As condições de possibilidade, por Michel Foucault – DROPS #13

FLORENCE, Maurice. FOUCAULT. IN HOUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 388-391.

E se quisermos enquadrar Foucault na tradição filosófica, será na tradição crítica, de Kant, que poderemos inserir seu empreendimento História Crítica do Pensamento, mas abstendo-nos de entendê-la como uma história das idéias que seja ao mesmo tempo análise de erros dimensionáveis a posteriori, ou então decifração das incompreensões a que esses erros estão ligados e das quais poderia depender o que pensamos hoje em dia. Se por pensamento entendermos o ato que coloca um sujeito e um objeto em suas diversas relações possíveis, uma história crítica do pensamento será uma análise das condições em que são formadas ou modificadas certas relações entre sujeito e objeto, na medida em que estas são constitutivas de um saber possível.


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as condições de possibilidade em Michel Foucault

Não se trata de definir as condições formais de uma relação com o objeto; não se trata tampouco de identificar as condições empíricas que, em dado momento, permitiram que o sujeito em geral tomasse conhecimento de um objeto já dado no real. A questão é determinar o que deve ser o sujeito, a que condição ele está submetido, que situação deve ter, que posição deve ocupar no real ou no imaginário, para tornar-se sujeito legítimo deste ou daquele tipo de conhecimento; em suma, trata-se de determinar seu modo de “subjetivação”, pois, evidentemente, esse modo de subjetivação será diferente se o conhecimento de que se tratar tiver a forma de exegese de um texto sagrado, de observação de história natural ou de análise do comportamento de um doente mental. Mas a questão é também determinar em que condições uma coisa pode tornar-se objeto para um conhecimento possível, de que modo ela pôde ser problematizada como objeto por conhecer, a que procedimento de partição ela pôde ser submetida, que parte sua é considerada pertinente. Trata-se, portanto, de determinar seu modo de objetivação, que tampouco é o mesmo conforme o tipo de saber de que se trate.

Essa objetivação e essa subjetivação não são independentes uma da outra; é de seu desenvolvimento mútuo e de seu vínculo recíproco que nascem o que poderíamos chamar de “jogos de verdade”, isto é, não a descoberta das coisas verdadeiras, mas as regras segundo as quais o que um sujeito pode dizer acerca de certas coisas prende-se à questão do verdadeiro e do falso. Em suma, a história da crítica do pensamento não é uma história das aquisições nem das ocultações da verdade: é a história da emergência dos jogos de verdade, é a história das “veridicções”, entendidas como as formas segundo as quais, num domínio de coisas, se articulam discursos passíveis de serem qualificados como verdadeiros ou falsos: quais foram as condições dessa emergência, o preço que, de certo modo, por ela se pagou, seus efeitos sobre o real e a maneira como – ligando certo tipo de objeto a certas modalidades de sujeito – ela constituiu o a priori histórico de uma experiência possível para dado tempo, dada área e dados indivíduos.

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A primeira regra metodológica para esse gênero de trabalho é, pois, a seguinte: evitar na medida do possível, indagando sua constituição histórica, os universais antropológicos (e, é claro, também os universais de um humanismo que impusesse os direitos, os privilégios e a natureza de um ser humano como verdade imediata e atemporal do sujeito). É necessário também inverter o procedimento filosófico de subida em direção ao sujeito constituinte, do qual se espera a explicação daquilo que pode ser o objeto do conhecimento em geral; ao contrário, deve-se descer ao estudo das práticas concretas pelas quais o sujeito é constituído na imanência de um domínio de conhecimento.

Daí, um terceiro princípio metodológico: dirigir-se como domínio de análise às “práticas”, abordar o estudo pelo ângulo daquilo que “se fazia”. Assim, o que se fazia com os loucos, os delinqüentes ou os doentes? Evidentemente, a partir da representação que deles se tinha ou dos conhecimentos que se imaginava ter sobre eles pode-se tentar deduzir as instituições em que eram internados e os tratamentos a que eram submetidos; pode-se também investigar qual era a forma das “verdadeiras” doenças mentais e as modalidades da delinqüência real numa época dada para explicar o que se pensava então. Mas Michel Foucault aborda as coisas de maneira totalmente diferente: estuda primeiro o conjunto das maneiras de fazer mais ou menos regulamentadas, mais ou menos pensadas, mais ou menos finalizadas, através das quais se delineiam ao mesmo tempo aquilo que era constituído como real para os que procuravam pensá-lo e regulamentar e a maneira como estes se constituíam como sujeitos capazes de conhecer, analisar e, eventualmente, modificar o real. São as “práticas” entendidas como modo de agir e de pensar que fornecem a chave de inteligibilidade para a constituição correlativa do sujeito e do objeto. Ora, é só ao se tentar estudar os diferentes modos de objetivação do sujeito através dessas práticas que se compreende a importância do papel desempenhado pela análise das relações de poder. É necessário, contudo, definir bem o que tal análise pode e quer ser. Não se trata, evidentemente, de interrogar o “poder” sobre sua origem, seus princípios ou seus limites legítimos, mas de estudar os procedimentos e técnicas utilizados em diferentes contextos institucionais para agir sobre o comportamento dos indivíduos tomados isoladamente ou em grupo, para formar, dirigir e modificar sua maneira de portar-se, e para impor finalidades à sua inação ou inscrevê-la em estratégias globais, múltiplas portanto, em sua forma e em seu lugar de exercício; diversas igualmente nos procedimentos e nas técnicas que aplicam, essas relações de poder caracterizam a maneira como os homens são “governados” uns pelos outros, e sua análise mostra como, através de certas formas de “governo” dos alienados, dos doentes, dos criminosos etc, é objetivado o sujeito louco, doente, delinqüente. Tal análise não quer dizer, portanto, que o abuso deste ou daquele poder criou loucos, doentes ou criminosos onde não os havia, mas sim que as formas diversas e particulares de “governo” dos indivíduos foram determinantes nos diferentes modos de objetivação do sujeito.

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