A insurreição de saberes em Michel Foucault – DROPS #14

FOUCAULT, Michel. Genealogia e poder IN Microfísica do Poder. Roberto Machado (Org).

Por saber dominado, entendo duas coisas: por um lado, os conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais. Concretamente: não foi uma semiologia da vida asilar, nem uma sociologia da delinqüência, mas simplesmente o aparecimento de conteúdos históricos que permitiu fazer a crítica efetiva tanto do manicômio quanto da prisão; e isto simplesmente porque só os conteúdos históricos podem permitir encontrar a clivagem dos confrontos, das lutas que as organizações funcionais ou sistemáticas têm por objetivo mascarar. Portanto, os saberes dominados são estes blocos de saber histórico que estavam presentes e mascarados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos e que a crítica pode fazer reaparecer, evidentemente através do instrumento da erudição.


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Insurreição de saberes em Michel Foucault

Em segundo lugar, por saber dominado se deve entender outra coisa e, em certo sentido, uma coisa inteiramente diferente: uma série de saberes que tinham sido desqualificados como não competentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade. Foi o reaparecimento destes saberes que estão embaixo − saberes não qualificados, e mesmo desqualificados, do psiquiatrizado, do doente, do enfermeiro, do médico paralelo e marginal em relação ao saber médico, do delinqüente, etc., que chamarei de saber das pessoas e que não é de forma alguma um saber comum, um bom senso mas, ao contrário, um saber particular, regional, local, um saber diferencial incapaz de unanimidade e que só deve sua força à dimensão que o opõe a todos aqueles que o circundam − que realizou a crítica.

Poder−se−ia dizer que existe um estranho paradoxo em querer agrupar em uma mesma categoria de saber dominado os conteúdos do conhecimento histórico, meticuloso, erudito, exato e estes saberes locais, singulares, estes saberes das pessoas que são saberes sem senso comum e que foram deixados de lado, quando não foram efetivamente e explicitamente subordinados. Parece−me que, de fato, foi este acoplamento entre o saber sem vida da erudição e o saber desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências que deu à crítica destes últimos anos sua força essencial.

Em um caso como no outro, no saber da erudição como naquele desqualificado, nestas duas formas de saber sepultado ou dominado, se tratava na realidade do saber histórico da luta. Nos domínios especializados da erudição como nos. saberes desqualificados das pessoas jazia a memória dos combates, exatamente aquela que até então tinha sido subordinada.

Delineou−se assim o que se poderia chamar uma genealogia, ou melhor, pesquisas genealógicas múltiplas, ao mesmo tempo redescoberta exata das lutas e memória bruta dos combates. E esta genealogia, como acoplamento do saber erudito e do saber das pessoas, só foi possível e só se pôde tentar realizá−la à condição de que fosse eliminada a tirania dos discursos englobantes com suas hierarquias e com os privilégios da vanguarda teórica.

Chamemos provisoriamente genealogia o acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais. Nesta atividade, que se pode chamar genealógica, não se trata, de modo algum, de opor a unidade abstrata da teoria à multiplicidade concreta dos fatos e de desclassificar o especulativo para lhe opor, em forma de cientificismo, o rigor de um conhecimento sistemático. Não é um empirismo nem um positivismo, no sentido habitual do termo, que permeiam o projeto genealógico. Trata−se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá−los, hierarquizá−los, ordená−los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida por alguns. As genealogias não são portanto retornos positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata, mas anti−ciências. Não que reivindiquem o direito lírico à ignorância ou ao não−saber; não que se trate da recusa de saber ou de ativar ou ressaltar os prestígios de uma experiência imediata não ainda captada pelo saber. Trata−se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa. Pouco importa que esta institucionalização do discurso científico se realize em uma universidade ou, de modo mais geral, em um aparelho político com todas as suas aferências, como no caso do marxismo; são os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico que a genealogia deve combater.

Figuras do desatino

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