O 14 de julho de 1789 é uma data que não vai sair da minha cabeça. Lembro-me de tê-la memorizado, ao lado de outras, nas aulas de história do ginásio (o que hoje seria o Ensino Fundamental II). Pois esta é a data que, esquematicamente, marca a passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea. Pelo menos assim era nos meus tempos de ginasial, em que lembrar-me dessa informação garantiu uns pontinhos nas provas. Mas hoje, alguns anos e experiências depois, consigo entender melhor todo o significado dessa data.
Primeiro, que a data é o menos importante. Evidentemente, a queda da Bastilha, prisão em que eram encarcerados os inimigos do Antigo Regime na França, foi um evento simbolicamente fantástico. Afinal, ele representou o desmantelamento do absolutismo francês e apontou o mesmo caminho para o resto da Europa. E, portanto, a superação do mundo feudal pela modernidade burguesa. Mas daí a implicar a substituição da Monarquia pela República e, mais profundamente, a participação popular, existe uma grande distância.
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E, talvez seja justamente por esses dois últimos elementos que a Revolução Francesa foi, no plano político, um movimento pioneiro e inspirador em todo o mundo. Graças a esse pioneirismo, a revolução foi capaz radicalizar-se num grau até então inimaginável. Assim, as forças contrarrevolucionárias demoraram a conter a radicalização do movimento, que atingiu seu ápice na República Jacobina (1793-1794). Momento que geralmente é lembrado pelo Terror e a fúria da guilhotina a ceifar os inimigos do Estado – inclusive o rei –, mas é esquecido em seu caráter popular e vitorioso na contenção dos conflitos internos e externos que ameaçavam a consolidação da Revolução.
De todo modo, do ponto de vista das ideias, a contribuição do movimento revolucionário na França é inquestionável. Ele encarnou as ideias do Iluminismo e lhes deu uma forma mais fiel, ultrapassando as limitações do Despotismo Esclarecido, que florescia em outras partes da Europa do século XVIII. Afinal, como ser verdadeiramente livre sendo súdito? Ora, isso é uma contradição em termos. Desse modo, uma de suas influências mais significativas foram os ideais que lhe serviram de bandeira: Liberdade, Igualdade e Fraternidade – e que, enfim, dariam as cores da bandeira tricolor francesa.
Assim, aqueles ideais de 1789 – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – permanecem vivos até hoje. Não que eles tenham sido alcançados. Pelo contrário, eles são as promessas não cumpridas da Revolução. A vitória da burguesia e, consequentemente, do modo de produção capitalista, parece mesmo ter substituído aquelas palavras de ordem.
A liberdade, se ainda permanece na pauta, está presente em sua versão do liberalismo econômico. A liberdade enquanto conceito moral caiu de vez. As únicas coisas que existem, agora, são escolhas racionais. Assim, a liberdade que resta está na livre iniciativa e no livre comércio – o sacrossanto livre mercado. Em resumo, o ser humano é livre para escolher se toma uma Coca-Cola ou uma Pepsi.
A igualdade, por sua vez, tornou-se sinônimo de socialismo ou comunismo. O que, segundo os ideólogos do capital, é uma ideia ultrapassada, vide o fracasso da União Soviética. Melhor substituí-la pela austeridade. Essa sim é uma ideia redentora, que veio para salvar as nações da ineficiência de seus Estados parasitários: esses Leviatãs famintos por sugar seus pobres contribuintes. Se uma ou outra Grécia atravessam verdadeiras convulsões sociais por conta dessas medidas impopulares… bem, isso é culpa da preguiça dos gregos, que não querem trabalhar mais por um salário menor – isso é o que diriam os defensores da austeridade.
A fraternidade, então, deu lugar à competitividade. Isso mesmo. Não olhe o próximo como irmão porque ele é seu rival e pode tomar o seu lugar. Aliás, ajudá-lo pode estimular a indolência e, como qualquer economista sabe, a economia de um país não pode sobreviver à concorrência internacional sem constantes ganhos de produtividade. Por isso, esteja disposto a trabalhar mais e ganhar menos. E sem reclamar, por favor. Afinal, neste mundo só sobrevivem os mais fortes.
Com toda essa ironia só quero mostrar quanto o triunfo burguês permitiu o abandono de ideias que foram fundadoras deste mundo em que a burguesia reina como classe dominante. Por isso, em que pese o caráter burguês da Revolução Francesa, é preciso sim resgatar seus ideais, naquilo que eles têm de subversivo e apontam na direção de uma outra sociedade.
Porque vale a pena lutar pela liberdade, em sua condição de superação da necessidade, das carências humanas. Vale a pena buscar o reino da liberdade, qual seja, uma sociedade em que todas as pessoas se vejam livres das privações. Isso não é garantia de felicidade, mas é um importante passo.
Uma tal liberdade não pode prescindir do ideal de igualdade. E quando falo de igualdade, não me refiro unicamente à isonomia, ou seja, a igualdade perante à lei. Mas da igualdade de fato, da possibilidade de todas as pessoas desfrutarem igualmente do nível de civilização alcançado pelo conjunto da sociedade. Isto é, que todas as pessoas possam satisfazer suas necessidades – sejam elas originadas no estômago ou na fantasia, como diria Marx.
Tais ideais, por sua vez, só podem ser atingidos mediante um espírito de solidariedade. Um espírito de cooperação, de união de esforços na direção de uma meta comum: criarmos uma sociedade em que o desenvolvimento de cada um seja a condição para o desenvolvimento de todos – como preconiza o Manifesto Comunista.
Por isso é importante lembrar de 1789. E buscar em seus ideais uma inspiração para lutar pela instauração de uma sociedade mais justa.
Extraordinária análise!