A política do desejo

“O corpo tem um espaço de extrema densidade política, é o universal no particular. Trata-se de resistir à normalização da masculinidade e da feminilidade em nossos corpos, e de inventar outras formas de prazer e de convivência”, argumenta Preciado, cujas imagens do rosto com certo ar andrógino, marcado por um fino bigode, confirmam a ideia de uma política encorpada.

Artigo escrito por Carla Rodrigues, publicado originalmente na revista Cult.

Um pênis de borracha, um vibrador, uma prótese, um suplemento. Um consolo, como se diz na linguagem popular. É a partir desse objeto que Beatriz Preciado começa aquilo que se tornou seu texto mais famoso e mais instigante, o Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual, tradução livre para o título de seu primeiro livro, lançado em 2000 na França, onde ela vive e trabalha; na Espanha, onde nasceu, em 1970; e nos EUA, onde se formou. O pênis de borracha é evocado como noção conceitual para cumprir função análoga à mais-valia no pensamento de Karl Marx. “Tomando partido da estratégia de Marx, esta pesquisa sobre sexo toma como eixo temático a análise de algo que pode parecer marginal: um objeto de plástico que acompanha a vida sexual de certas lésbicas e de certos gays queers, e que até agora foi considerado como uma ‘simples prótese inventada como paliativo para a incapacidade sexual das lésbicas’. Estou falando do dildo”, escreve ela. Dildo é um termo em inglês que poderia ser traduzido por consolo em português, mas também em espanhol, e a decisão de Preciado de mantê-lo em inglês vem da sua possibilidade de dupla significação como designação para pessoa estúpida e desprezível. Repete, aqui, o gesto de ressignificação de queer – de ofensivo a transgressivo.

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Dali em diante, virá aquilo que chamo de política do desejo, em dois sentidos possíveis do termo. Preciado se apresenta como autora de uma política do desejo, e encarna, ela mesma, a figura de uma ativista política do desejo. Dessa dupla injunção sai um trabalho cujo princípio é a retirada da natureza como dado ordenador do pensamento sobre a sexualidade, questão debatida por um conjunto de pensadores nos quais Preciado se inspira, ao mesmo tempo em que deles se afasta.

Preciado fez sua graduação em teoria de arquitetura na Universidade de Princenton e sua pós-graduação em Filosofia e teoria de gênero na New School for Social Research, em Nova York. Voltou para a Europa – mais exatamente, para a prestigiada Escola de Altos Estudos – a convite do filósofo Jacques Derrida, de quem foi aluna no final dos anos 1990. Hoje leciona na Universidade Paris 8 e dirige o projeto “Tecnologias de gênero” no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona. Sua inserção universitária é feita a partir do questionamento dos cânones acadêmicos, assim como seu debate com a teoria feminista se dá numa perspectiva de crítica. É nesse ponto que vale a pena situá-la não apenas como uma aluna prodígio de Derrida – ênfase muito comum nas pequenas biografias que circulam sobre ela – mas sobretudo como uma herdeira de algumas posições mais radicais do pensamento pós-estruturalista francês.

Quando se vale de um pênis de borracha como objeto central de seu discurso contra a naturalização da diferença sexual, Preciado recorre a dois termos a partir dos quais se pode aproximá-la de Derrida: suplemento e prótese. É no contexto da publicação de Gramatologia, em 1967, que o filósofo franco-argelino funda aquilo que Patrice Magnilier chama de um “verdadeiro momento filosófico”, ao qual a filosofia do século 20 voltará incessantemente. É ali que, entre outras questões, Derrida propõe repensar a noção tradicional de escrita como mero suplemento da fala, esta sim, imediatamente ligada à verdade, para pensar a ordem do discurso como suplemento ou prótese. “A contrassexualidade recorre à noção de suplemento, como foi formulada por Derrida, e identifica o pênis de borracha como o suplemento que produz aquilo que supostamente deve completar”, postula Preciado no manifesto.

Quando uso a expressão “ordem do discurso” estou buscando uma aproximação com outro filósofo marcante na trajetória do pensamento de Preciado, Michel Foucault. Deste francês ela se vale para pensar uma definição biopolítica dos corpos e a produção do gênero, do sexo e da sexualidade como técnicas de domínio criadas na modernidade, com as quais Preciado quer romper. Faz disso uma estratégia intelectual, sem dúvida, mas também uma forma de pensamento encarnado, expresso no “próprio” corpo, aspas aqui para indicar a impossibilidade dessa “propriedade” tão tida como natural.

Estamos de volta ao pênis de borracha e sua simbolização de suplemento, daquilo que interroga a propriedade do masculino como lugar de posse e propriedade, e automaticamente, nas formas opositivas, lançaria o feminino como lugar de ausência e impropriedade. Se, como bem observa Marie-Hélène Bourcier no prefácio do manifesto, é a partir de deslocamentos que o pensamento de Preciado se escreve, esses pares cuja integridade parecia se manter ainda intacta são o alvo de seus deslocamentos. Geográficos, linguísticos, temáticos. Seja como ativista, seja como artista, seja como acadêmica, interessa a Preciado interrogar a produção de identidades sexuais e a normalização da heterossexualidade, projeto que a Teoria queer na qual ela se inclui pretende confrontar.

Voltamos ao pênis de borracha, agora na aproximação da noção de mais-valia no pensamento marxista. Que não se enganem os críticos de Preciado ou da Teoria queer – e são muitos –, porque não há ingenuidade nessa analogia. Ao contrário, de fato a crítica ao capitalismo e a sua força normalizadora de corpos, comportamentos e discursos será o motor do pensamento da autora. Capitalismo aqui entendido como estrutura de subordinação a um projeto heterossexual, normativo, de corpos a serviço da produção e da reprodução, projeto fundamentado em um ideal de natureza questionado pelo pênis de borracha como noção política mobilizadora. Contrassexualidade passa a ser, assim, uma forma de repensar a naturalidade dos corpos, e por isso apresentada em forma de um manifesto – a exemplo dos manifestos das vanguardas artísticas do início do século 20 –, que postula a inautenticidade da origem, a impropriedade do próprio.

Chega aqui o momento de indicar uma das singularidades da obra de Preciado. Irreverente e transgressora, ela encarnou o questionamento sobre identidade de gênero numa experiência em que se fez cobaia. Durante duzentos e trinta e seis dias, se auto-aplicou testosterona, o hormônio produzido pelos testículos, sem seguir nenhum tipo de protocolo médico prévio. “Com esta intoxicação voluntária, quis mostrar que meu gênero não pertence nem à minha família, nem ao estado, nem à indústria farmacêutica. É uma experiência política”, escreve ela no livro em que narra o que chamou de droga sexual. Os efeitos também foram políticos. Com a testosterona, sentiu-se mais lúcida, enérgica, desperta, e passou a se perguntar por que esses efeitos devem ser considerados “masculinos”.

“Tomei a testosterona não para me tornar homem, mas para acrescentar uma prótese molecular à minha identidade transgênero”, relata em Viciada em testosterona: sexo, droga e biopolítica na era da farmacopornografia, tradução livre para Testo Junkie: Sex, Drugs and Biopolitics in the Pharmacopornographic Era, publicado em 2008 na França e ampliado na edição americana, em que Preciado desenvolve a noção de farmacopornografia. Trata-se de um mecanismo ampliado dos dispositivos disciplinares identificados por Foucault. Para vigiar o corpo, observa ela, já não há mais necessidade de hospital, quartel ou prisão, porque, com os hormônios sintéticos, as técnicas de controle se instalam no corpo, ferramenta definitiva da vigilância.

“O corpo tem um espaço de extrema densidade política, é o universal no particular. Trata-se de resistir à normalização da masculinidade e da feminilidade em nossos corpos, e de inventar outras formas de prazer e de convivência”, argumenta Preciado, cujas imagens do rosto com certo ar andrógino, marcado por um fino bigode, confirmam a ideia de uma política encorpada.

Herdeira muito próxima da filósofa Judith Butler – apenas quatorze anos mais velha que Preciado –, um ponto as separa. Preciado bebe numa fonte anarquista espanhola que molda de maneira diferente sua entrada no debate sobre gênero. Nesse ponto, se pode voltar pela última vez ao pênis de borracha, o dildo inspirador do Manifesto contrassexual. Quando Preciado nasceu, em 1970, o debate da segunda onda feminista já ia avançando em torno da necessidade de distinção entre sexo/gênero, instrumento teórico estratégico para apontar a fabricação de uma diferença sexual que fundamentava o ontológico no biológico. Nos anos 1990, quando Preciado ainda está começando seus estudos em torno da questão, Butler publica o seu hoje consagrado Problemas de gênero, marco da necessidade de questionamento da distinção sexo/gênero como ainda ligada ao modelo heteronormativo. Neste contexto, Preciado chega para propor uma contrassexualidade que afirma o desejo não mais limitado ao prazer sexual proporcionado aos órgãos reprodutores – que fundamentariam a diferença sexual –, mas uma política do desejo capaz de sexualizar todo o corpo, lugar de resistência a toda normatividade.

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