BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual que os outros. Rio de Janeiro: Campus, 2006, pp. 54-56.
Dizer não no Brasil é aventura no terreno do desconhecido. A esse respeito, a revista Veja (07/11/1984), na seção “Ponto de Vista”, publicou ensaio intitulado “É preciso dizer não”, de Fernando de Oliveira. Nele, o autor, sem qualquer pretensão de análise sociológica, mas baseado na sua experiência de administrador de recursos públicos, afirmava que o Brasil precisava para ter como governante “um brasileiro com vocação para não autorizar certos gastos e perder amigos“. E mais, tal indivíduo deveria “recusar convites para simpósios, jantares, inaugurações, rodadas de água mineral e outros eventos sociais… Se tiver cara de poucos amigos, tanto melhor“. Na verdade, o que o articulista queria transmitir era a total impossibilidade de se utilizarem regras impessoais e universalizantes no quadro social brasileiro. Para se cumprir o previsto, em resumo a lei, seria preciso primeiro dizer não aos amigos e depois cortar ou evitar todos os laços com a sociedade. Caso contrário, é impossível ser eficiente e se fazer cumprir a lei.
Essa postura está alicerçada em uma visão de mundo em que a ênfase da sociedade é colocada nas relações que se estabelecem entre as pessoas, mais do que em qualquer outra. Isso torna o Brasil um país em que todos querem ser pessoas e não indivíduos. Qualquer vantagem ou desvantagem social que a pessoa tenha pode ser utilizada para promovê-la a tal categoria. Corroborando ainda mais essa situação, temos o próprios sistema burocrático brasileiro, extremamente rígido, ineficiente e intransigente, não dando espaço à prática do que se costuma denominar “bom senso”. Isso permite que os próprios executores desse sistema, na ausência de alguma regulamentação específica, regulem, não tendo como base o bom senso ou os chamados “direitos do cidadão” ou o espírito que instrui esta ou aquela regulamentação, mas a própria vontade pessoal. Isso nos permite mergulhar num verdadeiro emaranhado de decretos autoritários e personalistas que diluem quase que completamente qualquer possibilidade de funcionamento do sistema com um espírito universalizante.
Embora essa rigidez institucional facilite o desenvolvimento desses aspectos, inclino-me a pensar que essa busca pelo tratamento personalizado existiria mesmo que o sistema fosse diferente. A razão disso, creio eu, encontra-se no fato de que mesmo nas áreas que não estão submetidas a critérios de eficiência, produtividade, competência, desempenho etc., ela se encontra presente. Isso me leva a crer que essa atitude é fruto de uma determinada perspectiva inteiramente diferente das relações entre as pessoa, dos direitos de cada um e da própria sociedade.
Um exemplo que poderia ser ilustrativo para o que acabamos de dizer é o comportamento das pessoas em filas de um modo geral. É praticamente comum e universal as filas se organizarem por ordem de chegada, seja para o cinema, para comprar o pão, para o banco etc. Nesse contexto, onde eficiência e desempenho não contam e, portanto, do ponto de vista lógico não deveriam existir, o uso de experidentes como o jeito ou simplesmente o pedido de passar à frente se fazem presentes mesmo assim. É comum nos supermercados, nas copiadoras etc. as pessoas que têm muito a pagar ou a copiar, via de regra, serem abordadas por alguém que tem pouco, pedindo para deixá-lo passar à frente. Uma negativa nesse caso é bem pouco provável, pois ninguém quer incorrer no perigo de soar antipático ou “sem boa vontade”. Estabelecer com clareza um limite, argumentando que quem chega primeiro deve ser atendido antes, não é comum.
Lembro-me bem do relato de uma estudante que ficou meia hora em uma fila de xerox para tirar cinquenta cópias, pois cada um que chegava com apensar uma, duas ou três cópias pedia para passar à frente quando via que ela tinha muitas. Nos Estados Unidos, não ocorreria a alguém pedir para passar à frente em uma fila pela simples razão de que a pessoa que está antes tem muitas cópias a tirar ou muitas compras a pagar. Essa situação não envolve nenhum critério de eficiência, produtividade etc., por parte de quem presta o serviço. Envolve apenas o critério de precedência por ordem de chegada. Embora seja um critério muito usado em determinadas situações, como as mencionadas anteriormente, ele não é absoluto na ordenação de determinadas situações na sociedade brasileira, na qual o critério da “necessidade pessoal” (digamos assim, na ausência de um termo melhor) é mais imperativo. Portanto, a primeira atitude de quem precisa de alguma cooisa é declinar seu problemas de “ordem pessoal”, pois esses lhe darão precedência em relação a quem chegou primeiro.
– Livia Barbosa.
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