Arqueologia do saber: resumo
A Arqueologia do Saber, de Michel Foucault, foi lançado em 1969, logo após Maio de 68 e no limite de sua fase arqueológica. O autor tomou a iniciativa de realizar um trabalho inédito: pela primeira vez, Foucault elaborou um livro com orientações para pesquisa, explicando os conceitos utilizados em suas pesquisas anteriores e elaborando uma coerência entre noções básicas para a prática da arqueologia do saber.
Trata-se de um esforço importantíssimo, pois seus trabalhos tinham como características a delimitação do objeto e da ferramentas de pesquisa no próprio ato de investigação. Seus conceitos são formulados conforme a necessidade percebida no processo de pesquisa.
Foi assim que a episteme nasceu em seus primeiros livros e morreu na fase genealógica, que a noção de dispositivo surgiu e nunca foi utilizada rigorosamente da mesma maneira em toda sua obra.
É com base n’A Arqueologia do Saber que uma prática arqueológica pode ser feita, sistematizada e criticada dentro dos departamentos universitários.
Dito isso, é interessante compreender que o próprio Foucault explica o que realmente interessa para seu projeto de uma análise enunciativa.
Arqueologia do Saber: Michel Foucault como professor
As historias arqueológicas são moveis, pois deslocam-se pelos discursos e pelas praticas em suas camadas, contornam os saberes procurando descrever e individualizar os enunciados discursivos[1].
O que marca o lançamento d’A Arqueologia do Saber é o impulso de Michel Foucault em dar sentido aos livros anteriores que são apresentados como aplicações do método explicado:
1) Em História da Loucura, Foucault descreve o caminho da percepção sobre a loucura pela história até se tornar objeto da recém-criada psiquiatria. As práticas de terapia, os locais de isolamento (como manicômios e prisões) e a relação do restante da sociedade com os desrazoados são detalhadas ao longo do grosso volume, segundo Roberto Machado[2],
Não é a unidade do objeto loucura que constitui a unidade da psicopatologia. Ao contrário, é a loucura que foi construída pelo que se disse a seu respeito, pelo conjunto dessas formulações. Segundo, a organização de um discurso também não é presidida por sua forma de encadeamento, um modo constante de enunciação, um “estilo”. Trata-se antes de um grupo de enunciações heterogêneas que coexistem em uma disciplina, como a clínica médica por exemplo. Terceiro, a unidade de um discurso não pode ser buscada em um sistema fechado de conceitos compatíveis entre si, que seria o núcleo de base a partir do qual os outros seriam derivados, e que formaria uma espécie de “arquitetura conceitual”. É preciso explicar o aparecimento de novos conceitos, alguns até incompatíveis com os outros, o que só é possível pela definição de um sistema das regras de formação dos conceitos;
2) O Nascimento da Clínica marca a conquista da cientificidade pela medicina. Claro que Foucault não a fez ciência, mas explicou como a percepção dos médicos se alterou de tal maneira que as descrições se detalharam e o olhar médico se tornou voraz.
3) Palavras e as Coisas é a bíblia do nascimento das ciências humanas. É alí que Foucault trabalha principalmente com a transformação da análise das riquezas em economia política, da gramática geral em filologia e da história natural em biologia. Por fim, demonstra como o conceito de homem surgiu.
Em todos esses livros, Foucault procurou realizar uma arqueologia do saber, buscou encontrar as formações discursivas que deram abertura ao nascimento de cada discurso. Encontrar a formação discursiva é compreender as condições de possibilidade da emergência dos enunciados que a compõem.
A formação discursiva, por sua vez, é um “sistema de dispersão […] [E uma regularidade] entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas”. Só podemos chamar de discurso “um conjunto de enunciados que se apoiem na mesma formação discursiva”[3].
Para além da designação dos signos, o discurso é também a formação, a possibilidade e a configuração desses signos com relações de poder, hierarquias, exclusões, inclusões e obstruções. O discurso não está nem limitado às palavras, nem às coisas. O discurso não é uma unidade monolítica,
A dita unidade de um discurso, como uma ciência por exemplo, unidade procurada nos níveis do objeto, do tipo de enunciação, dos conceitos básicos e dos temas, é na realidade uma dispersão de elementos[4].
A análise do discurso, portanto, ao procurar por uma lei de coexistência entre os enunciados, busca uma lei de dispersão,
Mas com que objetivo? Para estabelecer regularidades que funcionem como lei da dispersão, ou formar sistemas de dispersão entre os elementos do discurso como uma forma de regularidade[5].
Esses sistemas de dispersão são as formações discursivas.
Ao encontrar as formações discursivas, Foucault nunca pretendeu delinear uma teleologia fatalista, uma determinação impossível de fugir. Pelo contrário, a arqueologia é o instrumento de conservação das possibilidades, não é uma faca de corte reto. Afinal, uma formação discursiva não é um conjunto concreto de dizeres, mas um conjunto concretos de condições de possibilidade e, por sua vez, essas possibilidades já foram determinadas pela história, por aquilo que de fato foi dito.
Esta característica é vista inclusive nas quatro frentes de análise delineadas por Foucault. São nesses quatro feixes de relações em que é possível encontrar as regras de formação do discurso. São eles: os objetos; os conceitos; as modalidades enunciativas e as estratégias. A pesquisa em cada frente das citadas acima forma sistemas diferentes que não se hierarquizam idealmente, mas sim na própria prática do discurso, e que formam um sistema quando relacionadas entre si,
Não há justaposição nem autonomia absoluta, mas um sistema vertical de dependência. E essa hierarquia de relações também não privilegia nível algum, na medida em que se dá nos dois sentidos, fazendo um nível sempre depender do outro em sua formação[6].
Desta forma, a história se desloca e é vista em séries, os enunciados se ligam mesmo fora da linha cronológica, as teorias e os conceitos se subordinam às regras intersticiais das formações discursivas e a prática acontece de maneira que, quando menos se percebe, a configuração social se alterou.
Aliás, está aqui outro ponto importante: a análise discursiva está diretamente relacionada à análise não-discursiva. Na medida em que o discurso é o objeto principal e o foco de estudo da arqueologia, ela não se protege dos acontecimento de ordem técnica, econômica, social ou política, estabelecendo articulações para apresentar novos jogos de relações que antes não seriam vistos.
Essas duas ordens podem ser relacionadas como? É difícil responder, Foucault não elabora uma sistemática para a articulação do discursivo com o não-discursivo, não chega a teorizar nada n’A Arqueologia do Saber, mas fica óbvio que não se trata de uma simples determinação do discursivo pelo não-discursivo,
Para Foucault, essa relação é muito mais complexa, e sua tentativa é mostrar que articular discurso e não-discurso é articular regras de formação dos discursos e formação não-discursiva[7].
Apesar de não teorizar sistematicamente sobre este assunto, a inter-relação entre as duas ordens é feita por Foucault em suas obras anteriores, mas não necessariamente a partir do mesmo modelo. Isso porque Foucault critica a determinação do discurso pelo não-discursivo, mas também vai contra a dita análise simbólica, que estabelece uma relação de reflexibilidade simétrica entre ambas as ordens.
Deleuze[8] compreendeu a crítica de Foucault e soube comentá-la em seu livro sobre o autor,
Uma “época” não preexiste aos enunciados que a exprimem nem as visibilidades que a preenchem. São os dois aspectos essenciais: por um lado, cada estrato, cada formação histórica implica uma repartição do visível e do enunciável que se faz sobre si mesma; por outro lado, de um estrato a outro varia a repartição, porque a própria visibilidade varia em modo e os próprios enunciados mudam de regime.
A relação estabelecida entre as relações discursivas e as não-discursivas é sempre única, sem obedecer a um modelo estático e inflexível. Cada arqueologia mostra uma permeabilidade diferente do discurso pelos acontecimentos não-discursivos, sendo tarefa do arqueólogo descobrir até que ponto esta articulação existe.
A arqueologia, portanto, se situa como um procedimento para apreender os limites e as articulações que um saber determinado pode mostrar. Não é um procedimento que precisa ser aplicado em ciências – a formação das ciências foi um objeto que Foucault utilizou pela abrangência de dados e pesquisas históricas -, mas sim em saberes: em conjuntos sistemáticos de enunciados e posições possíveis para o sujeito, junto com técnicas e tecnologias instrumentalizadas.
A arqueologia não procura descrever os discursos das disciplinas cientificas em sua relação com as verdades que estes discursos podem revelar, mas procura descrever seus limiares, seus limites e pontos de cruzamento, o que Foucault chama de um “emaranhado de interpositividades” dessa forma podemos aceitar que na prática operada por Foucault a arqueologia estaria em uma nova região do conhecimento, e não compreender isso como ponto de partida é arriscar ao erro qualquer investigação sobre a arqueologia[9].
O discurso não é um meio, mas é também um fim. O desejo está presente, mas não como um desejo que instrumentaliza o discurso, é um desejo pelo discurso. Um desejo que passa pelas próprias lutas no interior dos discursos que visam dominação, prevalência de determinados saberes em detrimento de outros ou de determinadas estratégias discursivas em detrimento de outras.
O nível discursivo
O discurso disponibiliza as armas para uma guerra no nível discursivo e, ao fornecê-las, permite certa forma de luta concreta através dos signos linguísticos que ensejam lutas concretas no nível do poder. Por sua vez, o poder articula e fornece bases para a enunciação. Saber é poder.
Sendo assim, tanto saber como poder fazem parte de um olhar anterior aos conceitos, um olhar pré-conceitual. Este olhar abarca a própria organização dos signos linguísticos e das coisas significadas, se situa num nível anterior aos conceitos utilizados para dar sentido ao mundo, pois este nível é aquele que permite a definição do que faz e do que não faz sentido.
No fundo, Foucault não busca explicar a cientificidade ou validade de um saber, mas seu foco são as condições que permitem seu exercício, sua emergência e, ao olhar as relações de poder que são praticadas nas lutas sociais, intelectuais e políticas, sua legitimidade ou sua derrota.
Devemos esclarecer que em Arqueologia do Saber a assertiva de que o discurso é autônomo não significa apenas que o discurso pode ser tornado inteligível segundo seus próprios termos. É, antes, a afirmação extrema e interessante (mesmo se, em último caso, implausível) de que o discurso unifica todo o sistema de práticas, e que é apenas em termos desta unidade discursiva que os vários fatores sociais, políticos, econômicos, tecnológicos e pedagógicos se reúnem e funcionam de um modo coerente.[10]
Ou seja, a existência das instituições, por exemplo, não são a base de existência de uma prática discursiva institucional. A própria “ideia” da instituição fornece a base de existência para o funcionamento técnico e tecnológico de uma instituição. É claro, esta “ideia”, na verdade, é a própria prática discursiva num determinado momento vista em seu nível discursivo enquanto as técnicas e tecnologias estariam num nível não discursivo: ambas coexistem. A materialidade das relações sociais (e das relações de poder) necessita de uma materialidade linguística, enunciativa, que permite e fundamenta o fluxo de relações em jogo.
O projeto de resenha detalhada
Abaixo, você consegue ver cada capítulo e cada seção da Arqueologia do Saber resenhados.
Entretanto, todos estão no site do Colunas Tortas, mas você pode adquirir o e-book Foucault e a Arqueologia, com todas as resenhas completas e reunidas em um livro digital no formato ePUB.
O e-book trata dos conceitos de formação discursiva, saber, enunciado, função enunciativa, arquivo, acontecimento, unidade do discurso, a priori histórico e outros.
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O autor:
Vinicius Siqueira é mestre em Ciências pelo Programa de Pós Graduação em Educação e Saúde da UNIFESP e pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, além de ser responsável pelo portal de conteúdo de ciências humanas Colunas Tortas. É autor de “Foucault e a Arqueologia”, “Homo Psychologicus: Lendo Doença Mental e Psicologia de Foucault” entre outros e-books.
Conteúdo do e-book Foucault e a Arqueologia:
- Introdução
- As Regularidades Discursivas
- As Unidades do Discurso
- As Formações Discursivas
- A Formação dos Objetos
- A Formação das Modalidades Enunciativas
- A Formação dos Conceitos
- A Formação das Estratégias
- Observações e Consequências
- O Enunciado e o Arquivo
- Definir o Enunciado
- A Função Enunciativa
- A Descrição dos Enunciados
- Raridade, Exterioridade, Acúmulo
- O A Priori Histórico e o Arquivo
- A Descrição Arqueológica
- Arqueologia e História das Ideias
- O Original e o Regular
- As Contradições
- Os Fatos Comparativos
- A Mudança e as Transformações
- Ciência e Saber
Depoimentos
Muito bom! Utilizo o e-book para estudos, citações e pesquisa.
Rita de Cássia Siqueira Lima: Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Alagoas e Pesquisadora.
Muito bom! Tenho interesse nos conceitos de Foucault sobre o discurso e estou usando em meu mestrado.
Helena Maria de Freitas Chagas: Ex-ministra-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência do Brasil e mestranda em jornalismo pela UnB.
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Referências
[1]↑RAGUSA, Pedro; JOANILHO, André Luiz. Arqueologia do Saber e a História. Artigo apresentado em evento na Universidade Estadual de Londrina. p. 1720.
[2]↑ MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Edição Kindle, location 2854-2865.
[3]↑ FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber.
[4]↑ Foucault, a ciência e o saber… location 2865-75.
[5]↑ Foucault, a ciência e o saber… location 2865-75.
[6]↑ Foucault, a ciência e o saber… location 2918-29.
[7]↑ Foucault, a ciência e o saber… location 2939-50.
[8]↑ DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2005, p. 58.
[9]↑ Arqueologia do Saber e a História… p.1720.