Da série “Doença Mental e Psicologia“.
Foucault se coloca contra a parede para entender o que é propriamente um objeto psicológico. O que é? Como se pode definir um fato propriamente da patologia mental e como ele se relaciona com os fatos da patologia orgânica? Aqui, é necessário entender patologia mental como sintomas psicológicos e patologia orgânica/fisiológica como sintomas orgânicos/fisiológicos[1].
Dito isso, o objetivo de Foucault com Doença Mental e Psicologia é “mostrar que a raiz da patologia mental não deve ser procurada em uma “metapatologia” qualquer, mas numa certa relação, historicamente situada, entre o homem e o homem louco e o homem verdadeiro”[2]. Ou seja, a razia dos sintomas psicológicos não está em um procedimento universal de busca à patologia, mas sim relação entre a razão e a loucura.
Para o filósofo francês, conforme aborda no primeiro capítulo do livro aqui tratado, há uma forma de operar as patologias mental e orgânica que ele chama de “patologia geral e abstrata”, que lhes impõe os mesmos conceitos e “métodos à maneira de postulados”. Esta patologia geral tem linha de desenvolvimento em duas etapas e, assim como a medicina orgânica, a medicina mental também as utilizou como instrumento para análise e verificação.
Por uma lado, a medicina mental desenvolveu uma sintomatologia, momento em que “são realçadas as correlações constantes, ou somente freqüentes, entre tal tipo de doença e tal manifestação mórbida: a alucinação auditiva, sintoma de uma estrutura delirante; a confusão mental, sinal de tal forma demente”; por outro lado, deu luz a uma nosografia, “onde são analisadas as próprias formas da doença, descritas as fases de sua evolução, e restituídas as variantes que ela pode apresentar: haverá as doenças agudas e as crônicas; descrever-se-ão as manifestações episódicas, as alternâncias de sintomas, e sua evolução no decorrer da doença”[3].
É com base nessas duas maneiras de se operar a medicina mental que Dupré definia a histeria como um “estado no qual o poder da imaginação e da sugestibilidade, unido a esta sinergia particular do corpo e do espírito que denominei psicoplasticidade, resulta na simulação mais ou menos voluntária de síndromes patológicas” (manifestação mórbida na passividade à sugestão e ao poder da imaginação e o tipo de doença a que se refere), ou que Kraepelin definiu a catatonia, hebefrenia e psicose alucinatória crônica como elementos da demência precoce, que intervém cedo no desenvolvimento da pessoa e causam total desordem na vida psicológica (a doença descrita em seu desenvolvimento).
Essas descrições de doenças ditas acima (assim como todas as descrições apontadas por Foucault no livro) emergem a partir de dois postulados que vivem em um único método. O primeiro postulado entende a doença como essência: os sintomas seriam um jeito de encontrá-la, no entanto, não são condição de existência da doença, já que ela existiria anterior a eles. Os sintomas são, por assim dizer, uma maneira de encontrar a doença, “descrever-se-á um fundo esquizofrênico oculto sob sintomas obsessivos; falar-se-á de delírios camuflados; supor-se-á a entidade de uma loucura maníaco-depressiva por detrás de uma crise maníaca ou de um episódio depressivo”[4].
O segundo postulado, por sua vez, existe para trazer algum equilíbrio ao postulado essencialista. Este é naturalista e considera a doença como espécie botânica, que observa as características permanentes de cada tipo de doença observada. “assim a Demência Precoce é como uma espécie caracterizada pelas formas últimas de sua evolução natural, e que pode apresentar as variantes hebefrênicas, catatônicas ou paranóides”[5].
Pode-se concluir, assim, que a tentativa de observar a doença mental sob o mesmo método da observação da doença fisiológico existe porque não se percebe uma diferença entre os dois tipos. A patologia, como já dito anteriormente, é medida a partir de um método metapatológico, uma maneira de perceber um fundo universal em todas as doenças. Apesar de não haver ligação direta entre os dois tipos de doença, o método único acompanhado pelos dois postulados descritos acima, colocam ambas em um paralelismo abstrato. Mas não se resolve, assim, o problema da unidade humana ou da totalidade psicossomática.
Com inspiração em Georges Canguilhem e seu texto O Normal e o Patológico, Foucault percebe que a noção de uma certa totalidade orgânica e psicológica, que passa a ter importância na medicina metal e orgânica, anula a tentativa de fazer da doença algo independente do sujeito doente. Há, entre a doença e o estado sadio, uma relação de dependência em que se torna impossível a primeira se manifestar como independente da segunda, portanto, como um corpo estranho ao organismo saudável, assim, o privilégio da análise sãos as reações globais do indivíduo.
Enquanto a patologia orgânica se organizou para entender os processos fisiológicos no conjunto da reações nervosas e vegetativas que funcionam como uma resposta global ao ataque da doença, na tentativa de privilegiar a totalidade psicológica, a patologia mental se debruçou sobre a doença como uma “alteração intrínseca da personalidade, desorganização interna de suas estruturas, desvio progressivo de seu desenvolvimento: só teria realidade e sentido no interior de uma personalidade estruturada”[6]. A patologia mental (e aqui é necessário pensar na psicanálise, que levou vantagem por trazer uma visão propriamente psicológica do sujeito), separou as doenças mentais em dois tipos, duas grandes categorias: neuroses e psicoses.
- As psicoses são perturbações globais da personalidade, que envolvem desde distúrbios de pensamento (pensamentos que fluem ao som de trocadilhos e sons aleatórios), alterações de humor (como na esquizofrenia e a ruptura do contato afetivo) até perturbações do próprio controle da consciência (como na crença da paranoia);
- As neuroses são alterações em pontos específicos da personalidade, como os rituais incessantes dos obcecados, ou a angústia que um objeto específico provoca ao fóbico. Apesar disso, nada muda em relação à estrutura do fluxo de pensamento ou das relações afetivas (que podem, inclusive, ser mais fortes) – o neurótico ainda conserva alguma lucidez sobre seus atos.
Percebe-se, então, que tanto a medicina mental como a medicina orgânica utilizam do mesmo método para observar a totalidade do organismo (ou da personalidade), que termina por definindo a patologia mental e orgânica em um só domínio, com uma única base, um método para colocar ambas em um paralelismo insuficiente para explicar as doenças metais. Por isso, Foucault afirma que “uma patologia unitária que utilizasse os mesmos métodos e os conceitos nos domínios psicológico e fisiológico é, atualmente, da ordem do mito”[7]. Tal frase provocativa coloca em jogo o paralelismo que a patologia mental e orgânica se utilizam: o uso dos mesmo termos ou de um discurso parecido não deve ser feito como o uso de método, com rigidez e delimitando objetos parecidos, mas somente como artifício de linguagem.
A patologia mental, explica Foucault, precisa de um método diferente por três motivos fundamentais[8,9]:
- A abstração: enquanto a patologia orgânica lida com a doença relacionando suas diferentes partes para conseguir chegar a um resultado mais aproximado, patologia mental leva em consideração outro elemento fora do sistema a qual a vida psicológica faz parte: a própria história do indivíduo e sua existência. Enquanto a medicina orgânica, para propor as relações que a doença pode ter com o todo, não a relaciona realmente com todo organismo, mas somente com um sistema específico, na medicina mental, o “todo” de fato leva em consideração a história individual inteira. “Em medicina orgânica, parte-se do doente para transcendê-lo; ou melhor, ainda que de modo metafórico, disseca-o para se chegar até a doença (isto é, o órgão doente) em seu sistema orgânico; em psicologia, o indivíduo em sua historicidade, é o limite metodológico da investigação e o sistema mesmo da doença”, explica Nalli.
- O normal e o patológico: enquanto a medicina, aos poucos, principalmente com Canguilhem, percebeu que a doença não era “uma coleção de fatos anormais, de ‘monstros’ fisiológicos, mas sim constituídos em parte pelos mecanismos normais e as reações adaptativas de um organismo funcionando segundo sua norma”, explica Foucault, a noção de personalidade em psiquiatria não permite tal aproximação, o que o próprio Canguilhem já havia notado, quando afirmou que seu livro valia para patologias fisiológicas, mas que não seria prudente aproximá-lo das patologias mentais porque o próprio doente poderia negar sua doença através dos sintomas dela (como o paranoico que não admite acreditar em delírios e realmente afirma a realidade dos sistemas que produz através de seus pensamentos persecutórios).
- O doente e o meio: a terceira diferença ressaltada por Foucault está na relação que o doente tem o meio que lhe circunda. Se em patologia orgânica é possível separá-lo, identificá-lo independente da doença, em patologia metal, é impossível separá-lo desta maneira, principalmente devido a noção de personalidade e indivíduo doente (que está doente como um todo, não só em um órgão específico) coloca em jogo uma relação complexa que envolve, inclusive, o terapeuta, aponta Nalli. Foucault dá como exemplo a personagem do histérico, que é circundada por relações com a família, ao perder seus direitos e recair a um estado de menoridade jurídica e moral; com a medicina, ao ser privada de sua liberdade; e que terminava com a própria sugestibilidade, condição da personalidade alienada, porém inseparável de uma suposta parte sadia (que não existe, na medida em que o indivíduo como um todo é desorganizado).
Não se trata, pois, tal como na medicina orgânica, de investigar apenas as causas reais da doença, mas também sua dimensão psicológica. Numa medicina mental, numa psiquiatria, e mesmo na psicologia e psicanálise, não se trata de reduzir o homem à sua condição de corpo e organismo. Trata-se, antes, de perceber seus traços análogos, por exemplo, que sua psique igualmente se processa em conformidade com um sistema causal, mas diferentemente do que se passa na physis; retroceder até as causas não é retroceder até estágios anteriores ou inferiores da psique[10].
Isso pois, Foucault admite implicitamente uma posição radical que diferencia homem e natureza, na medida em que as causas orgânicas não esgotam a possibilidade de encontrar causas na história individual ou de explicar a doença a partir da própria existência do indivíduo (que ele fará na abordagem fenomenológica, em capítulos seguintes). Daí a reivindicação para se escapar da metapatologia, da busca pelo método universal das doenças, pois ela é artificial. Ela só consegue trazer unidade às doenças na medida em que transforma paralelismo linguísticos em rigidez metodológica.
É necessário, pontua o filósofo francês, observar a doença mental no próprio homem, não nas abstrações sobre as doenças, não nos paralelismos forçados da metapatologia. Depois de buscar as formas concretas que podem ser atribuídas ao indivíduo, será tarefa do pesquisador entender quais são as condições que transformaram a loucura em uma doença irredutível, ou seja, investigar o que permitiu à loucura receber um status estranho de fim último da doença mental.
Referências
[1] REIS, Simone. TESHIMA, Márcia. A Propósito de “Doença Menta e Psicologia”. Disponível aqui para acesso.
[2] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Traduzido por Lilian Rose Shalders. Título original: Maladie mentale et psychologie (Presses Universitaires de France). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.5.
[3] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.5-6.
[4] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.8.
[5] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.8.
[6] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.9.
[7] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.11.
[8] NALLI, Marcos. Possibilidades e limites da cura nos textos protoarqueológicos de Michel Foucault. Trans/Form/Ação, Marília , v. 34, n. 2, p. 155-158, 2011 . Disponível aqui. Acessado em 23-10-2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732011000200009.
[9] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.11-13.
[10] NALLI, Marcos. Possibilidades e limites da cura nos textos protoarqueológicos de Michel Foucault…
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.