportunistas de sua época, que mal interpretavam Marx com objetivos conscientes ou não de anular o poder revolucionário da teoria marxista. Segundo o russo, se embasando em Engels novamente,
Em sua obra mais popular, Engels resume nestes termos a sua teoria:
“O Estado, por conseguinte, não existiu sempre. Houve sociedades que passaram sem ele e que não tinham a menor noção de Estado nem de poder governamental. A um certo grau do desenvolvimento econômico, implicando necessariamente na divisão da sociedade em classes, o Estado tornou-se uma necessidade, em conseqüência dessa divisão. Presentemente, marchamos a passos largos para um tal desenvolvimento da produção, que a existência dessas classes não só deixou de ser uma necessidade, como se toma mesmo um obstáculo à produção. As classes desaparecerão tão inelutavelmente como apareceram. Ao mesmo tempo que as classes desaparecerá inevitavelmente o Estado. A sociedade reorganizando a produção sobre a base da associação livre e igual de todos os produtores, enviará a máquina governamental para o lugar que lhe convém: o museu de antiguidades, ao lado da roda de fiar e do machado de bronze”
Ou seja, o Estado não é algo definitivo que promove eleições para representar a vontade coletiva, escolhida democraticamente. Na verdade, o Estado é algo que precisa ser abolido, no entanto, não de uma só vez. O Estado enquanto uma arma da burguesia precisa ser destruído, mas é necessário mantê-lo como arma do proletariado e é por conta disso que a visão marxista do Estado tem uma noção de “definhamento do Estado”.
O Estado morre por ser, pela primeira vez, uma arma da maioria (o proletariado é maioria em comparação com os patrões). Melhor ainda, ele morre por não precisar suprimir uma parcela majoritária da sociedade e, por último, ele morre por não ser mais sustentado pela separação de três poderes.
A divisão do legislativo e executivo cria uma parlamento bobo: uma conversa de comadres. Separa a ação do pensamento e reproduz a velha oposição entre matéria e espírito. Um parlamento proletário não é o local da divisão de poderes e da deliberação inútil, mas é o local de deliberação em que, no fim, os próprios legisladores executarão e avaliarão criticamente a lei.
Não é difícil perceber que o pressuposto para isso é a abolição do poder público: o exército e a polícia enquanto instituições especiais e separadas da sociedade são substituídas por um exército e por uma polícia populares. O povo toma conta do povo.
O Estado morre, como dito acima, mas esta morte é antecedida por um definhamento.
É por disso que, seguindo a enumeração de Lênin:
1 – O Estado de fato é abolido, mas não de repente. Ele precisa ser utilizado como uma arma pelo proletariado, que formara uma organização estatal diferente daquela utilizada pela classe burguesa. “Segundo Engels, o Estado burguês não ‘morre’; é ‘aniquilado’ pelo proletariado na revolução. O que morre depois dessa revolução é o Estado proletário ou semi-Estado.”
2 – O Estado é uma força de repressão do proletariado pela burguesia. Esta força deve “ser substituída por uma ‘força especial de repressão’ da burguesia pelo proletariado (a ditadura do proletariado). É nisso que consiste a ‘abolição do Estado como Estado’. É nisso que consiste o ‘ato’ de posse dos meios de produção em nome da sociedade.”
3 – O definhamento do Estado ocorre depois da revolução socialista: é com ela que o Estado começa a ganhar uma forma nova e assumir funções diferentes, já que passa a trabalhar para a maior parcela da população.
4 – Quando Engels fala da morte do Estado, está dizendo diretamente aos anarquistas e aos oportunistas de sua época. Ou seja, já havia ali uma crítica à noção naturalizada do Estado.
5 – A obra de Engels, quando trata da revolução violenta, faz uma verdadeira apologia à revolução, no entanto, “é moda, nos partidos socialistas contemporâneos, não falar nem pensar nunca no assunto; na propaganda e na agitação cotidianas entre as massas, essas idéias não desempenham papel algum. No entanto, estão indissoluvelmente ligadas à idéia do “definhamento” do Estado, com a qual formam um todo.”
A prova de fogo da necessidade de manter um Estado foi a Comuna de Paris: a única que coisa faltava para seu sucesso era manter as mãos em armas e manter uma organização militar do povo. O Estado era necessário enquanto agente organizador.
Isso significa que a máquina estatal deve ser substituída por uma organização popular em que os salários não são maiores que o de um representante da classe proletária. Uma organização que serve como administração e como repressão de iniciativas burguesas. É por conta disso que a divisão dos poderes se acaba: esta divisão é intrinsecamente liberal, é parte integrante do Estado burguês e é um pedaço da arma de destituição do poder ao povo.
Ou seja, para Lênin (e para o marxismo) o Estado é um aparelho repressor necessário para os objetivos comunistas, nunca com uma estrutura fixa, portanto sempre mutável e que deve sofrer com um definhamento após deixar de ser utilizado para a repressão da maioria da sociedade. O Estado não é um bicho-papão nem um mal-necessário: ele é uma arma que deve ser bem utilizada, além de qualquer ideal utópico.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.
Excelente publicação! Parabéns aos elaboradores 😀
Obrigado!
olá vc tem o resumo completo do livro ” O estado e a revolução” ? abraço
Nao entendi. A resenha acima é completa.
Estou estudando bastante o Comunismo, Socialismo, etc, e acho que encontrei o meu lugar. Eu tenho interesse de ver esse livro de Lênin, e já li o Manifesto e alguns trechos de Engels. Parabéns pelo texto. Uma coisa que eu gosto desse site é sua linguagem clara e objetiva, sem muitos obstáculos desnecessários, que ao mesmo tempo consegue ser uma coisa bonita. Tenho 15 e estou adorando aqui, achei por acaso pesquisando uma introdução desse livro antes de ler, mas me impressionei. Mais uma vez, parabéns.
Muito obrigado, Camila 🙂
Amei , gostei bastante pois estou estudando bastante a matéria de filosofia , que interage nesse assunto ..
Obrigado pelo carinho, Letícia!