O a priori histórico e o arquivo – Arqueologia do Saber

Enquanto o a priori histórico é o papel desempenhado pela positividade de um discurso, sua condição de possibilidade total, o arquivo é o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados, elemento essencial e horizonte último da análise do discurso foucaultiana.

Da série “A Arqueologia do Saber“.

O discurso, para ser identificado como tal, como uma unidade, precisa que se identifique nele um dado campo de batalha, um campo conceitual, em que os opositores podem se distanciar no mesmo nível e, a partir disso, começar suas lutas pela apropriação discursiva.

A positividade de um discurso – como o da história natural, da economia política, ou da medicina clínica – caracteriza-lhe a unidade através do tempo e muito além das obras individuais, dos livros e dos textos.[1]

A raridade dos enunciados[2] antevê este panorama. Se nem tudo pode ser de fato dito, então a positividade de um discurso é um campo estrito de práticas discursivas. São poucas as práticas que versam sobre “a mesma coisa”. Os enunciados e textos sob a mesma formação discursiva, portanto, não se encadeiam devido a uma lógica imanente a eles, uma identidade de formação gramática ou a recorrência de temas discutidos, eles se encaixam como parte de um mesmo campo a partir de uma mesma forma de positividade que lhes faz emergir.

Essa forma de positividade (e as condições de exercício da função enunciativa) define um campo em que, eventualmente, podem ser desenvolvidos identidades formais, continuidades temáticas, translações de conceitos, jogos polêmicos. Assim, a positividade desempenha o papel do que se poderia chamar um a priori histórico.[3]

Foucault, ao falar de um a priori, não tenta dar validade para um juízo, mas sim, dar condição de realidade para uma gama de enunciados. Ele não deseja encontrar a legitimidade da asserção de um enunciado,

mas isolar as condições de emergência dos enunciados, a lei de sua coexistência com outros, a forma específica de seu modo de ser, os princípios segundo os quais subsistem, se transformam e desaparecem. A priori, não de verdades que poderiam nunca ser ditas, nem realmente apresentadas à experiência, mas de uma história determinada, já que é a das coisas efetivamente ditas.[4]

Esse a priori terá que dar conta de todos os enunciados em sua dispersão, nas falhas que oferece devido sua não coerência, em todas as relações recíprocas de substituição ou superposição, em sua simultaneidade e substituição que nunca poderão ser dedutíveis.

A história que o a priori dá conta é uma maneira de mostrar que o discurso não tem somente um sentido ou uma verdade. Ele está para além da verdade que enuncia.

Por exemplo, que a história da gramática não é a projeção, no campo da linguagem e de seus problemas, de uma história que seria, em geral, a da razão ou de uma mentalidade, de uma história que, de algum modo, ela compartilharia com a medicina, a mecânica ou a teologia, mas que ela comporta um tipo de história – uma forma de dispersão no tempo, uma forma de sucessão, de estabilidade de reativação, uma rapidez de desencadeamento ou de rotação – que lhe pertence particularmente, mesmo se estiver em relação com outros tipos de história.[5]

O a priori, é interessante dizer, não está acima de qualquer historicidade: ele se define a partir das regras que caracterizam uma prática discursiva. Ele, portanto, é também um conjunto transformável, assim como qualquer formação discursiva.

Está longe de ser igual a um a priori formal, parado ao longo do tempo, uma especie de estrutura imutável. Se o a priori histórico se cruza com o a priori formal, é por estarem em níveis diferentes. Cruzam-se diagonalmente, portanto. De repente, percebe-se que o domínio dos enunciados, quando se articulam a partir de seus diferentes a priori históricos, deixa de ser uma planície infinita, como parecia no início d’A Arqueologia do Saber. Os diferentes sistemas de enunciados num dado momento formam um volume complexo e grandioso de material de análise, mais ainda, formam aquilo que Foucault vai chamar de arquivo, sistema de enunciados tidos como acontecimentos – com condições e domínio de aparecimento – e coisas – já que estão dispostos num sistema utilizável pelos diferentes sujeitos.

O arquivo não é uma soma de textos que uma cultura conseguiu armazenar. Não é um espaço de memória das instituições ou da identidade da sociedade estudada,

trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas; mas que tenham aparecido graças a todo um véu discursivo; que em lugar de serem figuras adventícias e como que inseridas, um pouco ao acaso, em processos mudos, nasçam segundo regularidades específicas: em suma, que se há coisas ditas – e somente estas -, não é preciso perguntar sua razão imediata às coisas que aí se encontram ditas ou aos homens que as disseram, mas ao sistema da discursividade, às possibilidades e às impossibilidades enunciativas que ele conduz[6]

O arquivo, termina Foucault, é “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares”[7]. Ele não protege os enunciados de seu envelhecimento, de seu esquecimento, mas também não os empurra para a morte: ele é aquilo que os organiza segundo regularidades específicas.

Portanto, o arquivo define o sistema de enunciabilidade do enunciado-acontecimento e o modo de atualidade (ou atualização) do enunciado-coisa, seu sistema de funcionamento. Longe da língua, que define o sistema de construção de frases ou seu corpus que recolhe e armazena as palavras enunciadas, o arquivo faz surgir enunciados, assim como acontecimentos regulares e diversas coisas oferecidas à manipulação: ele não é aquilo que separa e classifica, mas é um fator de classificação que gera os elementos que classifica, que possibilita sua enunciação. “É o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados”[8].

O arquivo não pode ser completamente analisado, é humanamente impossível. Muito menos será analisado o arquivo da sociedade presente, já que somos atravessados por suas formações discursivas – quanto mais longe do pesquisador, melhor a análise de um arquivo.

Ele só pode ser visto a partir de níveis e escolhas focais. Deve-se escolher pontos para análise, locais específicos.

As formações discursivas, por sua vez, são analisadas dentro do arquivo, horizonte último das análises dos discursos (que estão, sempre, dentro de um sistema geral de arquivo).

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. O A Priori Histórico e o Arquivo IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.154.

[2] Raridade, Exterioridade, Acúmulo IN: A Arqueologia do Saber: resenha detalhada. Colunas Tortas, acessado em 04/02/2016.

[3] FOUCAULT, Michel. O A Priori Histórico e o Arquivo… p.155.

[4] FOUCAULT, Michel. O A Priori Histórico e o Arquivo… p.156.

[5] FOUCAULT, Michel. O A Priori Histórico e o Arquivo… p.157.

[6] FOUCAULT, Michel. O A Priori Histórico e o Arquivo… p.157-158.

[7] FOUCAULT, Michel. O A Priori Histórico e o Arquivo… p.158.

[8] FOUCAULT, Michel. O A Priori Histórico e o Arquivo… p.159.

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