Muitas são as críticas negativas àqueles que consideram a luta pela libertação animal, em especial o veganismo, uma “pauta” da esquerda. Embora esta questão geralmente seja abordada em discursos liberais, ela também pode ser abordada com uma perspectiva que compreende o atual consumo de derivados animais e sua utilização nos mais diversos tipos de indústria (e, é claro, a forma com que isso se dá) como produto de uma ideologia intrínseca ao sistema capitalista.
Primeiramente, é precipitado falar de “pautas” de uma esquerda tão segmentada; talvez “princípios” seja uma palavra melhor, sendo a igualdade social seu “princípio último”. O fato de os animais não estarem inclusos em um “estrato social” nos leva à conclusão de que a luta pela igualdade e liberdade não os contempla. Trata-se de uma conclusão logicamente correta de acordo com o “princípio último”, que se refere a indivíduos (necessariamente humanos) que fazem parte de uma sociedade, mas trata-se também de uma conclusão exclusivamente matemática e nada empírica.
Apesar de que apenas isto bastaria para justificarmos esta luta, uma vez que a dor física é uma condição inerente, ao reduzirmos os animais a seres meramente “orgânicos” ignoramos que nós, seres humanos, também o somos a princípio, e que foi só a partir de nossa estrutura orgânica que pudemos atingir o nível de uma organização social. Este tipo de pensamento, de certa forma, assemelha-se ao pensamento clássico. Descartes, por exemplo, não via no animal nada além de uma máquina, um “esboço de homem”. O homem, detentor da razão, era o critério final. No entanto, tampouco se tratava do esboço de “qualquer tipo de homem”, mas do homem macho, sadio e adulto.
“O conhecimento das crianças e dos doentes permaneceu por muito tempo rudimentar justamente em virtude destes preconceitos: as questões que o médico ou o experimentador lhes colocavam eram questões de homem; procurava-se menos compreender como viviam por conta própria do que calcular a distância que os separava do adulto ou do homem sadio. (…) Tudo acontece como se o pensamento clássico tivesse se mantido em um dilema: ou o ser com o qual nos confrontamos é assimilável a um homem, sendo então permitido atribuir-lhe por analogia as características geralmente reconhecidas no homem adulto e sadio, ou ele nada mais é do que um mecanismo cego.”
(Merleau-Ponty em “Conversas” – Cap IV: “Exploração do mundo percebido: a animalidade”)
Merleau-Ponty pontua que este tipo de concepção se deve a convicção de que o homem está destinado a ser “senhor e possuidor” da natureza; a penetrar até o “ser das coisas”, tendo assim um conhecimento soberano e último.
“Para o pensamento clássico, existe uma razão de direito divino que efetivamente concebe a razão humana como reflexo de uma razão criadora, ou postula, como ocorre frequentemente, um acordo de princípio entre a razão dos homens e o ser das coisas, mesmo após ter renunciado a toda teologia.” (idem)
É ao nos livrarmos deste tipo de pensamento, ou seja, “ao colocarmos em evidência esse movimento pelo qual todos os seres vivos e nós mesmos tratamos de dar forma a um mundo que não está predestinado às iniciativas de nosso conhecimento e de nossa ação”, que somos levados a reconsiderar a forma através da qual abordarmos a conduta dos animais e a relevância com que tratamos a questão de sua opressão.
“O comportamento do cachorro pode parecer absurdo e maquinal quando o problema que ele tem de resolver é acionar uma fechadura ou uma alavanca. Isso não significa dizer que, considerado em sua vida espontânea e diante das questões que ela coloca, o animal não trate seu ambiente segundo as leis de uma espécie de física ingênua, não apreenda algumas relações e não as utilize para chegar a certos resultados, enfim, não elabore as influências do meio de uma maneira característica da espécie.” (ibidem)
No que concerne ao consumo de derivados animais e sua utilização na indústria, este não é mantido por algum tipo de necessidade natural que não possa ser suprida por outras vias, e sim respaldado pela lógica do mercado. É claro: tratamos de mais uns dentre os monopólios e de, portanto, grande poder econômico e, consequentemente, político. Mas não parece possível vislumbrar uma mudança no ritmo e sistema de produção mesmo que fora do sistema capitalista, pois, como produtos, devem corresponder às demandas da população.
Por isso, diferentemente da libertação humana, pela qual a maioria preza mesmo que ignore suas origens e os meios para conquistá-la, a libertação dos animais tidos como produtos – animais que, embora não sejam totalmente autoconscientes, são conscientes e, principalmente, sencientes – deve ser também, antes de tudo, uma vontade consensual. É preciso ressaltar que o problema não está no consumo de carne em si, uma vez que se trata de um processo natural na cadeia alimentar, porém o modo através do qual tratamos de consumi-la e obtê-la.
Fizemos escravos e nos tornamos escravos de uma indústria que é, no mínimo, asquerosa.
A luta pela libertação animal, em suma, pode ser considerada uma pauta de segmentos da esquerda que têm como princípio uma liberdade e igualdade que excedam a extinção das classes sociais, e por isso não se limitam à luta por outro modo de gestão dos meios de produção ou do aparelho governamental. Segmentos estes lutam por uma harmonia que exista não apenas entre os homens, mas entre tudo e todos dos quais uma sociedade depende para existir. Mas talvez baste algo muito mais simples: reconhecer, nos animais, seres com igual direito a viverem livres de opressão e exploração. Direito este que excede qualquer legislação ou juízo humano.
Acredito que a palavra segue sendo meu ponto fraco.
“Segmentos estes lutam por uma harmonia que exista não apenas entre os homens, mas entre tudo e todos dos quais uma sociedade depende para existir” ou “Merleau-Ponty pontua que este tipo de concepção se deve a convicção de que o homem está destinado a ser “senhor e possuidor” da natureza; a penetrar até o “ser das coisas”, tendo assim um conhecimento soberano e último” e todas afirmações correlatas expressam o estado atual da condição humana: todas certezas ruíram, não temos uma origem exclusivamente divina sendo fruto semelhante a qualquer outra forma de vida que nos faz perguntar até onde vai o nosso direito em manipular as outras espécies. Qualquer solução a partir da casca do ovo será circular, como todas têm sido até agora. Apesar da aparente autonomia de que dispomos, enquanto não tivermos um algoritmo razoável que represente o processo vida. Somos um emaranhado de células que foram sendo agregadas, por ter sido conveniente para sua sobrevivência. A possibilidade de autonomia com a autoconsciência, não quer dizer que este emaranhado aceitará qualquer devaneio que coloque em risco a sua existência. Ela na verdade é uma arma poderosa para a sobrevivência da vida. Imaginem um asteroide mortal se aproximando da Terra e todas as espécies olham para o céu observando sua aproximação! Qual a chance de sobrevivência da vida? Uma espécie que saiba lidar com este infortúnio. Se pensarmos bem, observe o tempo gasto para que fosse possível gerar uma espécie como a nossa. Agora, imagine o desespero da vida perder esta espécie e talvez ela não tenha tempo de gerar outra em tempo hábil, pois o relógio universal não para. A Terra não será habitável para sempre.