Trabalho – Modernidade Líquida

Da série “Modernidade Líquida“.

O trabalho na modernidade sólida era considerado exatamente aquilo que iria construir o futuro. As bases do futuro seriam produto de intenso trabalho feito no presente, a quem é confiado o progresso,  pois este por sua vez é uma maneira de entender que o presente é capaz de criar o futuro.

Quando se fala sobre o progresso, há duas noções escondidas: 1) a crença de que nós estamos alinhados com o tempo, ou seja, não estamos atrasados; e 2) somente nós mesmos podemos fazer algo acontecer, a história está em nossas mãos.

Tudo o mais que possamos querer dizer ou ouvir sobre a “essência” da idéia de progresso é um esforço compreensível, ainda que fútil e equivocado, de “ontologizar” aquele sentimento de fé e autoconfiança.[1]

A ligação do progresso com a autoconfiança, segundo Zygmunt Bauman, é direta. Nestes termos, fica claro a dissolução da ideia de progresso na dita pós-modernidade, pois a fé no progresso exige uma autoconfiança coletiva impossível, exterminada pelos desejos egoístas do indivíduo padrão do capitalismo pesado. Não há uma clara agência que pretenda mover o mundo para frente, isso porque não se sabe exatamente quem pode fazer algo efetivo para mudar o mundo para melhor. A queda do discurso de Joshua, o discurso que costumava dar-nos o modelo de ver o mundo e sua gestão baseada na centralização dos recursos e das decisões, como já pontuado anteriormente, deu lugar à hegemonia do discurso do Gênesis, em que o caos é a regra fundamental, amparado pela própria privatização do controle da vida promovido na modernidade líquida.


Receba tudo em seu e-mail!

Assine o Colunas Tortas e receba nossas atualizações e nossa newsletter semanal!


O ponto é que elementos sólidos e vistos como inabaláveis, como o modelo de fábrica fordista ou os Estados soberanos, perderam o controle e não são mais capazes de administrar e organizar o mundo. Para além da possibilidade de fazer acontecer, há também a questão sobre o que vai acontecer: Bauman diz que a dúvida também está na probabilidade dos projetos sociais serem mesmo capazes de transformar o mundo num lugar mais feliz, já que as experiências no século XX demonstram que qualquer projeto tem elementos de alívio e de intensificação da tristeza, assim como de castração e reprodução da felicidade. A noção de que um corpo coletivo poderia conseguir a felicidade geral a partir de dedicação mútua não cabe mais nos planos do indivíduo atual. Bauman afirma que

Se, no entanto, a idéia de progresso em sua encarnação presente parece tão pouco familiar que chegamos a nos perguntar se ainda mantemos, é porque o progresso, como tantos outros parâmetros da vida moderna, está agora “individualizado”; mais precisamente – desregulado e privatizado. Está agora desregulado – porque as ofertas de “elevar de nível” as realidades presentes são muitas e diversas e porque a questão “uma novidade particular significa de fato um aperfeiçoamento?” foi deixada à livre competição antes e depois de sua introdução.[2]

O aperfeiçoamento não é mais uma questão coletiva, não é mais pensado como parte de um projeto que visa aumentar os níveis de qualidade para a vida, o aperfeiçoamento é agora parte das escolhas de homens e mulheres individuais que deverão, às suas custas, usar seu juízo, seu recursos, seu próprio tempo e dinheiro, para satisfazer-se eternamente, já que não há referência de objetivo a ser alcançado. A tendência é que surjam condições de existência individualizadas, atomizadas, que se sustentam diretamente no indivíduo, não mais na coletividade.

O trabalho, por sua vez, condição a priori do aperfeiçoamento, foi considerado durante a modernidade como seu principal valor, entre outros motivos, por sua capacidade de “dar forma ao informe e duração ao transitório”[3]. Esta habilidade particular deu ao trabalho o papel de colonizar o futuro, de fazer do caos algo previsível. Seria o trabalho aquilo que aumenta a riqueza das nações e faz do humano dono de sua vida.

“O ‘trabalho’ assim compreendido era a atividade em que se supunha que a humanidade como um todo estava envolvida por seu destino e natureza, e não por escolha, ao fazer história”[4]. Daí a ideia de que o trabalho é a condição natural dos seres humanos e, portanto, não trabalhar seria classificado como anormalidade, algo a ser evitado, seria necessário coagir cada indivíduo para o trabalho e jogar dentro do conceito de trabalho uma satisfação intrínseca em sua própria atividade.

No entanto, se a fé na capacidade humana tem decaído junto a validade do conceito de progresso, que já não tem justificativa numa sociedade sem autoconfiança, o todo para qual o trabalho seria o motor de aperfeiçoamento também deixa de ter delimitações claras, a ordem total não parece mais ser uma ideia razoável e o futuro deixa de ser algo distante, que existe um comprometimento a longo prazo, e passa a ser uma fatia menor e mais próxima do cotidiano presente. Na modernidade líquida, a continuidade deixa de ter o valor acumulativo que o aperfeiçoamento pede, já que o tempo é um conjunto de fatias separadas justapostas, em série. E neste contexto, nenhum projeto de vida suporta de fato uma vida inteira, viram uma piada.

A alegoria de Bauman para este modo de experimentar o mundo está na relação entre os nômades e os sedentários. Segundo o sociólogo, o povo nômade transmitiu aos sedentários uma alegoria da condição humana baseada na figura do labirinto, os sedentários, por sua vez, ao ganharem força na Europa através da instituição de sociedades prósperas, enfrentaram o labirinto da condição humana: nas línguas europeias, diz Bauman citando Attali, passam a considerar o labirinto como um sinônimo de complexidade artificial, enquanto a clareza traz consigo o significado da lógica. Ao se enfrentar o labirinto, o embate se dá contra um mundo de episódios isolados, sem ligações, sem continuidade, sem história. O mundo do labirinto é o mundo do jogo, não da construção da ordem futuro, projeto empreendido a longo prazo.

Os nômades ganharam espaço na modernidade líquida na medida em que o labirinto, a vida por etapas curtas e postas em série, ganhou na organização temporal e social da sociedade contínua, dos projetos a longo prazo. O resultado é a mudança do status do trabalho: de um projeto de vida. Tornou-se uma atividade imediata, tendo como modelo explicativo o bricoleur. O trabalho na dita pós-modernidade é feito de uma oportunidade, não de um projeto, é feito a partir do que se tem, não do ponto em que se quer chegar. É uma tarefa de remendo, não de construção de futuro, na medida em que o mundo atual não é modificado, mas sempre reproduzido a partir da própria prática sem direcionamento dos indivíduos. Não se vê no trabalho nem uma formação moral, nem um modelamento ético, já que não há projeto para se engajar, não há condutas para alcançar esse projeto. O trabalho tem valor estético maior que ético, deve ser aproveitado naquilo que é, não em seus resultados futuros, deve ser pensado na satisfação do consumidor, não na produção de um mundo melhor.

Bauman utiliza o argumento de Karl Polanyi, em sua atualização de Karl Marx, para explicar que a possibilidade de ver no trabalho um elemento separado da vida, portanto, algo que pode ser vendido, teve como fundamento “a separação dos trabalhadores de suas fontes de existência”[5]. Este evento fez parte de um processo maior, de separação da produção e da troca e, portanto, da fragmentação de algo que era inscrito numa vida indivisível. A fragmentação deu caminho para que a terra, o trabalho e o dinheiro se transformassem em meras mercadorias.

A separação das atividades produtivas do resto dos objetivos da vida permitiu que o “esforço físico e mental” se condensasse num fenômeno em si mesmo – uma “coisa” a ser tratada como todas as coisas, isto é, a ser “manipulada”, movida, reunida a outras “coisas” ou feita em pedaços.[6]

Um exemplo de totalidade que condensava diversos fenômenos era a terra, na visão pré-industrial de riqueza. Ela colocava dentro de si ela própria, aqueles que a cultivavam e a aravam. A riqueza só passou a ser vista nos braços dos seres humanos quando a Grã-Bretanha, terra que iniciou tal tipo de visão, destruiu todo seu campesinato e fez com que seus cultivadores de terra ficassem ociosos, vagabundos, sem nenhum senhor (já que não havia terra para trabalhar). A ordem que nasce junto a nova visão de trabalho da sociedade industrial é “construída”, ou seja, é projetada, não é produto do acaso, mas tenta ser autoconsciente e quando percebe que o trabalho é a fonte de toda riqueza, essa nova ordem estruturada pela razão tenta extrair o máximo que pode dele.

A extração máxima do trabalho é vista no modelo de fábrica fordista: o mito do aumento de salários dado por Ford para que seus empregados pudessem comprar os carros que fabricavam encobre o motivo verdadeiro da ação heterodoxa do diretor, pois o objetivo do aumento de salários era diminuir a rotatividade em sua empresa, o que lhe causava atraso na produção e, portanto, perda de dinheiro. O objetivo de Ford era prender, fixar e manter os empregados em sua fábrica, de preferência até que toda capacidade produtiva de cada empregado acabasse.

Este modelo gera uma relação face a face de trabalho e capital. Segundo Bauman, essa relação é até mesmo complementar, para além de comportar um embate permanente, já que os empregados tinham que se manter fortes e saudáveis para serem de fato empregados e os empregadores precisavam continuar comprando trabalho e mantendo o proletariado empregado. O Estado de bem-estar social tinha como função manter todo exército reserva apto ao trabalho, sua função era dar cabo daqueles que não poderiam ser empregados, mas que seriam de fato encarregados de alguma tarefa num futuro próximo. A tarefa do Estado de bem-estar social era colocar na linha da normalidade toda população anormal, mantê-los no interior da sociedade normalizada. Capital e trabalho, portanto, são lados casados, formam uma relação impossível de dissociar naquele momento histórico.

O salto da pós-modernidade é a tarefa individual de projeto de vida, reforçada pela incerteza típica de nossos tempos. A incerteza é uma força individualizante, ela é uma maneira de evitar e desvalorizar a solidariedade, a firmação de laços com objetivo de conquistar algo a longo prazo. Todo sofrimento contemporâneo foi feito para ser sofrido em solidão, propositalmente não se somam, não conseguem se acumular e, portanto, não podem ser parte de algo comum. Os sofrimentos individuais evitam a associação militante entre trabalhadores como era feito nas décadas passadas, já que não há mais solidariedade que os coloque no mesmo grupo. O desencantamento da militância sindical segue de mãos dadas com a desregulamentação galopante do trabalho, no Brasil vista através da constante pejotização de profissionais.

A presente versão “liquefeita”, “fluida”, dispersa, espalhada e desregulada da modernidade pode não implicar o divórcio e ruptura final da comunicação, mas anuncia o advento do capitalismo leve e flutuante, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento dos laços que prendem o capital ao trabalho.[7]

Com a extraterritorialidade do capital, as instituições políticas não podem fazer muito mais do que adular o capital, para que se fixe por momentos a mais no mesmo local. A única chance de um governo preocupado com o bem-estar de seus cidadãos, mas ainda preso aos moldes de sociedade capitalistas, é jogar o jogo das empresas, da iniciativa privada, e utilizar seu poder de regulação para fazer o inverso: desregular, desmantelar e destruir as leis e estatutos considerados impeditivos aos interesses do capital, assim, conseguem alguma credibilidade e confiança do setor privado e recebem em contrapartida migalhas de segurança para sua administração.

Na prática, isso significa baixos impostos, menos regras e, acima de tudo, um “mercado de trabalho flexível”. Em termos mais gerais, significa uma população dócil, incapaz ou não-desejosa de oferecer resistência organizada a qualquer decisão que o capital venha a tomar.[8]

Dentro dessa perspectiva, quem mais sofre é o trabalhador de rotina, o proletário de trabalhos repetitivos, que não interage com o cliente e não precisa renovar seu método de trabalho constantemente, pois ele é o mais fácil de ser substituído e é o mais vulnerável às mudanças de interesse geográfico do capital. Sennett é citado por Bauman por ter um trabalho relevante na análise ao longo do tempo da moral dos trabalhadores no mesmo local, uma de suas conclusões foi a diminuição da motivação e da moral dos trabalhadores após rodadas sucessivas de demissões nas ditas reduções de tamanho (downsizing), em vez de ficarem mais confiantes em seus cargos, perderam o interesse em investir tempo e raciocínio num emprego que não lhes dava nenhuma segurança.

Procrastinação

O aperfeiçoamento constante, objetivo dos projetos de ordem da modernidade, contra o consumo imediato e o trabalho como estética, situações observáveis na contemporaneidade, segundo Bauman, podem ser explicados com a alegoria da procrastinação. Essa, analisa o autor, é uma posição ativa frente aos eventos, pois deixa propositalmente para o amanhã algo que seria, no acaso, colocado no presente. Ela parte do princípio de que o tempo pode ser, a partir de sua prática, manipulado pelos agentes.

Na modernidade, a procrastinação ganhou um novo significado, agora baseado no tempo enquanto história, um significado que leva em consideração a passagem do tempo enquanto a troca sucessiva de “momentos presentes”. É como a vida do peregrino, que caminha naquilo que não é passo-a-passo, um de cada vez. A ambivalência da vida do peregrino está na realização da viagem, pois o sentido da vida peregrina é a viagem em direção da realização: a própria peregrinação, então é um caminho suicida, não pode sobreviver depois de sua própria feitura. A procrastinação é berço de uma ambivalência parecida, na medida em que aquilo que é procrastinado, o é para ser aproveitado futuramente, pois estender infinitamente o fim de uma tarefa é fazê-la para sempre.

É necessário imaginar a procrastinação diferente do senso comum, não como a preguiça de fazer algo, mas como a manipulação do tempo para o término de uma tarefa, de maneira que o término sempre adiado é amparado por um processo de produção sempre estendido.

Este princípio de adiamento da satisfação foi fundamental para o modo de vida moderno, já que a transformação feita pelo trabalho envolve a noção de que podemos investir mais para lucrar no futuro, plantar mais para colher no futuro. Foi a paciência, não a pressa, que possibilitaram a criação de máquinas para facilitar o trabalho: esta paciência se envolve em nunca acabar o processo de produção, de criação, de planejamento para cada atividade humana.

Atualmente, a ambivalência da procrastinação leva a dois caminhos opostos: o primeiro se refere ao adiamento eterno que se traduz no trabalho pelo trabalho, o trabalho como um fim em si. Já a outra tendência se refere à estética do consumo, sendo o trabalho instrumentalizado como forma de satisfação de quereres imediatos e a paciência, a espera, um mal a ser evitado. O adiamento é estendido indefinidamente pela ética do trabalho, ao mesmo tempo é abolido pela estética do consumo.

Na cultura do consumidor, o valor da procrastinação é o relativo à estética do consumo, funciona como negação da própria procrastinação, portanto, abolição da espera, satisfação imediata de desejos de compra.

Precarização

No mundo dito pós-moderno, a precarização é condição preliminar da sobrevivência dos indivíduos, isso recai no emprego e no trabalho principalmente. De certa maneira, o desemprego se tornou estrutural em países prósperos, afirma Bauman. Para cada nova vaga criada há a abolição de diversos postos de trabalho, processo esse constituinte do próprio progresso tecnológico, do esforço moderno de racionalização que se mantém no giro econômico.

As pessoas já vulneráveis diante do capital não estão em condições melhores, pelo contrário, cada vez mais se veem em um mundo precário e descartável, experimentam o mundo como um lugar sem sentido, feito de objetos que servem para uma utilização e imediato descarte. A política de precarização feita pelos administradores do mercado finda o casamento do trabalho com o capital e faz dessa relação somente um laço frágil pronto a ser quebrado a qualquer momento de baixa satisfação. Laços sociais são, agora, feitos para serem consumidos, não mais produzidos. Não se cria laços a partir de um processo de produção permanente, mas se consome algo definido a priori.

O lado fraco da relação é o trabalhador, que perde para o capital por estar sempre local, não extraterritorial, por ser manejado conforme as necessidades imediatas do capital, não por prender o capital em sua produção máxima. O trabalhador precarizado é passivo em relação aos investidores do capital financeiro. É irrelevante em sua humanidade. Ao mesmo tempo, é desinteressado em relação aos grupos de trabalho que poderiam resolver alguns de seus problemas, como os sindicatos. A falta de engajamento e impossibilidade de ação coletiva são fatores essenciais para as maiores dificuldades contemporâneas em encontrar possibilidades de mudanças.

Curso de filosofia do professor Anderson

Referências

[1] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 152.

[2] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 155.

[3] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 157.

[4] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 157-158.

[5] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 162.

[6] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 163.

[7] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 171.

[8] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 172-173.

6 Comentários

Deixe sua provocação! Comente aqui!