Enquanto a gente viver num país em que se apresenta projetos de leis que visam proibir o uso do banheiro por pessoas trans, travestis e transexuais (como o PL 5774/2016), criticar que pessoas trans reforcem estereótipos de gênero é pura hipocrisia. Se você não entende que o direito básico de mijar e cagar está condicionado – e existem pessoas lutando para que esse condicionamento fique cada vez mais acirrado – à reprodução de estereótipos de gênero – diga-se de passagem, através da passabilidade cis – você está sendo hipócrita.
O sujeito que criou o tal projeto de lei diz que o fato de pessoas trans usarem os banheiros de acordo com suas identidades “desrespeita” os “héteros” (vulgo cis). Lá diz no projeto que “homens que mudam de sexo” devem ter feito a cirurgia de redesignação e alterarem seus gêneros na justiça para só então poderem usar o banheiro feminino. Homens trans – referidos equivocadamente enquanto mulheres – “basta” que usem hormônios masculinos.
Percebam que a única forma possível de reconhecimento de uma pessoa trans se dá através da imposição de estereótipos de gênero – as cirurgias, os hormônios e todo o processo judicial que irá averiguar minuciosamente a pertença ao gênero reivindicado. Quem não tiver como se encaixar nestes estereótipos e critérios excludentes não são suficientemente cidadãos? Não gozariam então do princípio de presunção de inocência no exercício do uso de um banheiro? Acham mesmo que uma mulher trans só passa a ser mulher a partir do momento em que ela acorda de uma maca de hospital?
Transfóbicos não apelam para a razão para defender leis transfóbicas de exclusão. Eles apelam para imagens que geram paixões negativas: “imagina sua filha pequena vendo o pênis de um homem no banheiro”. Transfóbicos utilizam habilmente tais imagens para gerar pânico acerca da existência de pessoas trans. As imagens que são manipuladas pela transfobia não são produtos da razão, mas sim da imaginação. A imaginação, neste caso, deturpa o entendimento correto da realidade, pois está a mercê da manipulação fascista, que nega a possibilidade do outro existir em sua diferença e coexistir no ambiente público. O outro se torna perigoso, e é perigoso na exata medida em que é estigmatizado por habitar a zona de ininteligibilidade do gênero. E aqui o outro é potencialmente qualquer um, mesmo aqueles que a princípio não se pretendia excluir: tais exclusões são capazes de constranger e violentar inclusive pessoas cis que não se encaixarem adequadamente nos padrões de gênero.
A nossa arma, que é a razão, ao contrário, não gera repercussão em forma ódio ou pânico. Parafraseando Espinosa, por ser o mais potente dos afetos, a razão nos permite um entendimento correto do que nos afeta de forma com que nos tornamos capazes de discernir o que de fato nos afeta de forma positiva ou negativa. Em se tratando da existência trans, a razão nos torna capazes de compreender que a convivência mútua a base do respeito entre os diferentes através da alteridade é algo fundamental pelo qual se deve lutar e reivindicar. Isto porque, vejam só, pessoas trans na afirmação de suas identidades, não são perigosas, nem representam “perigo em potencial”. Esta deve ser inclusive a base pela qual toda e qualquer crítica aos padrões e estereótipos de gênero deve partir. Acreditar que pessoas trans são perigosas e por isso devem ser proibidas de compartilharem o banheiro com pessoa cis só foi possível porque o que guiou tais propostas foi a imaginação de imagens negativas sobre pessoas trans enquanto perigosas, o que incita paixões tristes, como ódio, pânico e repulsa.
Por isso acho muito proveitoso partimos de Baruch de Espinosa para compreendermos o uso do banheiro por pessoas trans. Ou melhor, as tentativas da proibição do uso do banheiro por pessoas trans.
Espinosa é um filósofo que busca compreender como os afetos se dão através dos nossos encontros. Os encontros se dão através da movimentação dos nossos corpos. O corpo de uma pessoa trans no banheiro, ao encontrar o corpo de uma pessoa cis neste banheiro, irá gerar nesta última um determinado afeto. Na maior parte das vezes afetos negativos, já que a pessoa cis poderá sentir: nojo, repulsa, ódio e medo. Ou também, incompreensão, revolta, estupefação, indignação… O banheiro neste caso se torna um verdadeiro laboratório de afetos (extremamente tristes, neste primeiro momento).
Espinosa é um filósofo que irá pensar sobre a liberdade. Como podemos ser livres se nós temos nossos afetos determinados ao acaso dos nossos encontros? A resposta é: a razão. A razão permite o entendimento correto daquilo que nos afeta, é portanto, o mais potente dos afetos, pois nos ajuda a não apenas estarmos a mercê dos encontros, mas de também proporcionar bons encontros e com isso, aumentar nossa potência de existir e agir.
Voltando à questão do banheiro… a afetação negativa pelo fato do sujeito cis compartilhar um espaço com um sujeito trans se sustenta a partir de uma análise racional? Entendemos que não, já que o que gera tantos afetos negativos no sujeito cis não é verdadeiramente o sujeito trans, mas sim o estigma que recai socialmente sobre o sujeito trans.
Podemos concluir então que tantos afetos tristes gerados na pessoa cis se deu em virtude de um mal entendimento da realidade. As pessoas cis estão escravas de seus próprios afetos negativos! Sob a razão, podemos compreender que tais afetos negativos foram gerados por um mal entendimento acerca das pessoas trans em virtude dos estigmas que recaem sobre elas. Com a razão, podemos vislumbrar que o encontro de corpos trans com os corpos cis não representam um perigo iminente. O encontro de pessoas trans e cis gerar maus afetos não é algo que esteja pré estabelecido, de forma com que, a partir da razão, o sujeito cis é capaz de enfim conquistar a liberdade: ao se encontrar com um corpo trans, sua potência não vai necessariamente diminuir; ao contrário, ela pode aumentar a partir do momento em que se propõe o exercício da alteridade.