A doença e a história individual – Doença Mental e Psicologia

Da série “Doença Mental e Psicologia“.

Se, como visto anteriormente, a perspectiva evolucionista que guia a psicanálise em Freud e a psicologia do início do século XX em Jackson e Janet consegue integrar passado e presente, os transforma em uma unidade coerente e dependente, de maneira que somente o direcionamento regressivo típico da patologia mental poderia desintegrar tal relação harmônica.

Por usa vez, a história psicológica coloca passado e presente em oposição, cria uma relação de tensão entre ambos. “Na evolução, é o passado que promove o presente e o torna possível; na história, é o presente que se destaca do passado, confere-lhe um sentido e torna-o inteligível. O devir psicológico é, ao mesmo tempo, evolução e história”[1].

A evolução e a história individual são duas dimensões irredutíveis do devir psicológico, afirma Foucault, e o erro da psicanálise foi não ter dedicado atenção à história. Daí a virtualidade ideal das patologias sob a linha de desenvolvimento psicossexual, que não consegue identificar uma origem à doença ou a especificidade de seu aparecimento. Foucualt, por sua vez, ainda aponta a psicologia analítica como exemplo de bom uso da evolução (no uso dos Três ensaios sobre a sexualidade) e da história individual (em Cinco Psicanálises e textos relacionados).

Para explicar que a regressão envolve a fuga de um sentimento de culpa, o filósofo explica um caso relatado por Freud no livro Introduction à la psychanalyse: uma mulher por volta de seus 50 anos suspeita que seu marido tenha um caso com sua secretária, mas a desconfiança teve início em uma carta anônima enviada por indivíduo que não queria mais que vingança e não havia prova nenhuma de tal caso. No entanto, quanto mais a esposa percebe a fidelidade do marido, mais seu ciúme aflora, indicando que ele se cristaliza exatamente na certeza de não ser enganada.

Se o ciúme mórbido carrega a paranoia e, portanto, encontra subterfúgios para pensamentos sistêmicos e formas extremas de raciocínio, no caso acima, ele se expressava na constante tentativa de se negar e permanecer como remorso (de sentir ciúmes num caso em que ele cada vez mais não parece necessário). Segundo a análise psicanalítica, a mulher era apaixonada pelo seu genro, mas projetava o erro de amar uma pessoa mais jovem ao seu marido. Observando adiante, o caso também revela um amor ambivalente pelo genro, que esconde uma rivalidade ciumenta da mulher tendo como objeto sua filha, “no cerne do fenômeno mórbido encontra-se, pois, uma fixação homossexual com relação a filha”[2].

A regressão, agora vista com mais facilidade, é fruto da culpa, que tenta ser evitada a partir de uma fuga. A mulher foge da culpa de amar sua filha em excesso (portanto, foge de um erotismo homossexual em demasia), forçando-se a amar seu genro.

Os processos infantis de metamorfose do real tem, então, uma utilidade: constituem uma fuga, uma maneira vantajosa de agir sobre o real, um modo mítico de transformação de si mesmo e dos outros. A regressão não é uma queda natural no passado; é uma fuga intencional fora do presente. É mais um recurso do que um retorno.[3]

O passado, nos doentes, é evocado como facilitador para a fuga do presente. De certa forma, é o único jeito de fugir da tensão do presente que gera a culpa. O passado vem à tona na medida em que funciona como arma para irrealizar o presente.

No entanto, a dúvida que recai sobre Foucault é: por que fugir do presente para enfrentar perigos e tensões ainda maiores de uma vida passada, de um tempo em que os mecanismos de defesa ainda estavam em formação? Como é possível explicar esse retorno sem apelar para a simples repetição do passado, sem afirmar que há uma certa inércia patológica nas condutas?

O doente retorna ao passado a partir de uma necessidade de se defender de um medo presente. A vantagem encontrada na fuga para o passado está justamente na tensão presente que precisa de uma defesa, que se expressa na regressão.

A doença tem como conteúdo o conjunto das reações de fuga e de defesa através das quais o doente responde a situação na qual se encontra; e é a partir deste presente, desta situação atual que é preciso compreender e dar sentido as regressões evolutivas que surgem nas condutas patológicas; a regressão não é semente uma virtualidade da evolução, é uma conseqüência da história.[4]

Sendo assim, a investigação acerca da defesa psicológica que a regressão implica tem como resultado entender que o sujeito só repete seu passado quando responde uma situação presente. Mas Foucault se torna para outra dúvida: por que uma criança criaria mecanismos de defesa que mais tarde seriam repetidos em situações de tensão na vida adulta? Qual é o perigo permanente que se apresenta para a criança e passa durante sua vida a obrigando a retornar às respostas dadas em um passado infantil?

Primeiramente é necessário responder para que serve um mecanismo de defesa. Para isso, Foucault cita o caso da criança que rouba doces e é pega: ela rouba para reaver a atenção materna que não lhe é mais conferida, ao mesmo tempo sabe que o roubo pode ser punido e sente-se culpada, desta forma, a resolução viável é praticar o roubo, mas sob os olhos da autoridade, para ser propositalmente pega. O estratagema perfeito envolve, portanto, ser pego e o mecanismo de defesa é uma proteção específica diante de uma contradição.

Mas nem toda contradição tem como resposta uma reação patológica. A resposta neurótica, por exemplo, tem como característica a manutenção da tensão, que não é satisfeita com o compromisso que a criança, no exemplo acima, firmou entre satisfazer uma ânsia de atenção materna e remorso pelo roubo. Após a punição pelo roubo, o desejo de atenção aumentará, lhe colocando novamente em uma situação de tensão e nova punição. A vida externa do sujeito neurótico é completamente devastada pela patologia que não desenvolve um conflito normal, de dois polos divergentes, mas uma unidade complementar. E, de uma perspectiva interna, é a angústia que vai colocar o sujeito sempre em tensões maiores e impossíveis de resolução completa.

Com a angústia estamos no cerne das significações patológicas. Sob todos os mecanismos de proteção que singularizam a doença, revela-se a angústia e cada tipo de doença define uma maneira especifica de reagir a ela: o histérico recalca sua angústia e a oblitera encarnando-a num sintoma corporal; o obsedado ritualiza, em torno de um símbolo, condutas que lhe permitem satisfazer os dois lados de sua ambivalência; quanto ao paranóico, ele se justifica miticamente atribuindo aos outros projetivamente todos os sentimentos que trazem em si sua própria contradição; distribui para o outro os elementos de sua ambivalência, e mascara sua angústia sob as formas de sua agressividade. E a angústia também, como prova psicológica da contradição interior, que serve de denominador comum e que dá uma significação única ao devir psicológico de um indivíduo: ela foi experimentada pela primeira vez nas contradições da vida infantil e na ambivalência que elas suscitam; e sob seu impulso latente erigiram-se os mecanismos de defesa repetindo ao longo de uma vida seus ritos, precauções, suas manobras rígidas logo que a angústia ameaça reaparecer.[5]

É, portanto, a angústia que coloca o passado e o presente em relação, causando assim uma tensão característica que culmina na transformação da evolução psicológica na história individual. O sentido da conduta presente só existe na medida em que a angústia relacionou o tempo presente com a conduta passada. Isso ajuda a revelar a peculiaridade cíclica da doença: a partir de seus mecanismo presentes, o doente tenta evitar uma investida do passado (que se manifesta como angústia), mas ao mesmo tempo, contra a angústia atual, ele utiliza seus mecanismos instaurados em situações análogas no passado. É difícil dizer se o doente se protege do presente com ajuda do passado ou se protege-se do passado com mecanismo do presente.

Esta é uma característica da patologia mental: seu entorno cíclico é a monotonia circular de uma história não progressiva.

Desta forma, podemos recapitular que a psicologia focada no desenvolvimento psicossexual e, portanto, com viés evolucionista, precisa ser complementada por uma análise da história individual, que irá dar sentido para as condutas regressas praticadas no presente. O centro das significações psicológicas é a angústia, a partir dela as condutas mórbidas se ordenam. No entanto, na angústia nós encontramos um sentido ambíguo: se ela é sempre a presença que atormenta os sujeitos em todos seus episódios de crise causados pela patologia mental, ela também é aquilo que deu possibilidade para a existência da patologia como um todo. Ela acompanha o sujeito em seu desenvolvimento na medida em que precede sua própria constituição.

Sendo assim, então porque alguns indivíduos conseguem superar a contradição edipiana e outros são vencidos pelo terror da angústia e se transformam em doentes mentais? A história individual não consegue dar cabo desta explicação.

No entanto, podemos, como já dito, reafirmar a antecedência da angústia: ela acompanha o indivíduo em sua vida desde o início, porque ela é o princípio e fundamento da história de um indivíduo. Ela define as experiências dos indivíduos desde o início de sua vida, define a especificidade dos traumatismos da infância e dos mecanismos que desencadeiam ao longo de sua vida em episódios patológico. “Ela é como um a priori de existência”[6].

Sendo assim, saber que ela é um fato no devir psicológico não ajuda a explicar porque ela vence uns e é vencida por outros. É necessário, vai dizer Foucault, investigar a necessidade existencial da angústia, como ele fará no próximo (quarto) capítulo de Doença Mental e Psicologia.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Traduzido por Lilian Rose Shalders. Título original: Maladie mentale et psychologie (Presses Universitaires de France). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.27.

[2] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.28.

[3] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.29.

[4] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.31.

[5] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.35.

[6] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p.37.

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