As unidades do discurso – Arqueologia do Saber

A unidade do discurso é feita de dispersão e crítica. Foucault não carece de ímpeto para trilhar novos caminhos na filosofia francesa.

Da série “A Arqueologia do Saber“.

O que seria o discurso médico, o discurso econômico, ou o discurso da psiquiatria e das ciências humanas? O que é discurso? Uma linha contínua que representa a concatenação de determinados objetos, conceitos, modalidades enunciativas ou temáticas? É exatamente batalhando contra essas noções que Foucault inicia sua Arqueologia do Saber: fugindo das unidades e repousando nas rupturas, olhando a novidade dos acontecimentos em vez de buscar por uma estrutura.

O discurso é uma analítica própria do nível dos enunciados. Esses, por sua vez, se situam não nas palavras ou nas frases (nas regras de formação de uma sentença), muito menos na lógica de uma proposição ou na rigidez de um ato ilocutório. Os enunciados dão condições de possibilidade para a existência de todas as formas de se analisar signos citadas neste parágrafo. Eles não estão nem dentro nem fora, agindo externamente sob uma cadeia de signos, mas sim estão em suas separações, em seus interstícios, no limite dos signos, com regras que se encontram numa regularidade que só emerge após encontrar as regras de formação de um discurso, ou seja, após se encontrar as regras que explicam os discursos, suas modificações, suas repetições, suas relações de continuidade e de oposição.

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No entanto, o autor se precavê para não cair nas tão repetidas noções da tradição do saber histórico: “há, em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um jogo de noções que diversificam, cada uma a sua maneira, o tema da continuidade”. Como

a noção de tradição: ela visa dar uma importância temporal singular a um conjunto de fenômenos, ao mesmo tempo sucessivos e idênticos (ou, pelo menos, análogos); permite repensar a dispersão da história na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da origem; graças a ela, as novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência, e seu mérito transferido para a originalidade, o gênio, a decisão própria dos indivíduos. O mesmo acontece com a noção de influência, que fornece um suporte – demasiado mágico para poder ser bem analisado – aos fatos de transmissão e de comunicação […] Assim também ocorre com as noções de desenvolvimento e de evolução,: elas permitem reagrupar uma sucessão de acontecimento dispersos; relacioná-los a um único e mesmo princípio organizador […] O mesmo acontece com as noções de mentalidade ou de espírito, que permite estabelecer entre os fenômenos simultâneos ou sucessivos de uma determinada época uma comunidade de sentido. [1]

Se livrando dessas noções valiosas e hegemônicas na história enquanto tentativa de ser ciência, o que sobra, para Foucault, nas relações entre os enunciados e entre os sujeitos que podem enunciá-los? Além dessas noções, é necessário deixar de lado aquilo que faz o discurso parecer uma unidade, como o livro (unidade material) e a obra (como conjunto dos escritos de um determinado autor).

Foucault retira a segurança que essas unidades poderiam dar ao analista reforçando o fato de que uma antologia, por exemplo, não é um livro composto pela mesma pessoa ou com o mesmo discurso, já que se trata de uma combinação heterogênea de poemas de locais e tempos diferentes. A obra deixa de ter um lugar especial de convergência e identidade de um discurso quando confrontada com as obras póstumas (elas fazem ou não parte das obras totais do autor?) ou com as obras inacabadas.

O discurso, sendo assim, não é um conjunto de unidades materiais (como livros) ou um projeto que atravessa toda a obra do autor, é algo que se encontra para além de um livro isolado ou de um autor em específico. Ele, na verdade, ataca a noção de autor, destruindo a originalidade como se costuma conceber, como algo inovador, nunca antes pensado. As unidades precisam ser encontradas em um “projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí se formam”.

Não se trata, é necessário dizer, de uma descrição como numa análise da língua. Segundo o autor,

eis a questão que a análise da língua coloca a propósito de qualquer fato de discurso: segundo que regras um enunciado foi construído e, consequentemente, segundo que regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construídos? A descrição de acontecimento do discurso coloca uma outra questão bem diferente: como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar? [2]

Também não se trata de uma análise do pensamento, já que a análise discursiva lida com o que é dito. Ela não procura aquilo que está oculto, escondido, não trata o dito como algo alegórico, que ajuda a encontrar aquilo que automaticamente encobre em sua atuação.

Encontrar a unidade do discurso (numa descrição de um sistema de dispersão – que é o que os enunciados significam quando em conjunto com as regras de um discurso dado) é deixar para trás a primazia do sujeito (e, portanto, de operadores de síntese psicológicos, como a intenção do autor, seu projeto pessoal, o rigor de seu pensamento e etc) e abrir espaço para análise de outro tipo de relações: entre os enunciados (mesmo de autores que nem mesmo se conhecem); entre grupos de enunciados estabelecidos (“mesmo que não remetam aos mesmos domínios nem domínios vizinhos”); e entre enunciados e grupos de enunciados de uma ordem diferente (“técnica, econômica, social, política”).

Evitar esses cacoetes que nós empurram para uma análise de unidades fixa e rígidas do discurso é abrir possibilidade para liberar o discurso de suas amarras e analisá-lo em sua própria especificidade.

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Referências

[1] FOUCAULT, Michel. As unidades do discurso IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.26.

[2] FOUCAULT, Michel. As unidades do discurso… p.33.

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