Veja nosso episódio no podcast do Colunas Tortas sobre Conhecimento, Verdade e Discurso em Foucault. Em seguida, leia o texto abaixo!
Foucault[1] se indaga sobre a figura do sujeito de conhecimento ao se contrapor a uma certa noção de conhecimento proveniente do marxismo acadêmico. Esta noção marxista, segundo o autor, estaria pressupondo formas de conhecimento prévias ao sujeito humano, ao estabelecer uma relação entre as condições econômicas, sociais e políticas que iriam apenas se imprimir neste sujeito de conhecimento dado.
O autor irá propor, então, fazer uma própria história do sujeito do conhecimento, já que ele não parte desta noção de sujeito como um mero dado apriorístico, tampouco vai pressupor que as formas de construção do conhecimento estariam inscritas na natureza humana. Trata-se para Foucault dizer que a própria verdade tem uma história. A verdade, desta forma, está sendo interrogada em sua historicidade, na sua forma de emergência em um dado contexto de práticas sociais que engendram domínios de saber, visto que ela não é natural, tampouco dada pela natureza humana.
Neste processo, se enseja uma reelaboração da teoria do sujeito, descentralizando o próprio sujeito, segundo o autor, do núcleo central ou absoluto da produção do conhecimento. Desta forma, Foucault procura questionar este sujeito da representação como ponto de origem a partir do qual o conhecimento é possível e em que verdade aparece. Ele irá procurar pensar a constituição deste sujeito dentro da história, e não fora dela. Foucault encontra em Nietzsche uma forma mais adequada para construir esta análise histórica da produção do sujeito e de saberes sem pressupor a preexistência deste sujeito de conhecimento.
O autor irá propor duas “histórias da verdade”, uma interna e outra externa. A primeira se refere aos princípios de regulação que produzem a verdade dentro da história da ciência e a segunda se refere a “vários outros lugares” onde a verdade se forma, a partir de certo número de “regras de jogo”. Foucault faz então uma relação entre produção de verdade com produção de formas de subjetividade, domínios de objetos e saberes. Ou dizendo em outras palavras: a própria relação do homem com a verdade define formas especificas de produção de subjetividades, saberes e domínios de objetos. O autor cita como exemplo as formas jurídicas, que, ao realizarem as práticas penais (como o inquérito), simultaneamente produzem verdades acerca do indivíduo julgado em função de seu crime.
Foucault[2] também irá apontar como diversos discursos se fundamentam através da formulação de um discurso verdadeiro, fruto de nossa vontade histórica da verdade: as práticas econômicas, a moral, a literatura, a palavra da lei, teorias da riqueza e do direito; todos estes discursos pautaram-se em saberes exteriores da sociologia, psicologia, psiquiatria ou medicina para se legitimarem enquanto discursos de verdade.
Retomando Nietzsche, Foucault[3] frisa a contribuição do autor ao pensar o caráter “inventivo” do conhecimento. O conhecimento como uma invenção em contraposição ao conhecimento como origem. Desta forma, os objetos que virão a ser apreendidos pelo conhecimento não são dados prévios ao próprio conhecimento, já que estes foram justamente inventados. Objetos tais como “a poesia” e “a religião” segundo Nietzsche. Há o caráter irremediavelmente “baixo” da invenção já que, como pontua Foucault, tão somente por obscuras e mesquinhas relações de poder o conhecimento de se constrói.
Foucault abandona definitivamente a solenidade que paira a produção conhecimento. Os objetos não são mais entendidos como dados a serem conhecidos partindo de suas nobres origens. O conhecimento, desta forma, não é meramente instintivo ou natural, ele é produto do confronto de diversos instintos: a fagulha produzida entre o choque de duas espadas, mas não o próprio material (ferro) presente nelas. A relação entre o conhecimento e as coisas conhecidas é resultado das relações poder e violência. Nesta perspectiva, não há nada de necessidade ou relação de semelhança entre o conhecimento e o mundo: como afirma Foucault ao citar Nietzsche, não é natural a natureza ser conhecida, o conhecimento é tido como uma forma de violência à própria natureza, visto que não há leis da natureza. São os sujeitos de conhecimento que impõem a ordem a um mundo completamente caótico.
O conhecimento é resultado, portanto, de algo já estranho a ele mesmo: enquanto produto pontual, parcial, perspectivo e histórico; fruto de relações de poder e violência. Há no conhecimento algo que já não é da ordem do que se entende enquanto “conhecimento em si”. Estes questionamentos propostos por Foucault fazem interrogar certos pressupostos que erigem a ciência como produtora de conhecimentos e verdades objetivas e universais em si mesmas, que estariam isentas ou acima destas questões políticas no que se refere ao imbricamento do saber com o poder.
Em A ordem do discurso, o autor irá justamente questionar as peripécias da vontade da verdade: a vontade da verdade se mascara em seu próprio funcionamento, no seu “desenrolar necessário” na relação complexa da verdade com a sua vontade. Onde há vontade de verdade há desejo e poder e diríamos também violência, a partir da leitura da Conferência 1 em A Verdade e as Formas Jurídicas.
O discurso do verdadeiro, desta forma, cria a aparência de libertar o sujeito do poder, do desejo e da violência. Mas neste processo, o próprio discurso do verdadeiro não consegue reconhecer a sua vontade constitutiva (o poder, o desejo, a violência) que o atravessa. O discurso do verdadeiro tenta apagar o seu próprio componente discursivo, numa espécie de denegação de si, tenta a todo custo ocupar, como bem define Foucault, o menor espaço possível entre o pensamento e a palavra; tornar-se transparente, num desdobramento espontâneo entre as formas da língua e os efeitos de sentido.
Para enunciar dentro do discurso verdadeiro não basta tão somente enunciar verdades, é preciso sobretudo obedecer a uma “polícia discursiva”. Como exemplificou Foucault, um enunciado só ganha o estatuto de verdadeiro em uma disciplina se preencher um todo complexo jogo de regras, definições, instrumentos e se ater a um plano determinado de objetos passíveis de serem conhecidos. A construção de uma verdade científica também exige fundamentalmente o erro em sua função positiva.
O que nos atenta Foucault é para duvidar destas peripécias da verdade, ao apontar que a sua própria vontade se dá a partir de relações de poder: ela tem uma história.
Referências
[1] FOUCAULT. Michel. A ordem do discurso. Trad. Graciano Barbachan (data da digitalização: 2004). Coletivo Sabotagem. 1970.
[2] ____. Conferência 1 In: A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro. NAU Editora, 2003.
[3] FOUCAULT. Michel. A ordem do discurso.
Republicou isso em Elias Lima.
Se não há Verdade, há verdades, do que resulta caos, fragmentação, estilhaços sociais.
Perfeito!
Entre a verdade e a verdade, existem interesses humanos que confrontam a verdade.
Excelente texto.