Da série “Sociologia do Conhecimento“.
Após o lançamento de As duas culturas, ensaio de 1959, escrito pelo físico e escritor C. P. Snow, houve um grande debate na Grã-Bretanha sobre a excessiva especialização disciplinar nos centros acadêmicos. No texto, o autor criticou o distanciamento dos cientistas com relação aos pensadores ligados à literatura e às humanidade. Alguns anos depois, instituiu-se nas ilhas britânicas uma política de expansão das universidades motivada, entre outras coisas, pela discussão sobre a interdisciplinaridade.
Em 1966 foi formado o Sciences Studies Unit, departamento dentro da Universidade de Edimburgo, Escócia, voltado para realizar estudos interdisciplinares sobre a atividade científica; para desenvolver um programa de ensino e pesquisa sobre os aspectos sociais da ciência. Poucos anos depois, começou a se constituir nesse centro acadêmico um grupo de estudiosos provenientes de amplo espectro das Ciências Sociais e que partilhavam, acima de tudo, de um interesse pelos problemas de conteúdo filosófico e epistemológico do conhecimento científico. Entre os principais expoentes, direta ou indiretamente associados, estavam Steve Shapin (historiador), Barry Barnes (sociólogo com formação em ciências naturais) e David Bloor (psicólogo e filósofo).
Num primeiro momento, o centro de estudos não tinha uma abordagem delimitada ou uma diretriz clara sobre o que investigar e de que forma. Não havia metas comuns para os membros, o trabalho tinha natureza experimental. Aos poucos, influenciadas por nomes como Mary Hesse, Imre Lakatos e Thomas Kuhn, as linhas de pesquisa foram se estruturando. Um novo jeito de pensar a ciência estava sendo gestado nas experiências do grupo: o Programa Forte em Sociologia do Conhecimento.
Também chamada de Escola de Edimburgo, a equipe interdisciplinar procurava um contraponto à grande referencia de pesquisa e de produção teórica sobre o conhecimento científico: a sociologia da ciência do sociólogo estadunidense Robert Merton. Os estudiosos que seguiam essa linha teórica se debruçavam sobre a ciência enquanto instituição, como parte de um corpo de valores e normas organizadas. O conteúdo das teorias não era investigado.
Para os teóricos de Edimburgo, a sociologia podia ir além das pesquisas meramente institucionais, avançando na explicação sobre a produção do próprio conhecimento, atingindo o cerne da atividade científica. Para isso, o grupo constituiu um conjunto de ideias e de pressupostos metodológicos que redefiniu o papel do contexto social na explicação do problema do conhecimento. A proposição radical que estes autores fizeram é a de que o sociólogo deve investigar o conhecimento científico do mesmo modo que formula e desenvolve hipóteses para explicar as origens sociais das ideologias políticas ou as raízes das crenças religiosas. Portanto, mesmo as hard sciences, como a física e a matemática, poderiam ser estudadas a partir de seu núcleo de produção.
O conhecimento científico, então, deixa de ser concebido como resultado de um processo cognitivo próprio, isento de influências sociais, para ser visto como uma prática social. Por conta dessa abordagem, o conjunto teórico ficou conhecido como Programa Forte. A noção de forte surgiu exatamente porque a perspectiva metodológica visava superar a inibição típica dos sociólogos frente às hard sciences. Até então, as investigações sociológicas centravam-se na organização institucional dos cientistas e na história das inovações científicas. Avaliar ou refletir sobre o conteúdo científico era tarefa da filosofia da ciência. Havia essa divisão de trabalho.
Seria de esperar que a tendência natural de uma disciplina como a sociologia do conhecimento fosse a de expandir-se e generalizar-se: passar de estudos sobre as cosmologias primitivas aos da nossa própria cultura. Esse é, precisamente, o passo que os sociólogos têm se mostrado relutantes em dar. Ademais, a sociologia do conhecimento poderia ter insistido mais em fixar-se na área ocupada hoje por filósofos, aos quais se admite tomarem para si a tarefa de definir a natureza do conhecimento. Os sociólogos foram, na verdade muito ávidos em limitar suas preocupações com a ciência ao quadro institucional e aos fatores externos relacionados ao ritmo ou à direção de seu crescimento. Isso deixa intocada a natureza de um conhecimento assim criado.[1]
Os estudos desses pesquisadores de Edimburgo procuraram mostrar a relação existente entre o conhecimento científico e a ordem social, sendo a teoria científica o reflexo das estruturas social, econômica e política. David Bloor, em seu livro de 1976, Conhecimento e imaginário social, propôs os seguintes princípios para a abordagem da sociologia do conhecimento:
- Ela deverá ser causal, ou seja, interessada nas condições que ocasionam as crenças ou os estados de conhecimento. Naturalmente, haverá outros tipos de causas além das sociais que contribuirão para a produção da crença.
- Ela deverá ser imparcial com respeito à verdade e à falsidade, racionalidade e irracionalidade, sucesso ou fracasso. Ambos os lados dessas dicotomias irão requerer explicação.
- Ela deverá ser simétrica em seu estilo de explicação. Os mesmos tipos de causa deverão explicar, digamos, crenças verdadeiras e falsas.
- Ela deverá ser reflexiva. Seus padrões de explicação terão que ser aplicáveis, a princípio, à própria sociologia. Assim como condição a condição de simetria, essa é uma resposta à necessidade da busca por explicações gerais. É uma óbvia condição de princípio, pois, de outro modo, a Sociologia seria uma constante refutação de suas próprias teorias[2].
Para Bloor, esses quatro princípios (causalidade, imparcialidade, simetria e reflexividade) definem o Programa Forte na sociologia do conhecimento e são um amálgama de traços teóricos encontrados em Durkheim, Mannheim e Znaniecki.
A primeira afirmação diz respeito ao conhecimento dos contextos e das condições, das causas sociais, que permitem o surgimento das crenças científicas ou os estados de conhecimento. “Esse princípio se opõe frontalmente a explicações que acionem a racionalidade – seja ela baseada em métodos ou princípios lógicos – como fator explicativo para as teorias científicas bem-sucedidas, na medida em que pressupõe que são causas sociais e não princípios de racionalidade que determinam a credibilidade das teorias”[3].
A assertiva de Bloor destaca também que o princípio da causalidade considera fatores distintos aos que normalmente estão associados à filosofia da ciência para explicar os processos de geração e validação do conhecimento científico. Portanto, o social constitui toda a forma de conhecimento, incluindo o científico, devendo ser considerado como crença convencionada.
Sobre a imparcialidade, a sociologia do conhecimento não tem como objetivo estabelecer a verdade ou a falsidade do conhecimento, mas explicar as condições e processos de sua produção. A explicação sociológica das crenças deve ser simétrica. O estilo da explicação do sociólogo deve ser o mesmo tanto para o conhecimento julgado válido, quanto para o conhecimento julgado inválido. As teorias bem-sucedidas, assim como aquelas que falharam, são passíveis de serem explicadas por causas sociais.
Por fim, a reflexividade destaca que os modelos devem ser aplicados à sociologia. De acordo com os princípios epistemológicos que presidem sua análise, suas conclusões também devem ser submetidas ao mesmo escrutínio de suas ferramentas conceituais. Uma disciplina que propõe a explicação do conhecimento por meio de suas variáveis sociais deve entender que essas variáveis influenciam a própria produção sociológica.
O que está em jogo, então, nesses princípios programáticos? Eles sintetizam, fundamentalmente, uma preocupação em formular uma sociologia da ciência unicamente descritiva, isto é, que se negue a formular qualquer prescrição sobre como deve ser realizada a atividade científica. Nesse sentido, Bloor e seus companheiros de Edimburgo se opõem às filosofias da ciência normativas na medida em que estas tentam legislar sobre a atividade científica, ao invés de assumirem uma postura de neutralidade e tentarem descrevê-la em sua dinâmica sócio-histórica. Dito de outro modo, enquanto que muitos filósofos da ciência procuraram formular regras e princípios universais para a prática científica, ou seja, princípios extra-sociais, Bloor acredita que não existam esses princípios. As teorias científicas não são retidas por serem explicações da realidade mais fidedignas que as anteriores, mas devido a causas sociais que lhes conferem credibilidade. Assim, para compreender a dinâmica científica, deve-se tentar entender que causas são estas[4].
Referências
[1] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: UNESP, 2009. p.16.
[2] BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: UNESP, 2009. p.21.
[3] DUARTE, Tiago Ribeiro. O Programa Forte e a Busca de uma Explicação Sociológica das Teorias Científicas: Constituição, Propostas e Impasses. (Dissertação de mestrado). Belo Horizonte: UFMG, 2007. p.44.
[4] DUARTE, Tiago Ribeiro. O Programa Forte e a Busca de uma Explicação Sociológica das Teorias Científicas: Constituição, Propostas e Impasses. (Dissertação de mestrado). Belo Horizonte: UFMG, 2007. p.48.
Cientista social que especula sobre a natureza social das ideias, sobre a não-identidade entre sujeito e objeto na produção do conhecimento e sobre o sentido de se dizer que a vida tem sentido.
Uma coisa que me passou na cabeça a ao ler isto
VERDADE – AQUILO QUE SATISFAZ DETERMINADO MÉTODO SE O MÉTODO MUDA A VERDADE MUDA
Bem interessante o texto