Anaquismo: o que é? O que significa?

Índice

Introdução

História das Ideias e Movimentos Anarquistas - Vol. I - a Ideia
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O anarquismo constitui uma teoria política caracterizada por seu ceticismo em relação à justificação da autoridade e do poder. Fundamenta-se, com frequência, em argumentos morais que valorizam a liberdade individual, geralmente entendida como emancipação frente a formas de dominação. Para além da crítica à autoridade, os anarquistas formulam também uma teoria positiva do florescimento humano, ancorada em ideais de igualdade, comunidade e construção de consensos não coercitivos. Ao longo da história, o anarquismo tem inspirado iniciativas concretas voltadas à constituição de comunidades utópicas, projetos políticos radicais e revolucionários, bem como diversas modalidades de ação direta.

A presente exposição dedica-se prioritariamente ao anarquismo filosófico, isto é, ao anarquismo concebido como ideia teórica, dissociado de sua expressão enquanto ativismo político. Enquanto o anarquismo filosófico se estrutura como uma teoria cética quanto à legitimidade do poder político, o conceito de anarquismo tem sido igualmente mobilizado nas esferas da teoria filosófica e da teoria literária, onde se associa a uma postura anti-fundacionalista. Assim, o anarquismo filosófico pode ser compreendido tanto como uma teoria da vida política que problematiza as tentativas de legitimar a autoridade estatal, quanto como uma abordagem filosófica que questiona a possibilidade de estabelecer fundamentos últimos e estáveis para o conhecimento.

Variedades de anarquismo

Existem diversas formas de anarquismo. O que une essa variedade é a crítica geral ao poder e à autoridade centralizados e hierárquicos. Considerando que a autoridade, a centralização e a hierarquia se manifestam de distintas maneiras, em múltiplos discursos, instituições e práticas, não causa surpresa que a crítica anarquista tenha sido mobilizada de forma igualmente diversa.

Anarquismo político

O anarquismo é compreendido, primordialmente, como uma teoria cética da legitimação política. O termo anarquismo deriva da negação do vocábulo grego arché, que significa princípio primeiro, fundamento ou poder soberano. A anarquia, nesse sentido, designa a ausência de governo — ou o governo de ninguém. Alguns teóricos argumentam que a ausência de dominação ocorre quando há governo de todos, sendo o consenso ou a unanimidade tomados como um ideal otimista a ser alcançado (cf. Depuis-Déri, 2010).

Os anarquistas políticos concentram sua crítica no poder estatal, considerando ilegítima a coerção centralizada e monopolística. Por isso, dirigem-se contra “o Estado”. Mikhail Bakunin oferece um exemplo paradigmático dessa postura ao afirmar:

“Se há um Estado, deve haver dominação de uma classe sobre outra e, como consequência, escravidão; o Estado sem escravidão é impensável — e é por isso que somos inimigos do Estado.”
(Bakunin, 1873 [1990: 178])

Um exemplo mais recente provém de Gerard Casey, que escreve:

“Estados são organizações criminosas. Todos os estados, não apenas os evidentemente totalitários ou repressivos.”
(Casey, 2012: 1)

Tais generalizações abrangentes, contudo, são difíceis de sustentar de maneira rigorosa. Nesse sentido, o anarquismo, enquanto filosofia política, enfrenta o desafio da especificidade. Os Estados têm sido organizados de maneiras diversas; o poder político não é monolítico, e a soberania constitui uma questão complexa, envolvendo divisões e distribuições de poder (cf. Fiala, 2015). Além disso, o contexto histórico e ideológico no qual se insere a crítica anarquista influencia profundamente o conteúdo dessa crítica. Bakunin, por exemplo, reagia sobretudo à concepção marxista e hegeliana do Estado, elaborando sua análise no seio do movimento socialista internacional. Já Casey escreve no século XXI, em plena era do liberalismo e da globalização, articulando sua crítica a partir do horizonte do libertarianismo contemporâneo.

Enquanto alguns anarquistas se engajam em críticas amplas e totalizantes do poder político, outros optam por análises localizadas e situadas, voltadas a entidades políticas específicas. Um desafio contínuo para quem busca compreender o anarquismo reside justamente em perceber como abordagens tão diversas, historicamente e ideologicamente, podem coexistir sob o amplo guarda-chuva do pensamento anarquista. A seguir, analisaremos em maior profundidade o anarquismo político.

Critica à religião

A crítica anarquista tem sido estendida para além da esfera política, abarcando também formas de centralização e autoridade de natureza não política. Mikhail Bakunin, por exemplo, ampliou sua crítica ao incluir a religião, posicionando-se contra tanto “Deus” quanto o Estado. Para Bakunin, Deus representa a figura do mestre absoluto, cuja existência seria incompatível com a liberdade humana. É célebre sua afirmação: “Se Deus realmente existisse, seria necessário aboli-lo” (Bakunin, 1882 [1970: 28]).

Contudo, há vertentes religiosas do anarquismo que elaboram uma crítica à autoridade política a partir de pressupostos teológicos. Rapp (2012) demonstrou a presença de elementos anarquistas no taoismo, enquanto Ramnath (2011) identificou traços anarquistas no sufismo islâmico, nos movimentos bhakti do hinduísmo, nos esforços anticaste do sikhismo e em correntes do budismo. A relação entre anarquismo e a filosofia de Gandhi será considerada adiante, mas o foco, neste momento, recai sobre o anarquismo cristão.

A teologia anarquista cristã concebe o Reino de Deus como transcendente a qualquer princípio humano de estrutura ou ordem. Nesse sentido, o anarquismo cristão propõe uma crítica anticlerical tanto ao poder eclesiástico quanto ao poder político. Leon Tolstói é um exemplo influente dessa tradição. Segundo Tolstói, os cristãos têm o dever de não obedecer ao poder político e de se recusar a jurar fidelidade a qualquer autoridade estatal (cf. Tolstói, 1894). Além disso, Tolstói era pacifista. O anarcopacifismo cristão considera o Estado moralmente inaceitável devido à sua íntima associação com o poder militar (cf. Christoyannopoulos, 2011). No entanto, há também anarquistas cristãos que não adotam o pacifismo. Nikolai Berdyaev, por exemplo, desenvolve sua interpretação teológica a partir de Tolstói, chegando à conclusão de que “o Reino de Deus é a anarquia” (Berdyaev, 1940 [1944: 148]).

Diversos anarquistas cristãos fundaram comunidades separatistas, com o objetivo de viver à margem das estruturas estatais. Dentre esses, destacam-se os transcendentalistas da Nova Inglaterra, como William Garrison e Adin Ballou, que exerceram influência direta sobre Tolstói (cf. Perry, 1973 [1995]).

Outras figuras cristãs notáveis com simpatias anarquistas incluem Peter Maurin e Dorothy Day, do movimento Catholic Worker. Em tempos mais recentes, o anarquismo cristão foi defendido por Jacques Ellul, que o associa a uma crítica social ampla. Para Ellul, além de pacifista, o anarquismo cristão deve ser “antinacionalista, anticapitalista, moral e antidemocrático” (Ellul, 1988 [1991: 13]). O anarquista cristão, segundo ele, deve estar comprometido com “uma verdadeira subversão de todas as formas de autoridade” (Ellul, 1988 [1991: 14]). Quando questionado sobre a possibilidade de um anarquista cristão participar do processo eleitoral, Ellul responde negativamente, afirmando que “a anarquia implica, antes de tudo, a objeção de consciência” (Ellul, 1988 [1991: 15]).

Anarquismo teórico

A rejeição anarquista da autoridade também encontra aplicação no campo da epistemologia, bem como nas teorias filosófica e literária. Uma utilização significativa do termo emerge no pragmatismo norte-americano. William James, por exemplo, descreveu sua teoria filosófica pragmatista como uma espécie de anarquismo: “Um pragmatista radical é um tipo de criatura despreocupada e anarquista” (James, 1907 [1981: 116]). James expressava simpatias anarquistas, vinculadas a uma crítica geral à filosofia sistemática (cf. Fiala, 2013b). O pragmatismo, assim como outras filosofias antissistemáticas e pós-hegelianas, abdica da busca por um arché, ou seja, por um fundamento primeiro.

O anarquismo, nesse sentido, manifesta-se como uma crítica geral aos métodos hegemônicos de produção do saber. Um exemplo influente é a obra de Paul Feyerabend, cujo livro Contra o Método constitui um exemplo de “anarquismo teórico” na epistemologia e na filosofia da ciência (Feyerabend, 1975 [1993]). O autor afirma:

“A ciência é uma atividade essencialmente anárquica: o anarquismo teórico é mais humanitário e mais propenso a fomentar o progresso do que suas alternativas baseadas na ordem e na legalidade.”
(Feyerabend, 1975 [1993: 9])

Sua posição sustenta que a ciência não deve ser restringida por princípios hierárquicos ou por uma adesão estrita a regras normativas.

O pós-estruturalismo, bem como as correntes pós-modernas e da filosofia continental, também podem ser interpretados como formas de pensamento anarquista (cf. May, 1994). O chamado “pós-anarquismo” constitui um discurso descentralizado e fluido que decompõe relações de poder, questiona essencialismos e desestabiliza sistemas de autoridade. Em continuidade com os trabalhos de desconstrução e crítica de autores como Derrida, Deleuze, Foucault e outros, essa crítica ao arché estende-se de maneira radical. Na ausência de um fundamento originário, resta-nos a proliferação de possibilidades interpretativas e existenciais. Tendências emergentes, como globalização, ciberespaço e pós-humanismo, tornam mais complexa a crítica anarquista ao Estado, uma vez que os ideais tradicionais de liberdade e autonomia passam a ser também objeto de questionamento e desconstrução (cf. Newman, 2016).

Os anarquistas tradicionais estavam principalmente comprometidos com o ativismo político contínuo e direcionado à abolição do Estado. A diferença entre o pós-anarquismo fluido e descentralizado e o anarquismo tradicional pode ser observada, por exemplo, na esfera da moralidade. O anarquismo tradicional criticava a autoridade moral centralizada, mas essa crítica era frequentemente ancorada em princípios fundamentais e valores tradicionais, como a autonomia ou a liberdade. Já o pós-estruturalismo — em diálogo com críticas formuladas por feministas, teóricos críticos da raça e críticos do eurocentrismo — passa a problematizar esses próprios valores e princípios, lançando dúvidas sobre sua universalidade e legitimidade.

Anarquismo aplicado

O amplo arcabouço crítico fornecido pela crítica anarquista à autoridade configura-se como uma teoria ou metodologia frutífera para a crítica social contemporânea. Em suas formulações mais recentes, o anarquismo tem sido mobilizado para a análise crítica de hierarquias de gênero, de raça e, inclusive, da dominação humana sobre a natureza. Dessa forma, o anarquismo desdobra-se em diversas vertentes, entre as quais se destacam: o anarca-feminismo ou feminismo anarquista (cf. Kornegger, 1975), o anarquismo queer ou a teoria queer anarquista (cf. Daring et al., 2010), o anarquismo ecológico ou ecoanarquismo — frequentemente associado à ecologia social anarquista (cf. Bookchin, 1971 [1986]) —, bem como formas de anarquismo negro, indígena e outras expressões de crítica ao supremacismo branco e ao eurocentrismo (a serem discutidas adiante); além do anarco-veganismo ou “veganarquismo” (cf. Nocella, White & Cudworth, 2015).

No interior da literatura anarco-veganista, encontramos a seguinte formulação de um anarquismo abrangente e inclusivo:

“O anarquismo é uma teoria sociopolítica que se opõe a todos os sistemas de dominação e opressão, tais como racismo, capacitismo, sexismo, anti-LGBTTQIA, etarismo, gordofobia, governo, competição, capitalismo, colonialismo, imperialismo e justiça punitiva, e que promove democracia direta, colaboração, interdependência, ajuda mútua, diversidade, paz, justiça transformativa e equidade.” (Nocella et al., 2015: 7)

Um anarquismo radical e coerente, portanto, implica uma crítica generalizada a todas as formas de hierarquia, dominação, centralização e autoridade injustificada.

Aqueles que compartilham desses compromissos frequentemente traduzem sua crítica em práticas não conformistas — como o amor livre, o nudismo, a subversão das normas de gênero, entre outras — ou na fundação de comunidades intencionais que vivem “fora da rede” e à margem das normas culturais hegemônicas. Em suas manifestações mais extremas, tais experimentações se traduzem no anarquismo primitivista ou anti-civilizacional (cf. Zerzan, 2008, 2010; Jensen, 2006). Experiências de sociedades anarquistas alternativas podem ser identificadas em comunas religiosas da Europa pós-Reforma e nos Estados Unidos do início da modernidade, nas comunidades utópicas americanas do século XIX, nas comunas hippies do século XX, em ocupações anarquistas, zonas autônomas temporárias (cf. Bey, 1985), bem como em encontros ocasionais de indivíduos com afinidades ideológicas.

Dado esse caráter antinomiano e não conformista, é compreensível que o anarquismo frequentemente incorpore também uma crítica radical às normas e princípios éticos tradicionais. Nesse sentido, poder-se-ia distinguir entre um anarquismo ético radical — voltado à subversão das normas sociais instituídas — e um anarquismo burguês — interessado sobretudo em libertar-se do Estado sem, contudo, questionar os valores sociais dominantes. Embora alguns argumentem que os anarquistas mantêm um compromisso profundo com valores éticos como a liberdade e a solidariedade, outros os acusam de niilismo moral, rejeitando integralmente a moralidade ou, ao menos, negando a possibilidade de uma fonte única e legítima de autoridade moral (cf. ensaios em Franks & Wilson, 2010).

Nas investigações mais recentes, o pensamento anarquista tem sido articulado a uma série de questões teóricas emergentes e preocupações aplicadas. Hilary Lazar (2018), por exemplo, examina as relações entre anarquismo, interseccionalidade e multiculturalismo. Já Sky Croeser (2019) analisa os vínculos entre o anarquismo e as tecnologias emergentes, inclusive a internet. Elementos anarquistas também estão presentes no desenvolvimento de tecnologias informacionais e econômicas descentralizadas, como é o caso das criptomoedas, que configuram economias à margem dos sistemas econômicos estatais tradicionais.

Anarquismo decolonial, indígena e negro

Conforme mencionado anteriormente, entre as diversas vertentes do anarquismo aplicado encontram-se formas de anarquismo articuladas a movimentos de libertação e a críticas ao supremacismo branco, ao eurocentrismo e ao colonialismo. Essas críticas podem ser conectadas também ao anarquismo feminista, aos movimentos de libertação das mulheres e à crítica anarquista ao patriarcado. No entanto, aqui o foco recai sobre o anarquismo presente em movimentos de libertação negra e indígena. O movimento liderado por Gandhi na Índia pode ser incluído nesse escopo (como será discutido adiante).

Um ponto central nessa discussão é a afirmação de que certas características anarquistas podem ser encontradas nas estruturas sociais de povos indígenas. Em alguns casos, essa alegação assume uma forma romantizada, como nos escritos de anarquistas anti-civilizacionais como John Zerzan, que ecoam a concepção ingênua e mal informada do “bom selvagem” presente em Rousseau. É necessário, portanto, cautela diante de afirmações essencialistas sobre culturas e sociedades políticas indígenas — basta lembrar que impérios como os dos Incas ou dos Astecas estavam longe de constituir coletivos anarquistas utópicos. Apesar disso, estudiosos da questão indígena reconhecem a crítica anarquista às hegemonias dominantes como parte integrante da luta por libertação e autodeterminação dos povos originários (cf. Johnson & Ferguson, 2019).

Os anarquismos negro e indígena formulam uma crítica radical que sustenta que a história global de genocídio, escravidão, colonização e exploração está alicerçada na suposição do supremacismo branco. A partir dessa perspectiva, o supremacismo branco é entendido como pressuposto do estatismo, da centralização, da hierarquia e da autoridade. A crítica anarquista ao supremacismo branco está, portanto, intrinsecamente ligada à crítica de sistemas sociais e políticos que se desenvolveram a partir da escravidão e do genocídio indígena, e que incluem o apartheid, as desigualdades estruturais, as hierarquias raciais/castistas e outras formas de racismo estrutural.

Alguns defensores do anarquismo negro chegam a sugerir que, quando a “negritude” é definida em oposição às estruturas do supremacismo branco, há nela um elemento intrinsecamente anarquista. Anderson e Samudzi afirmam:

“Embora sujeita às leis do país, a América Negra pode ser compreendida como uma entidade extraestatal devido à exclusão negra do contrato social liberal. Por essa localização extraestatal, a negritude é, em muitos aspectos, anarquista.”
(Anderson & Samudzi, 2017, s/p)

Essa afirmação implica que a experiência social e política do povo negro se dá em um mundo estruturado pela sua própria exclusão do poder. Uma implicação semelhante vale para os povos indígenas, historicamente subjugados e dominados pelo poder colonial. Os movimentos de libertação, portanto, emergem de uma experiência social que é, nesse sentido, anárquica — desenvolvida à margem e em oposição às estruturas instituídas de poder. Não é surpreendente, assim, que muitos ativistas engajados em lutas de libertação adotem ou afirmem o anarquismo como horizonte político.

Um exemplo significativo é o do ativista norte-americano Lorenzo Kom’boa Ervin, que defende o anarquismo como instrumento de libertação negra (cf. Ervin, 1997 [2016]). Ervin argumenta que o anarquismo negro difere da estrutura hierárquica e autoritária do Partido dos Panteras Negras. Ele também critica a organização autoritária de movimentos de libertação negra de orientação religiosa, como aquele liderado por Martin Luther King Jr.

Um ponto central nas discussões sobre o anarquismo negro e indígena diz respeito à necessidade de descolonizar o próprio anarquismo. As principais figuras da tradição anarquista são, em sua maioria, homens brancos e europeus. As preocupações de pensadores como Kropotkin ou Bakunin podem divergir radicalmente das de afro-americanos ou dos povos indígenas da América Latina ou de outras regiões do mundo. Uma solução para esse problema está na recuperação de vozes esquecidas dentro da própria tradição. É o caso de Lucy Parsons (também conhecida como Lucy Gonzalez), ex-escravizada que se afirmou anarquista. Parsons defendia o anarquismo porque via na ordem política vigente apenas miséria e fome para a maioria da humanidade. Para ela, a revolução era necessária. Parsons declarou:

“A maioria dos anarquistas acredita que a mudança que virá só pode ocorrer por meio de uma revolução, pois a classe dominante não permitirá uma mudança pacífica; ainda assim, estamos dispostos a trabalhar pela paz a qualquer preço — exceto ao preço da liberdade.”
(Parsons, 1905 [2010])

Esse testemunho ilustra como o anarquismo, quando enraizado em experiências concretas de opressão racial e colonial, ganha novas inflexões e amplia seu escopo teórico e prático.

Anarquismo na filosofia política

O anarquismo, na filosofia política, sustenta que não existe autoridade política ou governamental legítima. Trata-se de uma posição teórica que afirma que nenhum Estado tem justificação moral para exercer poder sobre os indivíduos. Nesse sentido, mesmo para filósofos que não são anarquistas, o conceito de anarquia desempenha um papel importante: ele funciona como uma condição de fundo, um estado hipotético ou histórico sem governo legítimo, contra o qual diferentes formas de organização política são comparadas, avaliadas e justificadas.

Para os não-anarquistas, a anarquia é frequentemente vista de maneira negativa — como uma condição instável, desorganizada e caótica, onde a ausência de autoridade legítima leva à desordem. Contudo, o anarquismo filosófico não deve ser confundido com o ativismo político militante ou com estereótipos populares, como o da figura do anarquista niilista e violento, frequentemente retratado como um “jogador de bombas”. O anarquismo filosófico é, antes de tudo, uma postura teórica e reflexiva.

Dentro dessa perspectiva, o anarquismo filosófico não implica automaticamente em um chamado à ação direta contra o Estado. Como observa John Simmons:

“Os anarquistas filosóficos não consideram que a ilegitimidade dos Estados implique necessariamente em um imperativo moral forte para se opor ou eliminar os Estados.”
(Simmons, 2001: 104)

Ou seja, reconhecer que o Estado é ilegítimo não obriga, do ponto de vista ético, à desobediência ou à rebelião. Muitos anarquistas filosóficos, inclusive, continuam obedecendo às autoridades, não por reconhecerem sua legitimidade, mas por razões prudenciais, éticas, estratégicas ou estéticas. Outros, ao contrário, decidem resistir ou se engajar em ações políticas — pacíficas ou radicais — motivados por diferentes formas de compromisso pessoal ou coletivo.

Assim, a questão da ação — se devemos obedecer ou resistir — exige uma teoria mais abrangente sobre a obrigação política, uma teoria que leve em conta compromissos morais, religiosos, estéticos ou existenciais. O anarquismo filosófico, nesse contexto, é um ponto de partida crítico que nos obriga a refletir sobre os fundamentos da autoridade, da obediência e da legitimidade do poder. A partir daí, diferentes respostas práticas se tornam possíveis, dependendo da ética e da visão de mundo de cada indivíduo.

Anarquismo na história da filosofia política

 

Há uma longa história do anarquismo político. No mundo antigo, uma forma de anarquismo pode ser encontrada nas ideias dos epicuristas e dos cínicos. Kropotkin faz esse apontamento em seu artigo de enciclopédia de 1910. Embora não utilizassem o termo “anarquismo”, os epicuristas e os cínicos evitavam a atividade política, aconselhando o afastamento da vida política em busca da tranquilidade (ataraxia) e do autocontrole (autarkeia). Os cínicos também são conhecidos por defenderem o cosmopolitismo: viver sem lealdade a qualquer estado ou sistema legal específico, associando-se com os seres humanos com base em princípios morais, fora das estruturas estatais tradicionais. Diógenes, o Cínico, tinha pouco respeito pelas autoridades políticas ou religiosas. Uma de suas ideias orientadoras era “desfigurar a moeda”. Isso significava não apenas desvalorizar ou destruir a moeda corrente, mas também uma rejeição geral das normas da sociedade civilizada (ver Marshall 2010: 69). Diógenes frequentemente zombava das autoridades políticas e não oferecia sinais de respeito. Enquanto Diógenes desrespeitava ativamente as normas estabelecidas, Epicuro aconselhava o recolhimento. Ele recomendava viver despercebido e evitar a vida política (sob a expressão me politeuesthai — que pode ser entendida como uma advertência antipolítica).

A suposição de que a anarquia seria infeliz ou instável leva à justificativa do poder político. Na famosa frase de Hobbes, na condição sem estado — anárquica — do “estado de natureza”, a vida humana seria solitária, pobre, desagradável, bruta e curta. O contrato social de Hobbes — assim como outras versões da teoria do contrato social, como as encontradas em Locke ou Rousseau — são tentativas de explicar como e por que o Estado político emerge a partir do estado de natureza anárquico.

Os anarquistas respondem afirmando que o Estado tende a produzir seu próprio tipo de infelicidade: sendo opressivo, violento, corrupto e contrário à liberdade. As discussões sobre o contrato social, portanto, giram em torno da questão de saber se o Estado é melhor do que a anarquia — ou se estados e entidades semelhantes ao Estado surgem naturalmente e inevitavelmente a partir da condição original de anarquia. Uma versão desse argumento sobre o surgimento inevitável dos estados (por meio de algo como uma “mão invisível”) é encontrada na influente obra Anarquia, Estado e Utopia (1974), de Nozick. Embora Nozick e outros filósofos políticos levem a sério a anarquia como ponto de partida, os anarquistas argumentam que os argumentos da mão invisível desse tipo ignoram a realidade histórica dos estados, que se desenvolveram a partir de uma longa história de dominação, desigualdade e opressão. Murray Rothbard argumentou contra Nozick e a teoria do contrato social, dizendo que “nenhum estado existente foi concebido imaculadamente” (Rothbard 1977: 46). Diferentes versões da teoria do contrato social, como a encontrada na obra de John Rawls, veem a situação contratual como um dispositivo heurístico que nos permite considerar a justiça sob o “véu da ignorância”. Mas os anarquistas argumentam que a ideia da posição original não leva necessariamente à justificação do Estado — especialmente considerando o conhecimento prévio sobre a tendência dos Estados à opressão. Crispin Sartwell conclui:

“Mesmo aceitando mais ou menos todas as suposições que Rawls incorpora à posição original, não está claro que os contratantes não escolheriam a anarquia.” (Sartwell 2008: 83)

O autor do presente ensaio descreveu o anarquismo que resulta de uma crítica à tradição do contrato social como “anarquismo liberal do contrato social” (Fiala 2013a).

Um marco histórico importante é William Godwin. Ao contrário de Locke e Hobbes, que recorrem ao contrato social para nos tirar do estado de natureza anárquico, Godwin argumentou que o poder governamental resultante não era necessariamente melhor do que a anarquia. Locke, é claro, permite a revolução quando o Estado se torna despótico. Godwin desenvolve esse insight. Ele explicou: “não devemos concluir apressadamente que os males da anarquia são piores do que aqueles que o governo é capaz de produzir” (Godwin 1793: livro VII, cap. V, p. 736). Ele afirmou:

“É muito desejável que cada homem seja suficientemente sábio para governar a si mesmo, sem a intervenção de qualquer restrição compulsória; e, já que o governo, mesmo em seu melhor estado, é um mal, o objetivo principal a ser visado é que tenhamos o mínimo possível dele, na medida em que a paz geral da sociedade humana o permitir.” (Godwin 1793: livro III, cap. VII, p. 185–186)

Como Rousseau, que elogiava o bom selvagem, livre das correntes sociais até ser forçado a entrar na sociedade, Godwin imaginava a anarquia original desenvolvendo-se no Estado político, o qual, em sua visão, tendia a se tornar despótico. Uma vez que o Estado entra em cena, Godwin sugere que o despotismo é o problema principal, já que “o despotismo é tão perene quanto a anarquia é transitória” (Godwin 1793: livro VII, cap. V, p. 736).

O anarquismo é frequentemente interpretado como a ideia de que os indivíduos devem ser deixados sozinhos, sem qualquer princípio unificador ou poder governante. Em alguns casos, o anarquismo está relacionado ao libertarianismo (ou ao que às vezes é chamado de “anarcocapitalismo”). Mas a ausência de governo também pode ocorrer quando há unanimidade ou consenso — e, portanto, nenhuma necessidade de autoridade externa ou de uma estrutura governamental de comando e obediência. Se houvesse unanimidade entre os indivíduos, não haveria necessidade de “governar”, de autoridade ou de governo. As ideias de unanimidade e consenso estão associadas à concepção positiva do anarquismo como uma associação voluntária de seres humanos autônomos, que promove valores comunitários. Uma versão do ideal anarquista imagina a devolução da autoridade política centralizada, deixando-nos com comunas cuja estrutura organizacional é aberta e baseada no consenso.

Dado esse ênfase na organização comunitária, não é surpreendente que o anarquismo político tenha uma associação histórica próxima com o comunismo, apesar da conexão mencionada acima com o capitalismo de livre mercado. Autores como Bakunin, Kropotkin e Goldman desenvolveram seu anarquismo em resposta a Marx e ao marxismo. Um dos primeiros autores a afirmar explicitamente o anarquismo, Pierre Proudhon, defendeu um tipo de “comunismo”, que ele entendia como fundamentado em associações descentralizadas, comunas e sociedades de ajuda mútua. Proudhon acreditava que a propriedade privada criava despotismo. Ele argumentava que a liberdade exigia anarquia, concluindo:

“O governo do homem pelo homem (sob qualquer nome que se disfarce) é opressão. A sociedade encontra sua mais alta perfeição na união da ordem com a anarquia.” (Proudhon 1840 [1876: 286])

Seguindo Proudhon, Bakunin, Kropotkin e os outros chamados “anarquistas clássicos”, o anarquismo passa a ser visto como um ponto focal para a filosofia política e o ativismo.

Vamos agora passar para uma análise conceitual dos diferentes argumentos feitos em defesa do anarquismo.

Anarquismo deontológico, absoluto e a priori

Os anarquistas frequentemente fazem afirmações categóricas no sentido de que nenhum Estado é legítimo ou de que não pode haver um Estado político justificável. Como uma afirmação absoluta ou a priori, o anarquismo sustenta que todos os Estados, sempre e em qualquer lugar, são ilegítimos e injustos. O termo “anarquismo a priori” é encontrado em Simmons (2001); mas já é empregado por Kropotkin em seu influente artigo de 1910 sobre o anarquismo, onde ele afirma que os anarquistas não são utopistas que argumentam contra o Estado de forma a priori (Kropotkin 1927 [2002: 285]). Apesar da afirmação de Kropotkin, alguns anarquistas de fato oferecem argumentos a priori contra o Estado. Esse tipo de afirmação se baseia em uma concepção da justificação da autoridade que geralmente se apoia em algum tipo de princípio moral deontológico sobre a importância da liberdade individual e em um argumento lógico sobre a natureza da autoridade estatal.

Um exemplo típico e bem conhecido desse argumento é encontrado na obra de Robert Paul Wolff. Wolff afirma que a autoridade legítima baseia-se numa reivindicação de direito de comandar obediência (Wolff 1970). Correlato a isso está o dever de obedecer: existe um dever de obedecer à autoridade legítima. Como Wolff explica, ao recorrer a ideias encontradas em Kant e Rousseau, o dever de obedecer está ligado a noções de autonomia, responsabilidade e racionalidade. Mas, para Wolff e outros anarquistas, o problema é que o Estado não possui autoridade legítima. Como diz Wolff sobre o anarquista: “ele nunca verá os comandos do Estado como legítimos, como tendo uma força moral obrigatória” (Wolff 1970: 16). O caráter categórico dessa afirmação indica uma versão de anarquismo absoluto. Se os comandos do Estado nunca são legítimos e não criam nenhum dever moral de obediência, então nunca pode haver um Estado legítimo. Wolff imagina que poderia existir um Estado legítimo baseado em uma “democracia direta unânime” — mas ele indica que essa democracia direta unânime seria “tão restrita em sua aplicação que não oferece nenhuma esperança séria de ser encarnada em um Estado real” (Wolff 1970: 55). Wolff conclui:

“Se todos os homens têm a obrigação contínua de alcançar o mais alto grau possível de autonomia, então parece não haver nenhum Estado cujos súditos tenham a obrigação moral de obedecer a seus comandos. Assim, o conceito de um Estado legítimo de jure pareceria ser vazio, e o anarquismo filosófico pareceria ser a única crença política razoável para um homem esclarecido.” (Wolff 1970: 17)

Como Wolff afirma aqui, parece não haver “nenhum Estado” que seja legítimo. Essa afirmação é feita de maneira absoluta e a priori, ponto observado por Reiman em sua crítica a Wolff (Reiman 1972). Wolff não nega, vale dizer, que existam Estados legítimos de facto: os governos muitas vezes têm a aprovação e o apoio do povo que governam. Mas essa aprovação e esse apoio são meramente convencionais e não se baseiam em um dever moral; além disso, são fabricados e manipulados pelo poder coercitivo, pela propaganda e pela ideologia do Estado.

Observamos aqui que o anarquismo de Wolff está ligado a Kant. Mas Kant não é anarquista: ele defendia a ideia de um governo republicano esclarecido no qual a autonomia seria preservada. Rousseau pode estar mais próximo de advogar pelo anarquismo em algumas de suas observações — embora essas estejam longe de ser sistemáticas (ver McLaughlin 2007). Alguns autores veem Rousseau como defensor de algo próximo ao “anarquismo filosófico a posteriori” (ver Bertram 2010 [2017]) — que será definido na próxima seção. Entre os filósofos políticos clássicos, também podemos considerar Locke em relação ao “anarquismo libertário” (ver Varden 2015) ou Locke como alguém que oferece uma teoria “à beira do anarquismo”, como afirmou Simmons (Simmons 1993). Mas, apesar de sua forte defesa dos direitos individuais, da maneira rigorosa com que descreve o consentimento voluntário e de sua defesa da revolução, Locke acredita que os Estados podem ser justificados com base na teoria do contrato social.

Deixando de lado os autores canônicos da filosofia política ocidental, o local mais provável para encontrar o anarquismo deontológico e a priori é entre os anarquistas cristãos. É claro que a maioria dos cristãos não é anarquista. Mas aqueles cristãos que adotam o anarquismo geralmente o fazem com afirmações absolutas, deontológicas e a priori, do tipo feitas por Tolstói, Berdyaev e Ellul — como já mencionado acima.

Anarquismo contingente, consequencialista e a posteriori

Uma forma menos rigorosa de anarquismo argumentará que os Estados poderiam ser justificados em teoria — embora, na prática, nenhum Estado ou muito poucos Estados sejam realmente legítimos. O anarquismo contingente sustenta que os Estados, na configuração atual das coisas, não atendem aos padrões de sua própria justificativa. Trata-se de um argumento a posteriori (veja Simmons 2001), baseado tanto em uma explicação teórica da justificativa do Estado (por exemplo, a teoria do contrato social da teoria liberal-democrática) quanto em uma análise empírica de como e por que os Estados concretos falham em ser justificados com base nessa teoria. O autor do presente artigo ofereceu uma versão desse argumento baseada na teoria do contrato social, sustentando que a teoria liberal-democrática do contrato social fornece a melhor teoria para justificar o Estado, ao mesmo tempo em que argumenta que muito poucos Estados realmente cumprem a promessa da teoria do contrato social (Fiala 2013a).

Uma versão do argumento anarquista contingente foca na questão do ônus da prova para as justificativas que sustentariam a autoridade política. Essa abordagem foi articulada por Noam Chomsky, que explica:

[Esta] é o que sempre entendi como a essência do anarquismo: a convicção de que o ônus da prova deve ser colocado sobre a autoridade, e que ela deve ser desmantelada se esse ônus não puder ser cumprido. Às vezes, o ônus pode ser cumprido. (Chomsky 2005: 178)

Chomsky aceita autoridade legítima baseada na experiência cotidiana: por exemplo, quando um avô impede uma criança de correr para a rua. Mas a autoridade do Estado é um assunto muito mais complicado. As relações políticas são atenuadas; há probabilidade de corrupção e interesse próprio infectando a realidade política; existem níveis e graus de mediação que nos alienam da fonte da autoridade política; e a autonomia racional dos adultos é importante e fundamental. Ao focar no ônus da prova, Chomsky reconhece que pode haver maneiras de cumprir esse ônus para justificar o Estado. Mas ele aponta que existe um argumento prima facie contra o Estado — baseado em uma explicação histórica e empírica complexa do papel do poder, da economia e da inércia histórica na criação das instituições políticas. Ele explica:

Tais instituições enfrentam um pesado ônus da prova: deve ser demonstrado que, sob as condições existentes, talvez por alguma consideração premente de privação ou ameaça, alguma forma de autoridade, hierarquia e dominação é justificada, apesar do caso prima facie contra ela — um ônus que raramente pode ser cumprido. (Chomsky 2005: 174)

Chomsky não nega que o ônus da prova possa ser cumprido. Seu ponto é que existe um caso prima facie contra o Estado, já que o ônus da prova para justificar o Estado raramente é cumprido.

O anarquismo contingente baseia-se em raciocínio consequencialista, focado nos detalhes da realidade histórica. O anarquismo consequencialista apela a considerações utilitaristas, argumentando que os Estados geralmente falham em promover a felicidade do maior número de pessoas — e, de modo mais forte, que o poder estatal tende a produzir infelicidade. A realidade da desigualdade, do classismo, do elitismo, do racismo, do sexismo e de outras formas de opressão pode ser usada para sustentar um argumento anarquista, afirmando que, embora poucas pessoas se beneficiem do poder estatal, uma maioria maior sofre sob ele.

Há uma diferença significativa entre o anarquismo proposto em nome do ideal utilitarista da maior felicidade e o anarquismo proposto em defesa das minorias contra a tirania da maioria. Como veremos na próxima seção, os anarquistas individualistas estão principalmente preocupados com a tendência da política utilitarista de sacrificar os direitos dos indivíduos em nome do bem maior.

Antes de nos voltarmos para essa concepção de anarquismo, vale destacar dois autores clássicos que oferecem insights sobre o anarquismo utilitarista. William Godwin articulou uma forma de anarquismo que está ligada a uma preocupação utilitarista. O pensamento moral geral de Godwin é utilitarista em sua concepção básica, embora ele também argumente com base em princípios fundamentais, como a importância da liberdade. Mas os argumentos de Godwin são a posteriori, baseados em generalizações históricas e com uma visão voltada ao desenvolvimento futuro da felicidade e da liberdade. Ele escreve:

Acima de tudo, não devemos esquecer que o governo é um mal, uma usurpação sobre o julgamento privado e a consciência individual da humanidade; e que, por mais que sejamos obrigados a admiti-lo como um mal necessário por ora. (Godwin 1793: livro V, cap. I, p. 380)

Essa afirmação é semelhante à de Chomsky na medida em que reconhece a natureza complexa da dialética histórica. O objetivo do desenvolvimento político deve ser o de ir além do Estado (e em direção ao desenvolvimento da razão e da moralidade individuais). Mas, em nossa condição atual, alguma forma de governo pode ser “um mal necessário”, que devemos nos esforçar para superar. A questão aqui é que nossos julgamentos sobre a justificação do Estado são contingentes: dependem das circunstâncias presentes e da nossa forma atual de desenvolvimento. E, embora os Estados possam ser características necessárias do mundo humano atual, à medida que os seres humanos evoluem, é possível que o Estado deixe de ser útil.

Devemos observar que argumentos utilitaristas são frequentemente usados para apoiar estruturas estatais em nome do bem maior. Os anarquistas utilitaristas argumentarão que os Estados falham em cumprir esse objetivo. No entanto, conclusões utilitaristas geralmente não se baseiam em apelos fundamentais a princípios morais como a liberdade ou os direitos do indivíduo. Assim, Jeremy Bentham descreveu as reivindicações sobre direitos humanos como “falácias anárquicas” porque tendiam a levar ao anarquismo, o qual ele rejeitava. Bentham descreveu a diferença entre um esforço utilitarista moderado de reforma e a doutrina revolucionária anarquista dos direitos humanos, dizendo que:

o anarquista, ao erigir sua vontade e fantasia como uma lei diante da qual toda a humanidade deve se curvar ao primeiro comando — o anarquista, ao pisotear a verdade e a decência, nega a validade da lei em questão — nega sua existência como uma lei propriamente dita, e conclama toda a humanidade a se levantar em massa e resistir à sua execução. (Bentham 1843: 498)

Um anarquismo mais principista e deontológico sustentará que os Estados violam direitos fundamentais e, portanto, não são justificados. Já o anarquismo utilitarista não se preocupará primariamente com a violação dos direitos de algumas pessoas (embora isso obviamente seja uma consideração relevante). Em vez disso, a crítica do anarquista utilitarista é que as estruturas estatais tendem a gerar desvantagens para a maioria das pessoas. Além disso, o que Oren Ben-Dor chama de “anarquismo baseado no utilitarismo” fundamenta-se na ideia de que não há justificação a priori para o Estado (Ben-Dor 2000: 101–2). Para o utilitarista, tudo depende das circunstâncias e condições. Ben-Dor chama isso de anarquismo porque rejeita qualquer noção a priori de justificação do Estado. Em outras palavras, o anarquista utilitarista não presume que os Estados sejam justificáveis; em vez disso, ele sustentará que o ônus da prova recai sobre o defensor do Estado, que deve demonstrar que a autoridade estatal é justificável com base em critérios utilitaristas, trazendo dados históricos e empíricos sobre a natureza humana, o florescimento humano e a organização social bem-sucedida.

Anarquismo-socialismo

As formas de anarquismo também diferem em termos do conteúdo da teoria, do ponto focal da crítica anarquista e do impacto prático imaginado do anarquismo. As formas socialistas de anarquismo incluem o anarquismo comunista associado a Kropotkin e o anarquismo comunitarista (ver Clark 2013). A abordagem socialista foca no desenvolvimento de grupos sociais e comunitários, que devem prosperar fora de estruturas políticas hierárquicas e centralizadas. Formas individualistas de anarquismo incluem algumas vertentes do libertarianismo ou anarcocapitalismo, bem como o antinomianismo egoísta e o inconformismo. O foco individualista rejeita a identidade de grupo e ideias sobre o bem social/comunitário, ao mesmo tempo em que permanece firmemente enraizado em reivindicações morais sobre a autonomia do indivíduo (ver Casey 2012).

O anarquismo individualista está historicamente associado a ideias encontradas em Stirner, que disse: “todo Estado é um despotismo” (Stirner 1844 [1995: 175]). Ele argumentava que não havia dever de obedecer ao Estado e à lei porque estes prejudicam o autodesenvolvimento e a vontade própria. O Estado busca domar nossos desejos e, junto com a igreja, enfraquece o prazer de si e o desenvolvimento da individualidade única. Stirner é crítico até mesmo de organizações sociais e partidos políticos. Embora não negue que um indivíduo possa se afiliar a tais organizações, ele sustenta que o indivíduo mantém seus direitos e identidade em relação ao partido ou organização social: ele pode abraçar o partido, mas não deve permitir ser “abraçado e absorvido pelo partido” (Stirner 1844 [1995: 211]). O anarquismo individualista tem sido atribuído a diversos pensadores, incluindo Josiah Warren, Benjamin Tucker e Thoreau.

O anarquismo individualista também parece ter algo em comum com o egoísmo do tipo associado a Ayn Rand. No entanto, Rand rejeitou o anarquismo como “uma abstração flutuante ingênua” que não poderia existir na realidade; e argumentou que governos existem propriamente para defender os direitos das pessoas (Rand 1964). Uma forma mais robusta de anarquismo pró-capitalista foi defendida por Murray Rothbard, que rejeita o “anarquismo de esquerda” do tipo que associa ao comunismo, ao mesmo tempo que aplaude o anarquismo individualista de Tucker (Rothbard 2008). Rothbard continua explicando que, como o anarquismo tem sido geralmente considerado um fenômeno comunista de esquerda, o libertarianismo deveria se distinguir do anarquismo chamando-se de “não-arquismo” (Rothbard 2008). Um termo relacionado tem sido empregado na literatura, “minarquismo”, usado para descrever o Estado mínimo aceito por libertários (ver Machan 2002). Os libertários ainda são individualistas, que enfatizam a importância da liberdade individual, mesmo que discordem dos anarquistas radicais sobre o grau em que o poder estatal pode ser justificado.

Vale considerar aqui a complexidade da noção de liberdade em questão, apelando para a conhecida distinção de Isaiah Berlin entre liberdade negativa e positiva (Berlin 1969). Alguns anarquistas individualistas parecem focar na liberdade negativa, ou seja, liberdade de restrição, autoridade e dominação. Mas o anarquismo também tem se preocupado com comunidade e bem social. Nesse sentido, os anarquistas estão focados em algo semelhante à liberdade positiva e preocupados com a criação e sustentação das condições sociais necessárias para a realização do florescimento humano. Nesse aspecto, os anarquistas também ofereceram teorias sobre regras institucionais e estruturas sociais não autoritárias. Isso pode soar paradoxal (ou seja, que anarquistas defendam regras e estruturas), mas Prichard argumentou que os anarquistas também estão interessados na “liberdade dentro” das instituições e estruturas sociais. Segundo Prichard, em vez de focar na autoridade estatal, as instituições anarquistas serão processos abertos, complexos e não lineares (Prichard 2018).

Vemos, então, que o anarquismo individualista que foca apenas na liberdade negativa é frequentemente rejeitado por anarquistas interessados em reconceber a comunidade e reestruturar a sociedade em moldes mais igualitários. De fato, o anarquismo individualista tem sido criticado como uma mera questão de “estilo de vida” (criticado em Bookchin 1995), que foca em vestuário, comportamento e outras escolhas e preferências individualistas. Bookchin e outros críticos do individualismo de estilo de vida argumentarão que o simples inconformismo faz muito pouco para mudar o status quo e derrubar estruturas de dominação e autoridade. Tampouco o inconformismo e o anarquismo de estilo de vida atuam para criar e sustentar sistemas que afirmem a liberdade e a igualdade. Mas defensores do inconformismo de estilo de vida argumentarão que há valor em rejeitar normas culturais e demonstrar desprezo pela conformidade por meio de escolhas individuais de estilo de vida.

Uma forma mais robusta de anarquismo individualista focará em valores-chave como autonomia e autodeterminação, afirmando a primazia do indivíduo em relação aos grupos sociais como uma questão de direitos. Anarquistas individualistas podem admitir que a ação coletiva é importante e que a cooperação voluntária entre indivíduos pode resultar em comunidades benéficas e que preservam a autonomia. As disputas restantes considerarão se o que resulta da cooperação individual é uma forma de capitalismo ou uma forma de partilha social ou comunismo. Anarquistas libertários ou anarcocapitalistas defenderão ideias de livre mercado baseadas em escolhas individuais na troca e produção de bens para o mercado.

Por outro lado, o anarquismo socialista ou de orientação comunista focará mais em uma economia de partilha. Isso pode assumir a forma de um mutualismo amplo ou algo local e concreto como o compartilhamento da vida familiar ou o tradicional potlatch. Mas essas ideias permanecem anarquistas na medida em que desejam evitar o controle centralizado e o desenvolvimento de estruturas hierárquicas de dominação. Ao contrário do comunismo centrado no Estado, do tipo desenvolvido por marxistas, o comunismo anarquista defende a descentralização. O lema dessa abordagem vem de Kropotkin: “tudo para todos”. Em A Conquista do Pão (1892), Kropotkin critica a centralização monopolista que impede as pessoas de terem acesso à riqueza gerada socialmente. A solução é “tudo para todos”: “O que proclamamos é o Direito ao Bem-Estar: Bem-Estar para Todos!” (Kropotkin 1892 [1995: 20]). A ideia comunista de que todos os seres humanos devem usufruir dos frutos do produto coletivo humano compartilha algo com a ideia marxista de “a cada um segundo sua necessidade” (Marx 1875). Mas Kropotkin argumenta pela necessidade de evoluir além do controle comunista centralizado — o que ele critica como mero “coletivismo” — e em direção ao comunismo anarquista:

A anarquia leva ao comunismo, e o comunismo à anarquia, sendo ambos expressões da tendência predominante nas sociedades modernas: a busca pela igualdade. (Kropotkin 1892 [1995: 31])

Kropotkin argumenta que o impulso comunitário já existe e que os avanços na riqueza social, possibilitados pelo desenvolvimento do capitalismo individualista, tornam provável que evoluamos em direção ao compartilhamento comunal. Ele defende que a tendência da história é afastar-se do poder centralizado e caminhar rumo à igualdade e à liberdade — e à abolição do Estado. O anarquismo comunista de Kropotkin baseia-se em afirmações históricas e empíricas: sobre se as coisas podem realmente ser organizadas de forma mais satisfatória sem a intervenção estatal; e sobre se os Estados realmente personificam a injustiça e a opressão.

O libertarianismo e o anarcocapitalismo também acreditam que o mercado livre funcionará para maximizar adequadamente o bem-estar humano e ajudar os indivíduos a realizarem sua própria autonomia. Mas, para os anarquistas socialistas e comunistas, a questão da autorrealização individual é menos importante do que a ideia de desenvolvimento social. O lema de Kropotkin, “tudo para todos”, indica um foco moral e ontológico diferente daquele que encontramos entre os individualistas.

As formas socialistas e comunitárias de anarquismo enfatizam a importância dos grupos sociais. Por exemplo, as famílias podem ser vistas como estruturas anárquicas de cooperação e solidariedade social. Um anarquista social criticaria formas hierárquicas e dominadoras de organização familiar (por exemplo, a estrutura patriarcal da família). Mas os anarquistas sociais enfatizarão que a identidade humana e o florescimento ocorrem dentro de estruturas sociais ampliadas — desde que estas permaneçam comunidades livres e autodeterminadas.

A tensão entre o anarquismo individualista e o socialista atinge seu ponto central ao se considerar a questão do grau em que um indivíduo deve ser subordinado à comunidade. Um problema para as chamadas teorias “comunitaristas” da vida social e política é que elas podem resultar na submersão dos indivíduos dentro da identidade comunal. Os individualistas desejarão lutar contra esse ataque à autonomia e à identidade individual. Os comunitaristas podem responder, como faz Clark, alegando que o ideal de uma comunidade genuína de indivíduos autônomos continua sendo o sonho esperançoso de uma “comunidade impossível” (Clark 2013). Por outro lado, teóricos focados na comunidade apontarão que os seres humanos não podem existir fora de estruturas comunais: somos animais sociais que florescem e sobrevivem em comunidades. Assim, o individualismo radical também permanece um sonho — e, como apontam os anarquistas mais politicamente orientados, o individualismo mina a possibilidade de ação política organizada, o que implica que os anarquistas individualistas serão incapazes de resistir com sucesso às estruturas políticas de dominação.

Referências

Referências e tradução contido em: Fiala, Andrew, “Anarchism”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2021 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2021/entries/anarchism/>.

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