A doença e a existência – Doença Mental e Psicologia

Da série “Doença Mental e Psicologia“.

FoucaultExiste um limite na análise da patologia mental a partir do desenvolvimento psicossexual, identificado por Foucault no segundo capítulo de Doença Mental e Psicologia, e ele se encontra na impossibilidade de dizer em qual momento a doença começa e porque justamente uma doença específica toma corpo em um indivíduo sadio. A linha de evolução psicológica era, quando visto no inverso, uma arqueologia da libido, e ordenava virtualmente todas as patologias mentais que deveriam ser procuradas pelo especialista.

Era necessário, portanto, procurar na história individual as tensões e o desenlace psicológico de uma dada patologia. Era justamente a história individual que conseguia dar sentido às condutas presentes que o evolucionismo teimava em enquadrá-las como condutas regressas, pois Foucault identificou em A Doença e a História Individual  o centro significativo das condutas como sendo a dinâmica da angústia. É ela, sempre presente na vida psicológica do indivíduo, desde a formação dos mecanismos de defesa até as tensões adultas, que colocaria o passado e o presente em relação, e conseguiria dar validade para a tese de que a patologia não é originária, mas sim original. Nada obstante, a história individual não conseguia explicar porque algumas pessoas eram vencidas pelas tensões enquanto outras resolviam seus problemas sem ficar com um quadro neurótico.

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A angústia não pode nunca deixar-se reduzir por uma análise de tipo naturalista; consolidada no cerne da história individual, para dar-lhe, sob suas peripécias, uma significação única, ela também não pode esgotar-se numa análise de tipo histórico; mas a história e a natureza do homem só podem ser compreendidas tendo-a como referência.[1]

No entanto, ao entender a angústia como a priori existencial, resta a Foucault exibir a singularidade da experiência da loucura e como o próprio doente percebe este estado.

Apreciação essencialista, portanto, da doença mental, que objetiva dissolver a ideia de que a mesma possa ser reduzida à ambivalência, cara à medicina orgânica, entre o normal e o patológico. O indivíduo que sofre de um transtorno mental forma sua personalidade não só em função de faltas e vazios com relação a estruturas alteradas na sua doença, mas também a partir do que de positivo ele constrói e compreende de sua própria condição. As relações de significação que o doente faz com o mundo são consideradas fundamentais na constituição de seu próprio transtorno.[2]

É necessário explicar que a apreciação essencialista se deve ao foco na própria apreensão da doença feita pelo sujeito, que leva com a angústia sua experiência em relação à patologia. Esta patologia, sendo assim, não seria encontrada fora do sujeito, mas sim em sua própria dinâmica, relembrando as pesquisas de Georges Canguilhem.

Segundo Foucault, é observando a experiência da patologia a partir do doente que poderemos relacionar o universo mórbido com as estruturas naturais construídas pela evolução e com os mecanismos cristalizados pela história individual. Falar sobre as fobias como consequências dos medos da criança não é suficiente, pois é necessário encontrar o mesmo estilo de angústia originária sob os sintomas mórbidos do indivíduo fóbico, para assim lhe atribuir uma unidade significativa.

Para isso, Foucault utiliza a intuição como forma de restituir a experiência fundamental dos processos patológicos. Ao contrário da análise naturalista, o sujeito não é um objeto para a intuição mas sim parte ativa da significação, pois é dele que tudo encontrado depende. Também seguindo caminho inverso da história individual, para a intuição, o sujeito não só é entendido, como também é compreendido. “A intuição, penetrando na consciência mórbida, procura ver o mundo patológico com os olhos do próprio doente: a verdade que busca não é da ordem da objetividade, mas da intersubjetividade”[3], por isso a penetra, reúne suas formas, a apreende e termina por fornecer uma compreensão da patologia.

Como a doença é original, cabe à fenomenologia, através de seu procedimento compreensivo, restituir o mundo mórbido, o universo patológico em que o doente vive e que é criado positivamente. Sob este empreendimento, a primeira noção que deve se esfacelar sob a égide da interpretação utilizada neste quarto capítulo de Doença Mental e Psicologia é aquela que classifica o médico totalmente ao lado da lucidez enquanto o doente seria seu inverso, completamente preso na loucura, pois este sabe sua condição, entende que sua confusão mental pode ser somente sua, portanto, uma doença. Apesar de não manter o distanciamento do médico, sua visão interna da doença ainda lhe permite entender que há alí uma doença (para ser aceita ou recusada).

Foucault pretende analisar as ambiguidades e alterações da consciência a partir da reflexão fenomenológica, identificando quatro pontos principais:

  1. A doença como objetividade, percebida pelo doente como algo distante, que não se identifica com ele, já que este só tematiza os conteúdo orgânicos da experiência da doença mental;
  2. O doente obsessivo, psicótico e esquizofrênico reconhece seu estado mórbido, mas, além disso, ele também percebe que a doença traz consigo uma nova maneira de entender o mundo, um novo sentido de vida: uma significação que pode inclusive danificá-la e acabar com ela;
  3. A relação do mundo mórbido e do mundo real não se mantém equilibrada: o processo mórbido toma conta da vida do doente, que passa a considerá-lo o real, devido à consistência que as alucinações promovem e à consolidação das variáveis que o delírio permite.

    Um alucinado pergunta a seu interlocutor se ele não ouve, corno ele, as vozes que o perseguem; intima-o a render-se a esta evidência sensível; mas se lhe é oposta uma negação ou uma ignorância maciça dos fatos que invoca, ele acomoda-se bastante bem, e declara que, nestas condições, é o único a ouví-las. Esta singularidade da experiência não invalida para ele a certeza que o acompanha; mas ele reconhece, aceitando-o, afirmando-o mesmo, o caráter estranho e dolorosamente singular de seu universo; admitindo dois mundos, adaptando-se tanto ao primeiro quanto ao segundo, ele manifesta no fundo de sua conduta, uma consciência específica da sua doença.[4]

  4. O doente é absorvido pelo mundo da doença nas últimas formas da esquizofrenia. No entanto, ainda sente a presença do universo que deixou, mesmo que longínqua. Foucault cita as impressões de Séchehaye, médico que cuidou e curou uma mulher esquizofrênica: “ter-se-ia dito, narra ela, que minha percepção do mundo me fazia sentir de um modo mais agudo a estranheza das coisas. No silêncio e imensidade, cada objeto delineava-se nitidamente, destacado no vazio, no ilimitado, separado dos outros objetos. Por ser sozinho, sem ligação com o que o cercava, ele se punha a existir… Eu me sentia rejeitada pelo mundo, fora da vida, espectadora de um filme caótico que se desenrolava incessantemente ante meus olhos, e do qual não conseguia participar”. E um pouco mais adiante, acrescenta: “as pessoas me aparecem como num sonho; não consigo mais distinguir seu caráter particular”. A consciência de doença só é então um sofrimento moral imenso, diante de um mundo reconhecido como tal por referência implícita a uma realidade tornada inacessível.[5]

Foucault entende que o tempo do esquizofrênico se divide entre uma profunda fragmentação, causada pela angústia e a infinitude sem conteúdo do delírio eterno.

Os delirantes têm uma relação ambígua com a realidade, na medida que as distâncias aumentam e diminuem sem ligação direta com a realidade, quando escutam vozes, reconhecem no presente pessoas que estão em lugares distantes e não conseguem situar-se em espaços fixos, já que os eixos de referência são sempre fluidos, móveis. Os objetos, no espaço do delirante, não conseguem ter o brilho de significado que a realidade lhes imputa. Passam a fazer parte de uma realidade cinza, opaca, meramente significante, sem um sentido aparente. Alguns doentes podem apresentar-se em espaços rígidos e duros, sentem-se presos, duros, espessos e afirmam seu isolamento da realidade ao se colocarem em situações que os destacam do real. O universo social e cultural é perdido em sua falta de brilho e em sua distância do doente, não há mais compromisso com a linguagem.

Por fim, a doença age no corpo do doente, em sua pele, tornado-a estranha ao sujeito. Já não é mais possível saber o que fazer com o corpo ou de que o corpo é capaz, daí o sentimento de leveza e a vontade de voar que coloca o doente em desequilíbrio. As doenças relativas ao corpo, como medo de engordar, anorexia, indiferença afetiva, todas produzidos a partir do estranho do eu com o corpo, levaram Ellen West, paciente de Binswanger, a se suicidar depois de treze anos. O mundo mórbido, diz Foucault, não só não é inexplicável pela causalidade histórica da psique, como é pressuposto da existência de uma história psicológica, já que é ele que coloca em relação o efeito e a causa. Mas que mundo é esse? O que é o mundo mórbido?

Não estaríamos sendo enganados ao admitir que ele não é a mesma coisa que o mundo do homem normal? O mundo mórbido é como um mundo só do doente,

É na realidade, um mundo cujas formas imaginárias, e até oníricas, sua opacidade a todas as perspectivas da intersubjetividade, denunciam como um ‘mundo privado’, como um idionkósmon; e Binswanger lembra a propósito da loucura, o dito de Heráclito a propósito do sono: ‘Os que estão acordados tem um mundo único e comum (ena kai koinon kósmon); o que dorme volta-se para seu próprio mundo (eis idion apostrefe sthai)’[6]

A doença, assim, é como que retirada da pior das subjetividades e posta na pior das objetividades, afirma Foucault. Mas o mundo mórbido, como abandono do mundo sadio, real, coloca em cheque a própria constituição do mundo, não seria necessário investigar o lugar em que a loucura é classificada como “doença”, antes mesmo de tentar compreender que mundo particular é esse da doença e qual é o mundo sadio? É sobre este assunto que o filósofo vai tratar no próximo capítulo.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Traduzido por Lilian Rose Shalders. Título original: Maladie mentale et psychologie (Presses Universitaires de France). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.38.

[2] SILVEIRA, Filipa. Antropologia e doença mental em Foucault: Caminhos do homem rumo à perda de sua verdade. Revista Perspectiva Filosófica, v. 2, n. 40, 2013, p.60.

[3] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p, 38-39.

[4] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p, 41-42.

[5] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p, 41-42.

[6] FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia… p, 43.

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11 Comentários

  1. Vinicius Siqueira, agradeço eternamente por estar desenvolvendo este trabalho de divulgar a Verdade sobra a Loucura. O teórico escolhido, Michel Foulcalt é o cara certo pra essa luta.

  2. Escrever pra Todos é necessário. Escrever de um jeito que o povo entenda é necessário. A força popular decide a luta. A força popular legitima a Teoria.

  3. Parabéns Vinícius, pelo belo trabalha que vem fazendo ao proporcionar boas leituras sobre Foucualt. A cada dia que passa o mundo descobre Michel Foucault!!!

    1. Luiza Martins, se você gosta do assunto sincronicidade existe um livro do Carl Gustav Jung chamado “Sincronicidade”. O cantor Sting e o The Police tem uma música chamada “Sincronicity” que você encontra no Youtube. A sincronicidade é um dos primeiros fenômenos que você analisa quando faz Psicanálise.
      Christian Dunker, psicanalista lacaniano e professor da USP, fala sobre sincronicidade no Youtube.
      Eu também gosto de sincronicidade.

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