Não é de hoje que casos de trabalhadores mantidos em condições análogas à escravidão vêm sendo descobertos. O senso comum poderia associar essa prática com a pobreza e o atraso. É o que vem à mente, por exemplo, quando lembramos da produção de carvão vegetal, em que abundam as ocorrências de mão-de-obra infantil, nas condições mais degradantes que se possa imaginar. Mas, quando se leva em conta que esse carvão vai alimentar as chamas do próspero ramo das churrascarias e supermercados, o senso comum se transforma em cinzas.
De fato, parece que a precarização do trabalho, hoje em dia, tem mais a ver com o superdesenvolvimento do capitalismo. Nesse sentido, tornam-se notórios os casos recorrentes de trabalhadoras e trabalhadores mantidos nessa escravidão do século XXI pela indústria da moda.
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Basta lembrar que oficinas subcontratadas da Zara, Gregory, M Officer, Ellus, entre outras varejistas do ramo da moda, foram flagradas mantendo empregadas e empregados – em sua maioria, imigrantes bolivianos – em jornadas exaustivas, tolhidos de circular livremente, sem acesso a direitos trabalhistas e recebendo remuneração irrisória por sua produção. Está difícil vestir-se sem peso na consciência ou, pelo menos, sem uma pulga atrás da orelha. Ou será que alguém ainda liga pra isso?
A julgar pela postura da maioria das redes que tiveram seu nome envolvido nesses escândalos do trabalho escravo, ainda existe esperança: com a autuação do Ministério Público do Trabalho, as vítimas dessa prática foram indenizadas e tiveram acesso aos seus direitos trabalhistas, além de terem sido firmados TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) para que essas empresas se comprometessem a fiscalizar suas cadeias de produção, a fim de evitar novas ocorrências de trabalho degradante. Não que essas redes morram de amores pelos pobres explorados, mas o trabalho escravo pode significar uma grande mancha na sua imagem.
Se alguma coisa vai efetivamente mudar são outros quinhentos. Mas, nesses casos, pelo menos houve reconhecimento do erro. Diferente do que ocorreu recentemente com a M Officer, que se recusou a assinar um TAC. A diretora da M5, detentora da marca, afirmou na CPI que investiga o trabalho escravo na indústria da moda que não desenha nem produz as roupas que vende. Simplesmente revende peças confeccionadas e concebidas pelas oficinas subcontratadas.
Difícil de acreditar. É como se alguém dissesse que a Nike não desenha nenhum de seus tênis, apenas compra qualquer coisa fabricada numa sweatshop do sudeste asiático, costura um swoosh e pronto: eis o mais novo modelo do Air Max!
De fato, a terceirização é um elemento fundamental na organização desses gigantes do mercado da moda. Essas empresas reproduzem a clássica divisão do trabalho em concepção e execução. As grandes marcas concebem os produtos (o design, os materiais, as peças publicitárias, etc.), e a cadeia de pequenas oficinas – terceirizadas, quarteirizadas, e assim por diante – é que produz as peças encomendadas, segundo as especificações das marcas.
Por isso a alegação da diretora da M5 parece tão surreal. Afinal, não se trata de um bazar da esquina que revende roupas compradas no Brás. Trata-se de uma das grifes mais famosas no mercado da moda brasileiro. E, sendo a imagem o seu principal ativo, não parece razoável que ela deixe a concepção dos produtos que criam essa imagem nas mãos de terceiros. Assim, qualquer um poderia copiá-los facilmente.
O que assusta, no caso da M Officer, é que a empresa parece não dar muita importância ao dano que essas denúncias de trabalho escravo podem provocar em sua imagem. É como se ela confiasse na conivência dos consumidores com essa prática. Eis o dado mais preocupante de toda essa história: que a escravidão volte a ser encarada como algo “natural”. Se isso acontecer, vai ser difícil lutar contra a moda da escravidão no mundo da moda.