Pela quarta vez, Daniel Alves modificou sua versão sobre o caso de estupro que ainda está em julgamento e que o próprio figura como personagem central.
Primeiro, afirmou não conhecer a vítima; depois, afirmou que a conhecia, mas que não houve penetração; agora, admite a penetração e ainda justifica todo malabarismo com seus depoimentos por medo da reação de sua então esposa.
Daniel Alves foi mais um atleta que apoiou Jair Bolsonaro em sua tentativa de reeleição. Segundo o atleta, não era hora de dar mais uma chance ao PT, que governou o país por “16 anos” e o deixou numa bagunça. O Jogador ainda termina o post em seu instagram em que declara apoio a Bolsonaro com o slongan do presidente: “Brasil acima de tudo e Deus sempre acima de Todos”.
Minha impressão é de que o Bolsonaro é principalmente o presidente dos contraventores. É o presidente daqueles que cometem pequenas infrações, pequenos delitos não necessariamente denunciáveis ou não necessariamente investigáveis. É o presidente do malandro, é o presidente do estelionatário, é o presidente do agiota. A figura de Bolsonaro sempre me pareceu a figura daquele que garante a existência da contravenção ou do pequeno delito, que compreende que é necessário quebrar uns ovos para se fazer um omelete, que é necessário sair da linha de vez em quando.
Apesar da situação de Daniel Alves ser qualificada como crime e ser imensamente mais grave que qualquer pequena malandragem, a dinâmica de seus depoimentos me indicam uma dinâmica própria bolsonarista, um tipo específico de cinismo localizado na pureza da família. Pelo bem de sua família, de sua esposa, de sua relação, Daniel Alves mentiu sobre ter penetrado a vítima, ainda colocou seus advogados para argumentar que a presença de lubrificação natural na vagina da vítima é uma prova de que a relação não teria sido forçada. Esta discussão estúpida foi levantada justamente pela defesa do jogador.
Aqui, eu gostaria de lembrar de Jair Bolsonaro em sua reunião do dia 22 de abril de 2020, em que o então presidente, com medo das ações da Polícia Federal em investigações que envolviam seus familiares, diz: “Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa. Vai trocar!”.
Eu gostaria de argumentar que a família enquanto justificativa – e aqui eu falo a partir de um ponto de vista temático: a família enquanto tema – é uma retórica vazia, mas potente quando está ligada a um entendimento das relações políticas enquanto relações limitadamente interpessoais. A pessoalidade da política bolsonarista transforma a relação, o acontecimento, em uma relação entre eu e você, entre fulano e beltrano. A relação em si é deixada de lado, a prática executada não é percebida. Estamos perfeitamente num espaço de nós contra eles, mas não devemos ser apressados em concluir esta obviedade política: acredito que esta separação é inserida aqui como uma separação concreta entre um pequeno grupo.
A família, protegida por Daniel Alves, mas também protegida por Jair Bolsonaro, não é a família enquanto instituição, mas é a família a que pertencem. Cabe aos apoiadores (ou fãs) torcer e desejar o melhor possível, liberando espaço para que a vítima que faz parte do “nós” tenha sua chance de denunciar aquele que pertence ao “eles”. Trata-se de uma dinâmica de briga de bairro em cidade pequena. Quase uma micropolítica das pequenas causas, da honra familiar, da manutenção de si representada como manutenção das instituições.
É importante entender o papel do silêncio: o silêncio produz espaço. Produz um espaço que permite a tentativa de golpe que o Brasil sofreu logo após o início de 2023. No caso de Daniel Alves, não houve chance para o silêncio, pois a opinião pública brasileira não interfere na justiça espanhola, pois logo que se apresentou para prestar depoimento foi preso. Para Bolsonaro, o silêncio produz espaço para que ele próprio se movimente e sonhe com a possibilidade de se eleger em 2024 – ou até para que promova outro golpe de Estado.
O espaço que é produzido pelo silêncio da mídia tradicional perante o bolsonarismo em seus quatro anos de governo foi essencial para a criação de grupos militantes de extrema-direita, para a manutenção destes grupos e para sua proliferação e concentração em Brasília, em defesa ao ex-presidente e ataque ao novo presidente em vias de eleição. O espaço do silêncio também permite que nasça uma figura carismática de crença popular: a verdade sai da boca de Bolsonaro, não exatamente dos meios de comunicação que, profissionalmente, produzem notícias a respeito dos acontecimentos políticos. A voz de Bolsonaro é música enquanto a caneta dos jornalistas é barulho.
Na Espanha, o silêncio foi evitado porque, simplesmente, não existe qualquer atmosfera cultura propícia ao apoio a Daniel Alves. O jogador é simplesmente um jogador. Aqui, Bolsonaro não é simplesmente um ex-presidente. Ele é uma figura centralizadora de uma ideologia de extrema-direita que justamente é chamada didaticamente de bolsonarismo.
Uma figura carismática não se protege através da razão e da mecânica burocrática da prestação pública de contas, ela se protege através da retórica e dos valores. A verdade não emana da figura carismática bolsonarista por conta de sua sapiência, mas por conta da honra que lhe identifica com seus militantes e que é ameaçada pela mídia, pela justiça, pelos políticos, etc. Tudo se passa como se um homem que protege a honra de sua família com certeza tivesse uma ótima verdade para se apegar. No fundo, a verdade não está nas palavras, mas na performance em que as palavras estão inseridas ocasionalmente.
A verdade carismática bolsonarista é colada à honra a ser protegida, não às palavras que são ditas para descrever supostos fatos. A palavra funciona como meio de garantir a retórica, não o conteúdo: o conteúdo é o valor, é a honra. O silêncio evitado pela justiça espanhola foi justamente o silêncio relativo aos valores: não há valores em jogo, há somente um crime, um criminoso e uma vítima.
No Brasil, há silêncios que precisam ser evitados e que, institucionalmente, já há tentativas de evitá-los através de ações para enquadrar o ex-presidente em seus possíveis crimes cometidos enquanto exercia sua função presidencial. Ainda faltam os silêncios midiáticos e, acima de tudo, o silêncio político, o silêncio que permite a existência de grupos bolsonaristas sem qualquer tipo de repressão informal.
Já sou velho, mas olho para o mundo a partir de seu ineditismo, nunca sob o ranço interminável dos anciãos.