“No” é um drama chileno que narra um pedaço da história de seu país: o famoso plebiscito de 1988. René (Gael García), publicitário recém-chegado ao Chile depois de um período em exílio, é o personagem principal que, ao ser convidado para participar da campanha contra a eleição do General Augusto Pinochet, estabelece relações peculiares com seu chefe, com sua família e amigos.
Cartaz do filme “No”.
O filme, lançado em 2012 (concorreu ao oscar de melhor filme estrangeiro neste ano) se passa no Chile de 1988, quando, para se legitimar perante as outras nações, a ditadura de Pinochet propõe o plebiscito que determinará se o general ficará por mais 8 anos no poder. A entrada de Pinochet no poder se tinha dado por via de um golpe de Estado, em 1973, no presidente eleito democraticamente, Salvador Allende – desde então, por quinze anos, um regime de medo e repressão caiu sobre os chilenos.
General Pinochet.
René, o publicitário apolítico
René Saavedra é um publicitário que, com um discurso pronto, começa suas apresentações para diferentes empresas: “Este comercial está inserido em um contexto social. Hoje o Chile é um país que pensa no futuro”. Não importa o que ele vai apresentar, essa é a frase inicial que introduz os observadores ao seu trabalho. É uma declaração de confiança no próprio trabalho, uma tentativa de o colocar em bases mais sólidas – contexto social – e projetá-lo, dar-lhe uma importância – futuro -, mas nada disso retira o cinismo da sua fala.
Quando é chamado para a campanha do “Não”, primeiramente, só vai avaliar como ela está, como se encontra, a que passos o grupo responsável pela preparação de toda a propaganda caminha. De repente, meio que por amizade, se vê envolve na campanha, mas nunca, nunca como militante. Digo, a campanha enquanto campanha é de vital importância, mas o “Não”, este voto particular que retiraria Pinochet do poder, para ele, tanto faz.
O publicitário René.
Um exemplo desta face apolítica de René também se dá pelos conflitos que arranja com seu chefe, Luis Guzmán – enquanto este é coordenador da campanha pelo “Sim”, René está envolvido com a campanha pelo “Não”, mas se você pensou que isso geraria um conflito político, engana-se: o conflito é técnico! As críticas que se dirigem são crítica técnicas, críticas profissionais – o trabalho de ambos não é afetado. René não quer sair de seu emprego e seu chefe não quer demiti-lo.
É com esta atitude que a campanha do “Não” é dirigida. Ao contrário dos militantes responsáveis pela primeira versão da propaganda, René não se importa se a ditadura foi ruim, temerosa, se foi o terror e o medo cotidiano; o que importa é ganhar o plebiscito por meio de uma maioria de votos, o que só seria conseguido com uma propaganda de massas.
René com o líder comunista Pró-Não.
É com isso que a propaganda prévia é totalmente reformulada. Ela tinha um conteúdo político – verdadeiro – que não abarcaria uma massa votante. Um conteúdo que não conquistaria nenhum público. O “Não”, para Saavedra, não poderia ser uma ação política consciente, deveria ser a compra de um produto e, para tal, precisaria ser um objeto de desejo. É por isso que a alegria se torna tema de fundo para suas propagandas, despertando a ira de boa parte dos militantes pró-não.
Quando tudo vira questão de consumo
“Isto é tudo? Essa propaganda não vende” – Esta é a resposta imediata de Saavedra após dar sua primeira olhada na campanha do “Não”. Ela não vende: isso não é só termo publicitário, não é só discurso publicitário, é uma lógica de época. É preciso vender uma posição política.
O filme retrata uma inversão já dita: a ação política se torna consumo e a reflexão se torna desejo. René sabe que o melhor para conseguir garantir o “Não” é transformando algo que é tido como “velho”, como anacrônico, como chato, em algo “novo”, algo que simbolize uma suposta liberdade. Uma das coisas que qualquer país capitalista preza é a noção de liberdade individual manifesta na liberdade de consumo.
René em seu escritório.
Ao transformar a campanha política em campanha publicitária, René traduz uma época onde o mais importante é consumir – nem que seja uma posição política. As ferramentas publicitárias que utiliza (e que, no filme, funcionam) contribuem com a inversão do discurso político pautado numa realidade que deve ser evitada, ou seja, na ditadura de Pinochet.
A cena final, que mostra René sem ação após a vitória do “Não”, demonstra que, no fundo, ele sabe que aquilo foi somente uma campanha vitoriosa: é a imagem do apolítico. Após o plebiscito, seu trabalho volta à normalidade com seu derrotado chefe. Nada muda em seu microcosmo.
Vinicius Siqueira, Publicado originalmente no site Obvious Magazine
Instagram: @poressechaopradormir
Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudo do biopoder nos textos foucaultianos.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.