Afastei-me da filosofia no momento em que se tornou impossível para mim descobrir em Kant alguma fraqueza humana, algum acento de verdadeira tristeza.[1]
Em sua obra, o pensador franco-romeno Emil Cioran, que leu os moralistas franceses, filósofos alemães como Hegel, Kant, Nietzsche, Schopenhauer, entre muitos outros, escreve, em seu tom sempre lírico, sobre a inanidade da filosofia.
Em última instância, o exercício filosófico seria ineficaz em seu objetivo, qual seja: o de elucidar e conhecer, de modo a fazer cessar a aflição que há frente ao desconhecido. Neste objetivo, diz Cioran, a filosofia é diminuída frente à música, à literatura e à poesia, pois “não se pode eludir a existência com explicações, só se pode suportá-la, amá-la ou odiá-la, adorá-la ou temê-la (…).”[2].
Tido muitas vezes como filósofo “irracional”, Cioran é, na verdade, um antirracionalista e autodenominado antifilósofo; alguém que optou por delimitar a razão como recurso.
Muito pouco dos sofrimentos humanos está presente na Filosofia, o que torna seu exercício respeitável, mas não fecundo. Esta é sua principal crítica à tradição filosófica, academicista e conceitualista, e seu desconforto frente a esta aparece cedo, em seu segundo livro, escrito em sua língua materna em 1934 aos 24 anos de idade:
A filosofia é a expressão da intranquilidade dos homens impessoais. Por isso nos ajuda tão pouco a compreender, em sua totalidade, as vivências dramáticas e últimas.[3]
Ou seja, ela nos afasta daquilo que Cioran trabalha em toda sua obra: sua origem orgânica, no desespero da carne. Por isso seu pensamento é tido como “fisiológico”, e aqui vale lembrar a importância crucial da experiência da insônia vivida pelo pensador durante sua juventude, a qual o fez ter uma percepção do Tempo e do Vazio exclusiva àqueles que são desprovidos da ilusão de “recomeço” fornecida por uma noite de sono.
Diante do homem abstrato, que pensa pelo prazer de pensar, surge o homem orgânico, que pensa sob a determinação de um equilíbrio vital que está além da ciência e além da arte. Gosto do pensamento que mantém o aroma de sangue e de carne e prefiro mil vezes, à abstração vazia, a reflexão gerada por uma efervescência sexual ou por uma depressão nervosa. (…) é infinitamente mais importante questão do sofrimento que a do silogismo (…). Cabe lembrar que a filosofia é a arte de mascarar sensações e suplícios íntimos a fim de enganar o mundo sobre as verdadeiras raízes do filosofar.[4]
As “definições” são tentativas falhas
É por meio da palavra que tentamos elucidar nossa existência de modo a melhor suportá-la. Isso fica evidente na poesia, que Cioran reconhece ser mais eficaz, neste sentido, do que a filosofia. Ele confessa ter escrito seus livros (que não à toa são dotados de extremo lirismo) em tentativas de autopreservação, pois “um livro é um suicídio adiado”[5].
No entanto, as definições, diz ele, tentam cumprir o mesmo papel, e pecam ao tentá-lo. Elas são meras tentativas de nos sobrepormos ao Nada: o Ser só se define por desespero.
É o uso do conceito que nos torna donos de nossos temores. Dizemos: a Morte, e esta abstração nos exima de experimentar sua infinitude e seu horror.[6]
Sua compreensão de “conhecimento” em muito assemelha-se à de Nietzsche, no sentido de que os conceitos são um produto “demasiado humano” para serem tomados como representação fiel da realidade. O “vício de definir” faz de nós tanto assassinos, já que sempre teremos definições limitadas dos objetos, assim como vítimas, pois em seguida curvamo-nos a nossas definições.
O que importa, porém, não é exatamente se o discurso é capaz de exprimir a realidade, ou se podemos conhecê-la, mas sim que, por mais que possamos conhecê-la e que o discurso de fato a exprima, é uma ilusão pensar que isso pode nos ajudar a suportar a existência tal como ela nos é dada: de valor ínfimo, e na qual todo ato é um empreendimento cego frente à nossa temporalidade.
Nossas verdades não valem mais que as de nossos antepassados. Depois de haver substituído seus mitos e seus símbolos por conceitos, nos julgamos mais “avançados”; mas esses mitos e esses símbolos não exprimem menos que nossos conceitos. A Árvore da Vida, a Serpente, Eva e o Paraíso significam tanto como: Vida, Conhecimento, Tentação, Inconsciente. (…) e, se os deuses já não intervêm nos acontecimentos, nem por isso tais acontecimentos são mais explicáveis nem menos desconcertantes: apenas, um aparato de fórmulas substitui a pompa das antigas lendas, sem que por isso as constantes da vida humana encontrem-se modificadas, pois a ciência não as apreende mais intimamente que os relatos poéticos.[7]
Referências
[1] Breviário de decomposição, p.68. Tradução: José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
[2] Breviário de decomposição, p. 69.
[3] O livro das ilusões, p. 18-19. Tradução: José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
[4] Nos cumes do desespero, p.34 e p.42. Tradução: Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2012.
[5] Do inconveniente de ter nascido, p. 91.Tradução: Manuel de Freitas. Lisboa: Letra Livre, 2010.
[6] Breviário de decomposição, p. 144.
[7] Breviário de decomposição, p. 180.
Acredito que a palavra segue sendo meu ponto fraco.
Muito bom o texto. Ótimo blog!
Republicou isso em coração filosofante.
Texto primoroso! Valeu a leitura! 🙂
Boa! Texto foda. Fiquei bem afim de ler algo do Cioran. Se vocês usam fontes online poderia rolar de deixar o link disponível junto das fontes?
Beijo!
Texto muito bem escrito!