Da série “Sociologia do Conhecimento“.
O debate travado por David Bloor no livro Conhecimento e imaginário social foi amplo e sua ousada empreitada atingiu muitas áreas do conhecimento. Na sociologia, as críticas de Bloor se dirigiram aos cientistas sociais, como Robert Merton e Joseph Ben-David, que faziam pesquisa e teorizavam apenas sobre os erros e as distorções ideológicas do conhecimento científico. Para Bloor, quando estes autores falavam sobre o conhecimento científico válido, somente o faziam, restritamente, descrevendo as condições sociais que envolviam a produção, mas nada diziam sobre o que isso impactava em seu conteúdo. Isso para Bloor era como trair a própria condição científica da sociologia.
Um dos princípios para sociologia do conhecimento proposta por Bloor é o da causalidade. Para o autor, a abordagem “(…) deverá ser causal, ou seja, interessada nas condições que ocasionam as crenças ou os estados do conhecimento”[1]. Portanto, no entendimento do teórico do Programa Forte, o sociólogo está interessado pelo conhecimento, inclusive pelo conhecimento científico, apenas como um fenômeno natural. A definição sobre esse conhecimento é bem distinta daquela oferecida pelo leigo ou pelo filósofo.
Em vez de defini-lo como crença verdadeira – ou, ainda, crença verdadeira justificada –, para o sociólogo o conhecimento é tudo aquilo que as pessoas consideram conhecimento. Ele consiste naquelas crenças que as pessoas sustentam com confiança e com as quais levam a vida. O sociólogo estará interessado em particular pelas crenças que são assumidas como certas, institucionalizadas ou, ainda, investidas de autoridade por grupos de pessoas[2].
Para Bloor, a preocupação com as causas não deve se limitar à construção de relatórios episódicos, numa mera constatação do que é contingente. O sociólogo deverá “(…) localizar regularidades e princípios ou processos gerais que estiverem em operação no campo de seus dados. O objetivo será o de construir teorias que expliquem tais regularidades. Para satisfazer a condição de generalidade máxima, as teorias terão que ser aplicadas seja a crenças verdadeiras seja a falsas, e, tanto quanto possível, o mesmo tipo de explicação terá que ser aplicado em ambos os casos”[3].
Como exemplificação dessas sentenças, Bloor destaca que o propósito da Fisiologia é o de explicar o organismo tanto na saúde quanto na doença; o objetivo da mecânica é o de entender as máquinas que funcionam e as que não funcionam, as pontes que ficam de pé e as que vêm ao chão. Para trazer entendimento à questão, Bloor elenca quatro descobertas que julga interessantes para ilustrar a abordagem proposta.
A primeira delas compreende estudos antropológicos como os de Mary Douglas nos livros Pureza e perigo e Símbolos naturais. Essas pesquisas investigaram as conexões entre a macroestrutura social dos grupos e a forma geral das cosmologias que eles adotavam. Dentre as descobertas, há correlatos sociais e possíveis causas no interior dos grupos para as visões de mundo antropomórficas e mágicas ou impessoais e naturalistas.
A segunda, diz respeito a estudos que estabelecem relações entre o desenvolvimento econômico (técnico e industrial) e o conteúdo das teorias científicas. Bloor resgata a pesquisa do filósofo da ciência Thomas Kuhn expressa no artigo Energy conservation as an example of simultaneous discovery sobre o impacto do desenvolvimento prático das tecnologias de vapor e água no conteúdo das teorias da termodinâmica. Ao avaliar a análise empreendida, Bloor acrescenta: “não pairam dúvidas sobre a ligação causal”[4].
A terceira trata das evidências de que aspectos da cultura em geral, considerados não-científicos, exercem grande influência tanto na criação quanto na avaliação de teorias científicas e de descobertas. Bloor cita estudos como o de Paul Forman, intitulado Weimar culture, causality and quantum theory. O texto sustenta que o movimento para eliminar a causalidade na física, que ganhou corpo e se proliferou no ambiente acadêmico da Alemanha do pós-Primeira Guerra, foi, antes de qualquer outra coisa, um esforço dos físicos alemães para adaptar o conteúdo da sua ciência aos valores de seu ambiente intelectual.
Bloor também apresenta outras pesquisas, como a que mostrou que por trás do conceito estatístico do coeficiente de correlação de Francis Galton havia um interesse basilar e que foi decisivo para a sua construção teórica que foi a questão da eugenia[5]. “Também o ponto de vista político, social e ideológico do geneticista Bateson foi utilizado a fim de explicar seu papel cético na controvérsia sobre a teoria genética da hereditariedade”[6].
A última das descobertas que Bloor usa para ilustrar a possibilidade de sua abordagem metodológica descreve a importância que processos de treinamento e socialização têm sobre a condução da ciência. Para o autor, os padrões de continuidade e descontinuidade, de aceitação e rejeição parecem ter explicação por conta desses processos. O aspecto levantado diz respeito a processos sociais internos à ciência. Bloor quer provar com isso que as considerações sociológicas não precisam ficar confinadas à operação de influências externas.
O exemplo que Bloor utiliza para apresentar essa perspectiva retrata como o conhecimento prévio dos fundamentos de uma disciplina científica influencia a avaliação de uma obra acadêmica. Tratam-se das críticas de William Thompson, que depois passaria a ser conhecido como Lord Kelvin, à teoria da evolução. Ao tratar o sol como um corpo incandescente que esfriava, Kelvin concluiu que o astro teria queimado à exaustão antes que a evolução chegasse ao estado atualmente observado, portanto, o mundo não seria antigo o suficiente para permitir todo esse desenvolvimento.
A sentença, pronunciada por um estudioso com autoridade científica quase inquestionável na termodinâmica, teve um impacto tremendo entre os biólogos. O argumento era imbatível na época. Era 1860 e um ano antes Charles Darwin tinha publicado A origem das espécies. Não havia como responder às críticas, pois estas seguiam rigorosamente as premissas físicas convincentes. O fato de Lord Kelvin ter sido profundamente religioso pode explicar a origem de suas atitudes contrárias à polêmica teoria de Darwin, mas este fato não desmerece a qualidade de sua exposição científica.
No entanto, na última década daquele século, os geólogos resolveram enfrentar o problema de frente e se encheram de coragem para dizer que Kelvin poderia ter se enganado.
Esta coragem recém-descoberta não se deveu a novas e dramáticas descobertas, aliás, não houve nenhuma mudança real da evidência disponível. O que ocorreu nesse ínterim foi a consolidação da geologia como uma disciplina que armazenava uma enorme quantidade de observações detalhadas de registros fósseis. Foi esse avanço que causou a variação de estimativas de probabilidade e plausibilidade: Kelvin deve ter deixado de considerar algum fator desconhecido, mas de importância crucial. Foi apenas com o entendimento da fonte de energia nuclear do Sol que seu argumento físico foi desbancado. Os geólogos e biólogos não tinham um conhecimento prévio disso; eles simplesmente não esperaram por uma resposta[7].
Assim, o que Bloor quer apresentar no exemplo acima é que, considerando a formação, o treinamento e autoridade de Kelvin em considerar mais a combustão do sol do que outros aspectos, como os fósseis, a teoria da evolução seria considerada improvável. No entanto, algumas décadas depois a situação se inverte, e a causa dessa mudança não se encontra em fatores puramente cognitivos. Segundo Bloor, não houve nenhuma alteração significativa na evidência disponível. O que houve, segundo ele, foi uma mudança social: a consolidação da geologia como disciplina.
Tal fato, na concepção de Bloor, permitiu um crescimento significativo na quantidade de observações de registros fósseis. As evidências atuaram como causas de mudança, mas não foram determinantes. Não são suficientes para explicá-la porque também havia evidências para desconsiderar a teoria da evolução. Se não houvesse uma disciplina consolidada para sustentar essas evidências, na concepção de Bloor, a mudança não teria ocorrido.
Portanto, o princípio da causalidade seria uma alternativa ao que o autor chama de modelo teleológico de conhecimento. Este é o conjunto das práticas teóricas que constituem o que Bloor intitula a sociologia do erro. Em termos gerais, o modelo sustentaria a irrelevância da sociologia da ciência na explicação acerca das crenças verdadeiras e racionais. Bloor enquadra nesse grupo autores de distintas linhagens teóricas como Imre Lakatos, Robert Merton, Joseph Bem-David e Karl Mannheim. O princípio da simetria proposto por Bloor vem para desmistificar essa questão: exige que verdade e erro obedeçam ao mesmo tipo de causa; se conhecimentos errôneos comportam causas sociológicas, os verdadeiros também os devem comportar.
Referências
[1] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: UNESP, 2009. p.21.
[2] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: UNESP, 2009. p.17.
[3] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: UNESP, 2009. P.18.
[4] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: UNESP, 2009. p.19.
[5] A pesquisa em questão é de Ruth Schwartz Cowan, intitulada Francis Galton’s statistical ideas: the influence of eugenics.
[6] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: UNESP, 2009. p.19. O autor cita neste trecho o estudo Bateson and Chromossomes de William Coleman.
[7] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: UNESP, 2009. p.20.
Cientista social que especula sobre a natureza social das ideias, sobre a não-identidade entre sujeito e objeto na produção do conhecimento e sobre o sentido de se dizer que a vida tem sentido.