Demócrito de Abdera: biografia, teoria e modelo atômico

Índice

Introdução

Demócrito de Abdera
Demócrito de Abdera.

Demócrito de Abdera, conhecido na antiguidade como o ‘filósofo risonho’ por sua ênfase no valor da ‘alegria’, foi um dos dois fundadores da teoria atomista antiga. Ele elaborou um sistema originado por seu professor Leucipo em uma explicação materialista do mundo natural. Os atomistas sustentavam que existem corpos menores e indivisíveis a partir dos quais tudo o mais é composto e que esses corpos se movem em um vazio infinito.

Entre as explicações materialistas antigas do mundo natural que não dependiam de algum tipo de teleologia ou propósito para explicar a aparente ordem e regularidade encontrada no mundo, o atomismo foi a mais influente. Mesmo seu principal crítico, Aristóteles, elogiou Demócrito por argumentar a partir de considerações sólidas apropriadas à filosofia natural.

Biografia de Demócrito

De acordo com relatos antigos, Demócrito nasceu por volta de 460 a.C. (portanto, ele era um contemporâneo mais jovem de Sócrates) e foi um cidadão de Abdera, embora alguns relatos mencionem Mileto. Além de seu associado ou professor Leucipo, diz-se que Demócrito conheceu Anaxágoras e era quarenta anos mais jovem que este último (DK 68A1). Várias anedotas concernem sua vida, mas sua autenticidade é incerta.

A obra de Demócrito sobreviveu apenas em relatos de segunda mão, às vezes pouco confiáveis ou conflitantes: o raciocínio por trás das posições adotadas muitas vezes precisa ser reconstruído. Muitas das melhores evidências são as relatadas por Aristóteles, que o considerava um importante rival na filosofia natural. Aristóteles escreveu uma monografia sobre Demócrito, da qual apenas alguns trechos citados em outras fontes sobreviveram. Demócrito parece ter assumido e sistematizado as visões de Leucipo, de quem pouco se sabe. Embora seja possível distinguir algumas contribuições como sendo de Leucipo, a esmagadora maioria dos relatos se refere tanto a ambos os pensadores quanto apenas a Demócrito; o sistema atomista desenvolvido é frequentemente considerado essencialmente de Demócrito.

Curso de filosofia do professor Anderson

Diógenes Laércio lista um grande número de obras de Demócrito em muitos campos, incluindo ética, física, matemática, música e cosmologia. Duas obras, o Grande Sistema do Mundo e o Pequeno Sistema do Mundo (ver a entrada em), são às vezes atribuídas a Demócrito, embora Teofrasto relate que a primeira é de Leucipo (DK 68A33).

Há mais incerteza quanto à autenticidade dos relatos dos ditos éticos de Demócrito. Duas coleções de ditos estão registradas na antologia do século V de Stobeu, uma atribuída a Demócrito e outra a um filósofo desconhecido chamado ‘Democrates’. DK aceita ambas como referentes a Demócrito, mas a autenticidade dos ditos em ambas as coleções é uma questão de discussão acadêmica, assim como a relação entre o atomismo de Demócrito e sua ética.

Pintura de demócrito

O átomo para Demócrito

As fontes antigas descrevem o atomismo como uma das várias tentativas dos primeiros filósofos naturais gregos de responder ao desafio oferecido por Parmênides. Apesar de desafios ocasionais (Osborne 2004), essa é a interpretação geralmente aceita por estudiosos hoje. Embora a interpretação exata de Parmênides seja disputada, considerava-se que ele argumentava que a mudança é meramente ilusória devido a algumas absurdidades inerentes à ideia de ‘o que não é’.

Em resposta, Leucipo e Demócrito, juntamente com outros pluralistas pré-socráticos como Empédocles e Anaxágoras, desenvolveram sistemas que esclareciam como a mudança não requer que algo surja do nada. Essas respostas a Parmênides supõem que existem múltiplos princípios materiais imutáveis, que persistem e apenas se rearranjam para formar o mundo mutável das aparências. Na versão atomista, esses princípios materiais imutáveis são partículas indivisíveis, os átomos. A ideia de que há um limite inferior para a divisibilidade é às vezes considerada uma resposta aos paradoxos de Zenão sobre a impossibilidade de atravessar magnitudes infinitamente divisíveis (Hasper 2006). Reconstruções oferecidas por Wardy (1988) e Sedley (2008) argumentam, em vez disso, que o atomismo foi desenvolvido como uma resposta aos argumentos parmenidianos.

Os atomistas sustentavam que existem dois tipos de realidades fundamentalmente diferentes que compõem o mundo natural, átomos e vazio. Átomos, do adjetivo grego atomos ou atomon, ‘indivisível’, são infinitos em número e variados em tamanho e forma, e perfeitamente sólidos, sem lacunas internas. Eles se movem em um vazio infinito, repelindo-se quando colidem ou se combinando em aglomerados por meio de pequenos ganchos e farpas em suas superfícies, que se entrelaçam. Além de mudar de lugar, eles são imutáveis, não gerados e indestrutíveis.

Todas as mudanças nos objetos visíveis do mundo das aparências são causadas por relocações desses átomos: em termos aristotélicos, os atomistas reduzem toda mudança à mudança de lugar. Objetos macroscópicos no mundo que experimentamos são realmente aglomerados desses átomos; mudanças nos objetos que vemos—mudanças qualitativas ou crescimento, por exemplo—são causadas por rearranjos ou adições aos átomos que os compõem. Enquanto os átomos são eternos, os objetos compostos por eles não são. Aglomerados de átomos movendo-se no vazio infinito formam kosmoi ou mundos como resultado de um movimento circular que reúne os átomos em um turbilhão, criando aglomerados dentro dele (DK 68B167); esses kosmoi são impermanentes. Nosso mundo e as espécies dentro dele surgiram da colisão de átomos se movendo em tal turbilhão, e da mesma forma se desintegrarão com o tempo.

Ao supor que o vazio existe, os atomistas deliberadamente abraçaram uma aparente contradição, afirmando que ‘o que não é’ existe. Aparentemente abordando um argumento de Melisso, um seguidor de Parmênides, os atomistas emparelharam o termo para ‘nada’ com o que ele nega, ‘coisa’, e afirmaram que—em uma frase típica dos atomistas—um ‘não mais’ existe que o outro (DK 67A6). Schofield (2002) argumenta que essa frase particular se originou com Demócrito e não com seu professor Leucipo. Ao colocar o cheio (ou sólido) e o vazio ontologicamente em pé de igualdade, os atomistas aparentemente negavam a impossibilidade do vazio.

Consideravam o vazio uma condição necessária para o movimento local: se não houvesse lugares desocupados, para onde os corpos poderiam se mover? Melisso argumentava da impossibilidade do vazio para a impossibilidade do movimento; os atomistas aparentemente raciocinavam ao contrário, argumentando a partir do fato de que o movimento existe para a necessidade de existir espaço vazio (DK 67A7). Sugeriu-se que a concepção de vazio de Demócrito é a das regiões (temporariamente) não preenchidas entre os átomos, em vez de um conceito de espaço absoluto (Sedley 1982). O vazio não impede o movimento dos átomos porque sua qualidade essencial é a de ‘ceder’, em contraste com a resistência mútua dos átomos. Relatos atomistas posteriores atestam que essa ‘cedência’ explica a tendência dos corpos a se deslocarem para espaços mais vazios, sendo expelidos por colisão de regiões mais densamente ocupadas (Lucrécio DRN 6.906–1089).

Imagem de Demócrito em uma biblioteca

Alguma controvérsia envolve as propriedades dos átomos. Eles variam em tamanho: um relatório—que alguns estudiosos questionam—sugere que os átomos poderiam, em princípio, ser tão grandes quanto um cosmos, embora, pelo menos neste cosmos, todos pareçam ser pequenos demais para perceber (DK 68A47).

Eles podem assumir uma infinita variedade de formas: há relatos de um argumento de que não há ‘mais’ razão para os átomos terem uma forma do que outra. Muitos tipos de átomos podem se entrelaçar devido às suas formas irregulares e ganchos em sua superfície, explicando a coesão de alguns compostos. Não está claro se os primeiros atomistas consideravam os átomos como conceitualmente indivisíveis ou apenas fisicamente indivisíveis (Furley 1967). A ideia de que há uma magnitude mínima possível parece sugerir que esse é o limite inferior de tamanho para os átomos, embora noções como estar em contato ou ter forma pareçam implicar que mesmo os menores átomos têm partes de alguma forma, se apenas matematicamente ou conceitualmente.

Existem relatos conflitantes sobre se os átomos se movem em uma direção particular como resultado de seu peso: vários estudiosos tentaram reconciliar isso supondo que o peso não é intrínseco aos átomos, mas é resultado das tendências centrípetas estabelecidas no turbilhão cósmico (cf. O’Brien 1981; Furley 1989, pp. 91–102). Os átomos podem ter uma tendência inerente a um tipo de movimento vibratório, embora a evidência para isso seja incerta (McDiarmid 1958).

No entanto, seu movimento primário parece resultar da colisão com outros átomos, onde sua resistência mútua ou antitupia os faz se afastarem um do outro quando atingidos. Demócrito é criticado por Aristóteles por supor que a sequência de átomos colidindo não tem início, e assim por não oferecer uma explicação da existência do movimento atômico per se, embora a colisão anterior com outro átomo possa explicar a direção de cada movimento atômico individual (ver O’Keefe 1996). Embora os antigos atomistas sejam frequentemente comparados às teorias ‘mecanicistas’ modernas, Balme advertiu sobre o perigo de supor que os atomistas compartilham ideias modernas sobre a natureza do movimento atômico, particularmente a ideia de que o movimento é inercial (Balme 1941).

De acordo com diferentes relatos, Demócrito atribuía as causas das coisas tanto à necessidade quanto ao acaso. Provavelmente, o último termo deve ser entendido como ‘ausência de propósito’ em vez de uma negação da necessidade (Barnes 1982, pp. 423–6). Demócrito aparentemente reconheceu a necessidade de explicar o fato de que o movimento desordenado de átomos distintos individuais poderia produzir um cosmos ordenado, onde os átomos não estão apenas espalhados aleatoriamente, mas se agrupam para formar massas de tipos distintos.

Relata-se que ele se baseava na tendência de ‘semelhante para semelhante’ que existe na natureza: assim como animais de um mesmo tipo se agrupam, os átomos de tipos semelhantes se agrupam por tamanho e forma. Ele compara isso à peneiração de grãos em uma peneira ou à separação de seixos movidos pela maré: é como se houvesse uma espécie de atração de semelhante para semelhante (DK 68B164). Embora essa afirmação tenha sido interpretada de maneira diferente (por exemplo, Taylor 1999b p. 188), parece ser uma tentativa de mostrar como um arranjo aparentemente ordenado pode surgir automaticamente, como um subproduto das colisões aleatórias de corpos em movimento (Furley 1989, p. 79). Não é necessário introduzir forças atrativas ou propósitos para explicar a separação pela maré ou na peneira: é provável que essa seja uma tentativa de mostrar como efeitos aparentemente ordenados podem ser produzidos sem forças ou propósitos direcionados a um objetivo.

Demócrito considera as propriedades dos átomos em combinação suficientes para explicar a multiplicidade de diferenças entre os objetos no mundo que nos aparece. Aristóteles cita uma analogia com as letras do alfabeto, que podem produzir uma infinidade de palavras diferentes a partir de poucos elementos em combinações; as diferenças derivam todas da forma (schêma) das letras, como A difere de N; de seu arranjo (taxis), como AN difere de NA; e de sua orientação posicional (thesis), como N difere de Z (DK 67A6). Esses termos são a interpretação de Aristóteles da própria terminologia de Demócrito, que tem um sentido mais dinâmico (Mourelatos 2004). Essa passagem omite diferenças de tamanho, talvez porque está focada na analogia com letras do alfabeto: é bastante claro a partir de outros textos que Demócrito pensa que os átomos também diferem em tamanho.

Ele nega categoricamente que as qualidades perceptíveis além da forma e do tamanho (e, talvez, do peso) realmente existam nos próprios átomos: uma citação direta que sobreviveu de Demócrito afirma que ‘por convenção doce e por convenção amargo, por convenção quente, por convenção frio, por convenção cor; mas na realidade átomos e vazio’ (DK 68B9, trans. Taylor 1999a).

Existem diferentes interpretações dessa distinção. Furley argumenta que a tradução ‘convenção’ não deve ser entendida como sugerindo que há algo arbitrário na percepção de certas cores, por exemplo: a mesma configuração de átomos pode ser regularmente associada a uma determinada cor (Furley 1993; cf. Barnes 1982, pp. 370–7). O que Demócrito rejeita com o rótulo ‘meramente convencional’ é, talvez, a imputação das qualidades em questão aos átomos, ou talvez até aos corpos macroscópicos. Mourelatos (2005) faz o contraste entre propriedades intrínsecas e relacionais.

Enquanto vários relatos da visão de Demócrito, aparentemente citações diretas, mencionam exclusivamente qualidades sensíveis como irreais, um relato de Plutarco inclui na lista de coisas que existem apenas por convenção a noção de ‘combinação’ ou sunkrisis. Se esse relato for genuinamente democriteano, ampliaria consideravelmente o escopo da afirmação: a ideia de que qualquer combinação—por meio da qual ele presumivelmente se refere a qualquer aglomerado de átomos—é ‘irreal’ ou meramente ‘convencional’ sugere que Demócrito está traçando uma distinção mais radical do que aquela entre qualidades sensíveis e não sensíveis.

Demócrito de Abdera e o atomismo

A implicação seria que qualquer coisa percebida, porque é uma percepção de combinações de átomos e não dos próprios átomos, seria suspeita, não apenas as qualia experimentadas por meio de órgãos sensoriais individuais. Um relato, de fato, atribui a Demócrito uma negação de que duas coisas poderiam se tornar uma, ou vice-versa (DK 68A42), sugerindo assim que as combinações são consideradas convencionais.

Os comentaristas divergem quanto à autenticidade do relato de Plutarco. Como a palavra sunkrisis não ocorre em outros relatos, Furley (seguindo Sandbach) sugere que é mais provável que seja um erro por pikron, ‘amargo’, que ocorre em outro relato.

No entanto, Furley concede que Plutarco pelo menos entende que os primeiros atomistas estavam comprometidos com a visão de que todas as combinações de átomos, assim como as qualidades sensíveis, devem ser entendidas como convencionais em vez de reais (Furley 1993 pp. 76–7n7). Isso sugeriria que tudo no nível macroscópico—ou, estritamente, tudo disponível à percepção—é considerado irreal. O status ontológico do arranjo ou combinação de átomos para Demócrito é uma questão complexa, que afeta nossa compreensão de sua metafísica, sua relação histórica com Melisso e a semelhança de suas visões com a distinção moderna entre qualidades primárias e secundárias (Wardy 1988; Curd 1998; Lee 2005; Mourelatos 2005; Pasnau 2007). Se tomarmos a tese da ‘convencionalidade’ como restrita às qualidades sensíveis, ainda há uma questão em aberto sobre a razão de Demócrito para negar sua ‘realidade’ (Wardy 1988; O’Keefe 1997; Ganson 1999).

Teoria da percepção em Demócrito

A teoria da percepção de Demócrito depende da afirmação de que eidôla ou imagens, camadas finas de átomos, são constantemente descartadas das superfícies dos corpos macroscópicos e transportadas pelo ar. Atomistas posteriores citam como evidência para isso a erosão gradual dos corpos ao longo do tempo. Esses filmes de átomos encolhem e expandem; apenas aqueles que encolhem suficientemente podem entrar no olho.

É o impacto destes em nossos órgãos sensoriais que nos permite perceber. Propriedades visíveis dos objetos macroscópicos, como seu tamanho e forma, são transmitidas para nós por esses filmes, que tendem a ser distorcidos à medida que passam por maiores distâncias no ar, pois estão sujeitos a mais colisões com átomos de ar. Um relato diferente ou complementar afirma que o objeto visto impressiona o ar pelos eidôla, e o ar compactado assim transmite a imagem ao olho (DK 68A135; Baldes 1975). As propriedades percebidas por outros sentidos também são transmitidas por algum tipo de contato. A teoria de Demócrito sobre o gosto, por exemplo, mostra como diferentes sensações gustativas são regularmente produzidas pelo contato com diferentes formas de átomos.

Teofrasto, que nos fornece o relato mais completo da teoria de Demócrito, critica-a por levantar a expectativa de que os mesmos tipos de átomos sempre causariam aparências semelhantes. No entanto, pode ser que a maioria das explicações seja direcionada ao caso normal de um observador típico, e que uma explicação diferente seja dada para as percepções de um observador atípico, como alguém que está doente.

A explicação de Demócrito sobre por que o mel às vezes tem gosto amargo para pessoas doentes depende de dois fatores, nenhum dos quais subestima a noção de que certas formas atômicas regularmente nos afetam de uma determinada maneira. Um é que uma substância como o mel não é totalmente homogênea, mas contém átomos de diferentes formas. Embora ele assuma seu caráter normal a partir do tipo predominante de átomo presente, há outros tipos de átomos presentes. O outro é que nossos órgãos sensoriais precisam estar adequadamente harmonizados para admitir um determinado tipo de átomo, e a disposição de nossas passagens pode ser afetada por doença ou outras condições. Assim, alguém que está doente pode se tornar incomumente receptivo a um tipo de átomo que é apenas uma pequena parte da constituição geral do mel.

Estátua de Demócrito de Abdera criada por intelgiência artificial

Outros efeitos observados, no entanto, requerem uma teoria em que os mesmos átomos podem produzir efeitos diferentes sem supor que o observador tenha mudado. A mudança deve então ocorrer no objeto visto. A explicação da cor parece ser dessa variedade: Aristóteles relata que as coisas adquirem sua cor por ‘virar’, tropê (GC 1.2, 315b34). Este é o termo democriteano que Aristóteles havia traduzido como ‘posição’, thesis, ou seja, uma das três maneiras fundamentais pelas quais os átomos podem alterar e, assim, parecer diferentes para nós.

Aristóteles dá isso como a razão pela qual a cor não é atribuída aos próprios átomos. O relato de Lucrécio sobre por que a cor não pode pertencer aos átomos pode ajudar a esclarecer o ponto aqui. Somos informados de que, se os átomos do mar fossem realmente azuis, eles não poderiam sofrer alguma mudança e parecer brancos (DRN 2.774–5), como quando observamos a superfície do mar mudando de azul para branco. Isso parece assumir que, enquanto uma aparência de uma propriedade P pode ser produzida por algo que não é nem P nem não-P, no entanto, algo P não pode parecer não-P. Como os átomos não mudam suas propriedades intrínsecas, parece que a mudança em uma propriedade relacional, como a posição relativa dos átomos, é mais provável de ser a causa de diferentes percepções. Na superfície ondulante do mar ou no voo do pombo com seu pescoço iridescente, é evidente que as partes do objeto estão se movendo e mudando em suas relações posicionais.

Ao atribuir as causas das qualidades sensíveis às propriedades relacionais dos átomos, Demócrito sacrifica a plausibilidade prima facie de afirmar que as coisas parecem P porque são P. Grande parte do relatório de Teofrasto parece se concentrar na necessidade de tornar plausível que um composto pode produzir uma aparência de propriedades que não possui intrinsecamente. Demócrito vai contra pelo menos um fio do senso comum quando afirma que texturas produzem a aparência de quente ou frio, impactos causam sensações de cor.

As listas de exemplos oferecidas, baseadas em associações de senso comum ou experiência anedótica, são tentativas de tornar essas afirmações persuasivas. O calor é dito ser causado por átomos esféricos, porque esses se movem livremente: a associação de senso comum de movimento rápido com aquecimento pode ser empregada aqui. Betegh (2020) sugere que espaços vazios maiores estão diretamente associados ao aquecimento, em vez de que a rarefação cause indiretamente o calor, permitindo um movimento atômico mais livre e frequente.

Aristóteles às vezes critica Demócrito por afirmar que sensações visuais, auditivas, olfativas e gustativas são todas causadas pelo toque (DK 68A119). Como isso afeta a explicação da percepção não está claro, pois as fontes nos dizem pouco sobre como o toque é pensado para funcionar. No entanto, Demócrito não parece distinguir entre toque e contato, e pode considerar como não problemático que os corpos comuniquem seu tamanho, forma e textura superficial por impacto físico.

A alma e a natureza das coisas vivas

Em comum com outras teorias antigas sobre seres vivos, Demócrito parece ter usado o termo psychê para se referir àquela característica distintiva dos seres vivos que explica sua capacidade de realizar suas funções vitais. Segundo Aristóteles, Demócrito considerava a alma composta de um tipo específico de átomo, em particular, átomos de fogo. Isso parece ter sido devido à associação da vida com o calor e porque átomos esféricos de fogo são facilmente móveis, e a alma é considerada causadora de movimento. Demócrito parece ter considerado o pensamento como causado por movimentos físicos de átomos também. Isso às vezes é interpretado como evidência de que Demócrito negava a sobrevivência de uma alma pessoal após a morte, embora os relatos não sejam unívocos sobre isso.

Uma dificuldade enfrentada pelas teorias materialistas dos seres vivos é explicar a existência e a reprodução regular de formas funcionalmente adaptadas no mundo natural. Embora os atomistas tenham considerável sucesso em tornar plausível que uma ontologia simples de átomos e vazio, com as propriedades mínimas dos primeiros, pode explicar uma ampla variedade de diferenças nos objetos no mundo perceptível, e também que vários efeitos aparentemente ordenados podem ser produzidos como um subproduto das colisões atômicas desordenadas, o tipo de organização funcional encontrada nos organismos é muito mais difícil de explicar.

Demócrito parece ter desenvolvido uma visão da reprodução segundo a qual todas as partes do corpo contribuem para a semente a partir da qual o novo animal cresce, e ambos os pais contribuem com a semente (DK 68A141; 143). A teoria parece pressupor que a presença de algum material de cada órgão na semente explica o desenvolvimento daquele órgão no novo organismo. As características parentais são herdadas quando a contribuição de um ou outro progenitor predomina no fornecimento da parte apropriada. A prole é masculina ou feminina de acordo com qual das duas sementes predomina em contribuir com material dos genitais. Em um cosmos atomista, a existência de espécies particulares não é considerada eterna. Como alguns outros relatos materialistas antigos, Demócrito sustentava que os seres humanos surgiram da terra (DK 68A139), embora os relatos forneçam poucos detalhes.

Demócrito de Abdera e a teoria atomista.

Teoria do conhecimento

Um relato atribui a Demócrito e Leucipo a visão de que tanto o pensamento quanto a sensação são causados por imagens que atingem o corpo de fora, e que tanto o pensamento quanto a percepção dependem dessas imagens (DK 67A30). Tanto o pensamento quanto a percepção são descritos como mudanças no corpo. Demócrito aparentemente reconheceu que sua visão gera um problema epistemológico: ela considera que nosso conhecimento do mundo deriva de nossa experiência sensorial, mas os sentidos não estão em contato direto com a natureza das coisas, deixando assim espaço para omissões ou erros.

Um fragmento famoso pode estar respondendo a tal linha de pensamento cética ao acusar a mente de derrubar os sentidos, embora esses sejam seu único acesso à verdade (DK 68B125). Outras passagens falam de uma lacuna entre o que podemos perceber e o que realmente existe (DK 68B6-10; 117). Mas o fato de que os átomos não são perceptíveis significa que nosso conhecimento de suas propriedades é sempre baseado em analogia com as coisas do mundo visível. Além disso, os sentidos relatam propriedades que os átomos não possuem realmente, como cores e sabores. Assim, o potencial para dúvidas sobre nosso conhecimento do mundo externo é grande.

Filósofos posteriores adaptaram uma frase democriteana ou mallon, ou “não mais”, no argumento de que algo que parece tanto P quanto não-P é “não mais” P do que não-P. Argumentos dessa forma foram usados para fins céticos, citando as evidências conflitantes dos sentidos para levantar preocupações sobre nosso conhecimento do mundo (de Lacy 1958). Demócrito não parece estar seguindo um programa cético consistentemente, embora ele expresse preocupação sobre a base de nosso conhecimento.

A ideia de que nosso conhecimento é baseado na recepção de imagens de fora é empregada na discussão de Demócrito sobre os deuses, em que fica claro que nosso conhecimento dos deuses vem de eidôla, ou filmes gigantes de átomos com as características que atribuímos aos deuses, embora Demócrito negue que eles sejam imortais. Alguns estudiosos consideram isso um ataque depreciativo à teologia tradicional como sendo baseada em meras imagens (Barnes 1982, pp. 456-61), mas outros supõem que a teoria postula que esses eidôla são realmente seres vivos (Taylor 1999a, pp. 211-6). Embora o atomismo seja frequentemente identificado como uma doutrina ateísta em tempos posteriores, não está claro se essa é realmente a visão de Demócrito.

Indivisibilidade

As razões para supor que existem magnitudes indivisíveis aparentemente derivam do relato de Zenão de Eleia sobre paradoxos que surgem se a extensão for entendida como infinitamente divisível, ou seja, composta de um número infinito de partes. Os atomistas podem ter buscado evitar esses paradoxos supondo que há um limite para a divisibilidade.

Não está claro, entretanto, em que sentido os átomos são considerados indivisíveis, e como a necessidade de magnitudes mínimas está relacionada à afirmação de que os átomos são indivisíveis. Furley sugere que os atomistas podem não ter distinguido entre a indivisibilidade física e teórica dos átomos (Furley 1967, p. 94).

A indivisibilidade física dos átomos parece ser independente do argumento para magnitudes indivisíveis, já que a solidez dos átomos—o fato de que não há vazio dentro deles—é citada como a razão pela qual eles não podem ser divididos. A existência de espaço vazio entre os átomos é citada como a razão pela qual eles podem ser separados: uma fonte tardia, Filópono, sugere até que os átomos nunca poderiam realmente tocar-se, caso contrário, se fundiriam (DK 67A7). Quer Demócrito tenha ou não visto essa consequência, parece que os átomos são considerados indivisíveis, independentemente de seu tamanho. Presumivelmente, porém, há um tamanho mínimo de átomo, e isso é considerado suficiente para evitar os paradoxos da divisibilidade infinita.

Um argumento de reductio ad absurdum relatado por Aristóteles sugere que os atomistas argumentaram a partir da suposição de que, se uma magnitude é infinitamente divisível, nada impede que ela tenha sido realmente dividida em todos os pontos. O atomista então pergunta o que restaria: se a resposta for algumas partículas estendidas, como poeira, então a divisão hipotetizada ainda não foi concluída. Se a resposta for nada ou pontos, então a questão é como uma magnitude estendida poderia ser composta do que não tem extensão (DK 68A48b, 123).

Diz-se também que Demócrito contribuiu para a matemática e levantou um problema sobre a natureza do cone. Ele argumenta que, se um cone for cortado em qualquer lugar paralelo à sua base, as duas faces assim produzidas devem ser do mesmo tamanho ou diferentes. Se forem do mesmo tamanho, no entanto, o cone pareceria ser um cilindro; mas se forem diferentes, o cone teria lados em degraus, em vez de contínuos. Embora não esteja claro no relato de Plutarco como (ou se) Demócrito resolveu o problema, parece que ele estava consciente das questões sobre a relação entre o atomismo como uma teoria física e a natureza dos objetos matemáticos.

Ética

Os relatos sobre as visões éticas de Demócrito apresentam diversos problemas interpretativos, incluindo a dificuldade de decidir quais fragmentos são genuinamente democriteanos (ver acima, seção 1). Em contraste com as evidências de suas teorias físicas, muitos dos fragmentos éticos são listas de ditos citados sem contexto, ao invés de discussões filosóficas críticas das visões atomistas.

Muitos parecem platitudes de senso comum que seriam consistentes com posições filosóficas bastante diferentes. Assim, apesar do grande número de ditos éticos, é difícil construir uma visão coerente de suas posições éticas. Annas observa o caráter socrático de vários dos ditos e acredita que há um tema consistente sobre o papel do intelecto próprio na felicidade (Annas 2002). Os ditos contêm elementos que podem ser vistos como antecipando as visões éticas mais desenvolvidas de Epicuro (Warren 2002).

Também é uma questão controversa se algum vínculo conceitual pode ser encontrado entre a física atomista e os compromissos éticos atribuídos a Demócrito. Vlastos argumentou que várias características da ética naturalista de Demócrito podem ser atribuídas ao seu relato materialista da alma e à sua rejeição de uma base sobrenatural para a ética (Vlastos 1975). Taylor é mais cético sobre a proximidade da conexão entre as visões éticas de Demócrito e sua física atomista (Taylor 1999a, pp. 232–4).

Os relatos indicam que Demócrito estava comprometido com uma espécie de hedonismo esclarecido, em que o bem era considerado um estado interno da mente, ao invés de algo externo a ela (ver Hasper 2014). O bem é dado por muitos nomes, entre eles euthymia ou alegria, bem como termos privativos, como a ausência de medo. Alguns fragmentos sugerem que a moderação e a atenção na busca dos prazeres são benéficas; outros focam na necessidade de libertar-se da dependência da fortuna moderando o desejo. Várias passagens focam na capacidade humana de agir sobre a natureza por meio do ensino e da arte, e em uma noção de equilíbrio e moderação que sugere que a ética é concebida como uma arte de cuidar da alma análoga ao cuidado do corpo pela medicina (Vlastos 1975, pp. 386–94). Outros discutem a comunidade política, sugerindo que há uma tendência natural para formar comunidades.

As opiniões éticas de Demócrito, portanto, parecem ser um conjunto de recomendações pragmáticas voltadas para alcançar um estado interno de tranquilidade e alegria, minimizando a dependência de fatores externos e enfatizando a importância do intelecto e da moderação. Embora a conexão direta entre sua física atomista e suas posições éticas possa ser debatida, há uma consistência em sua abordagem naturalista e racionalista tanto para o entendimento do mundo físico quanto para a condução da vida ética.

Influência posterior

Demócrito de Abdera, um dos fundadores do atomismo, teve uma influência significativa em vários filósofos ao longo da história, tanto na Antiguidade quanto na Era Moderna. A seguir, destaco alguns dos principais filósofos que foram influenciados por Demócrito e de que maneira essa influência se manifestou:

Epicuro (341-270 a.C.)

Influência: Epicuro adotou a teoria atomista de Demócrito, que postulava que o universo é composto por átomos indivisíveis movendo-se no vazio. No entanto, ele modificou algumas ideias de Demócrito, como a introdução do conceito de “clinâmen” (ou desvio aleatório) dos átomos para explicar o livre-arbítrio, algo que Demócrito não havia abordado em profundidade.

Contribuição: Epicuro usou o atomismo para desenvolver sua filosofia ética, argumentando que o prazer é o fim último da vida, mas que deveria ser alcançado de forma moderada e racional.

Lucrécio (99-55 a.C.)

Influência: O poeta e filósofo romano Lucrécio foi um dos grandes divulgadores do atomismo democritiano através de sua obra “De Rerum Natura” (Sobre a Natureza das Coisas). Neste poema filosófico, Lucrécio descreve as ideias de Demócrito e Epicuro sobre os átomos, o vazio, e a ausência de intervenção divina no mundo natural.

Contribuição: Ao popularizar o atomismo, Lucrécio ajudou a preservar as ideias de Demócrito e Epicuro, que teriam uma ressonância significativa na filosofia moderna.

3. Galileu Galilei (1564-1642)

Influência: Durante o Renascimento, o atomismo de Demócrito ressurgiu como uma alternativa ao aristotelismo. Galileu foi influenciado pelas ideias atomistas ao desenvolver suas próprias teorias sobre a matéria e o movimento, ainda que ele não tenha aderido completamente ao atomismo antigo.

Contribuição: Galileu ajudou a estabelecer as bases da ciência moderna, e seu interesse no atomismo foi parte de uma tendência maior entre cientistas da época que buscavam explicar o mundo de forma mecanicista, sem recorrer a causas finais ou à intervenção divina.

Pierre Gassendi (1592-1655)

Influência: Gassendi foi um dos principais responsáveis por ressuscitar o atomismo democritiano no período moderno. Ele procurou reconciliar o atomismo com o cristianismo, modificando algumas das ideias de Demócrito para torná-las mais compatíveis com a teologia cristã.

Contribuição: A filosofia de Gassendi teve uma influência significativa em filósofos como Thomas Hobbes e John Locke, e ajudou a preparar o terreno para o desenvolvimento da física moderna e da teoria atômica.

5. Thomas Hobbes (1588-1679)

Influência: Hobbes foi influenciado pelo atomismo através de Gassendi, especialmente na sua concepção materialista da natureza humana e do estado. Ele aplicou uma visão atomista e mecanicista ao comportamento humano e às estruturas sociais, propondo que os indivíduos, como átomos, movem-se de acordo com leis naturais e interagem uns com os outros de maneira previsível.

Contribuição: Hobbes desenvolveu uma teoria política que via o Estado como resultado do contrato social, uma estrutura necessária para regular a interação entre indivíduos em busca de seus próprios interesses.

Isaac Newton (1643-1727)

Influência: Embora Newton não fosse um atomista no sentido estrito, ele foi influenciado pelas ideias de atomismo que estavam em voga na sua época, especialmente na forma como ele concebeu a gravidade como uma força que atua à distância entre partículas materiais.

Contribuição: Newton refinou as ideias mecanicistas e desenvolveu as leis do movimento e da gravitação universal, que se tornaram fundamentos da física moderna.

Demócrito na Filosofia Contemporânea

Influência: Na filosofia contemporânea, Demócrito é frequentemente citado por sua contribuição ao pensamento materialista e mecanicista, que influenciou profundamente o desenvolvimento das ciências naturais. Suas ideias sobre a natureza atômica da realidade foram precursoras da teoria atômica moderna e continuam a ser estudadas em contextos históricos e filosóficos.

Contribuição: O atomismo de Demócrito é visto como um marco na história do pensamento científico, representando uma das primeiras tentativas de explicar o mundo natural em termos puramente físicos, sem apelo ao sobrenatural.

A influência de Demócrito atravessa os séculos, marcando desde a filosofia grega antiga até a ciência e a filosofia moderna, destacando a durabilidade e a importância de suas ideias.

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Texto originalmente publicado do Stanford Encyclophedia of Philosophy