Egoísmo, virtude e justiça em Schopenhauer

Em Schopenhauer, estes conceitos são indissociáveis da "vontade", pano de fundo e força motriz das ações humanas.

Arthur Schopenahuer: “Não se aprender a querer”

Arthur Schopenhauer propõe um estudo das ações humanas a partir do conceito de “vontade”, sendo que esta é passível de ser afirmada ou negada por meio do conhecimento.“O corpo”, diz o autor, “é a objetividade da vontade”. É por meio dele que esta se subleva, e é por meio dos atos que busca sua satisfação. Mas a vontade só se torna evidente através de motivos. Estes últimos, por sua vez, “prometem sempre completa satisfação, calma à sede de querer”.

Uma vez cientes do objeto de nossa vontade, nossos esforços se direcionam para os meios através dos quais pretendemos atingi-lo. No entanto

a vontade frequentemente se exalta até ao ponto de sobrepassar consideravelmente a afirmação do corpo; tal estado é então advertido por meio de emoções violentas, de paixões enérgicas, sob cujo império o indivíduo não se contenta com afirmar a própria existência, senão que também nega a dos outros e procura suprimi-la onde quer que lhe cause obstáculo. (SCHOPENHAUER, A. “O mundo como vontade e representação” – Saraiva, p. 101)

A principal expressão da vontade como fenômeno está no instinto sexual, pois o homem, como qualquer outra criatura natural, tende, antes de tudo, à conservação de si mesmo como espécie. Schopenhauer demonstra a primazia deste instinto também em Hesíodo e Parmênides, os quais diziam que Eros era o “princípio primário”. Para ele, “a vontade em si não tem razões nem consequências”. É por isso que, objetivando sua satisfação, esta pode vir a ultrapassar a si mesma, que até então se encontrava restrita no corpo de quem a detinha.

A afirmação da vontade (e, igualmente, a afirmação do indivíduo), chega ao ponto em que “cada um quer tudo para si, quer tudo possuir ou ao menos tudo dominar: quereria aniquilar tudo o que lhe opõe resistência”. Além disso, soma-se o fator de que, para cada indivíduo, “os outros não lhe são dados senão como suas representações”: o mundo exterior cessa de existir tão logo o próprio indivíduo o faz, de modo que não há diferença entre sua existência e inexistência. Desta forma, o indivíduo, ao se considerar (não sem razões, neste sentido) o “centro do universo”, passa a se preocupar com nada além da própria existência e da conservação de seu ego.

Como a vontade apresenta esta afirmação do corpo por meio de si mesmo, e como há uma inumerável multidão de seres viventes um ao lado do outro, o egoísmo, próprio a todos, faz com que ultrapasse facilmente, em dado indivíduo, o grau duma simples afirmação, chegando até à negação da mesma vontade que se manifesta em outro indivíduo. (…) por conseguinte, quando afirma sua vontade, este homem sai dos limites de seu corpo e nega a vontade do corpo alheio. (…) Tal usurpação tem o nome de injustiça. (p. 109)

No entanto, quando a afirmação do próprio corpo alcança este patamar, a “usurpação” recai sobre o indivíduo “injusto” como dor moral, da qual normalmente deriva o remorso, isto é, o sentimento de haver praticado uma injustiça. Schopenhauer nos dá o exemplo do canibalismo. Para o autor, este ato é “seu tipo mais nítido e mais evidente, a imagem execrável do mais impetuoso conflito da vontade consigo própria na objetivação mais elevada: o homem.” Mas o terror e o receio que temos ao cometer ou recuar diante de um homicídio é nada além de outra expressão do “querer-viver”.

No que concerne à propriedade, o autor considera que a única forma de detê-la sem que se cometa injustiça é quando esta “se acha em origem inteira e unicamente fundada no trabalho”, de modo que apropriações não são nada além de uma privação da vontade do(s) corpo(s) que nela trabalha(m) para servir à vontade do apropriador. Este caso é semelhante ao do primeiro exemplo, em que, para satisfazer à própria vontade, “alarga, assim, a afirmação desta última para além do fenômeno que lhe é próprio e chega até ao ponto de negá-la no fenômeno estranho”, ou seja, no outro.

Quanto às coisas que não admitem nenhum trabalho, nem para beneficiá-las, nem para garanti-las contra a destruição, essas não admitem posse exclusiva moralmente fundada, salvo no caso duma cessão voluntária feita a alguém por parte de todos, por exemplo, em recompensas de outros serviços; mas isto supõe uma sociedade já regulada por um convenção, ou seja, um Estado.”(p. 112)

Sendo a injustiça a negação da vontade alheia como meio de saciar a própria, a justiça existe quando isso não ocorre. E foi da necessidade de se evitar a primeira, isto é, de que as pessoas renunciassem ao prazer de cometê-la, que surgiu a lei, e um Estado perfeito só seria possível com indivíduos dispostos a “sacrificar o próprio interesse aos dos outros”. Mas o Estado não se preocupa com a vontade em si, se não com a sua consumação, portanto, “não é de fato contra o egoísmo, mas sim contra as consequências desastrosas e recíprocas (…) que o Estado foi instituído com o fim de assegurar o dito bem-estar”, e jamais poderá fundamentar as relações humanas na pura benevolência, mas na coação.

Por onde se vê que a lei e sua execução, ou seja, a punição, tem essencialmente em vista o futuro e não o passado. Qualquer represália que se inflija e consequência duma injustiça, causando dor a quem for injusto, sem outro fim para o futuro, é vingança e não encontraria uma justificativa na moral. (p. 127)

O Estado é, por fim, um instrumento de regulação dos egoísmos múltiplos dos quais se constitui uma sociedade; o “expediente pelo qual este [o egoísmo] procura fugir às suas funestas consequências”. Mas serão os conceitos de “bom”e “mau” dos quais se utiliza o Estado, conceitos universais? Para Schopenhauer, o conceito de “bom” é tudo aquilo que corresponde a nossos presentes anseios, de modo que o bom absoluto é uma contradição. No entanto, é aos indivíduos que, ao menos aparentemente, renunciam sua vontade em nome da maioria, que se convencionou denominar “piedosos”, “simpáticos”, “bons”.

Conclui-se que não serão os dogmas ou “sermões sobre a moral” que poderão produzir um indivíduo virtuoso ou bom. Estes, naturalmente, têm efeito sobre suas atitudes, mas de maneira forjada, pois não servem como nada além de certo “panfleto de conduta” do qual o dito virtuoso não compreende a natureza íntima. Os motivos para se agir de determinada maneira podem “mudar a direção da vontade, mas não a vontade em si mesma.”

A mesma maldade pode manifestar-se num povo com ríspidos traços por meio do assassínio e da antropofagia, e noutro com a fina e ligeira miniatura das intrigas cortesãs. Mas o fundo é o mesmo para ambos.
Suponhamos que um Estado, ou mesmo um dogma que fosse objeto de fé absoluta (…) conseguisse impedir qualquer delito. Politicamente o benefício seria imenso, moralmente nulo: Quando muito se evitaria à vida o ser a cópia fiel da vontade.

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Anexo

DEBONA, V. Pessimismo e eudemonologia: Schopenhauer entre pessimismo metafísico e pessimismo pragmático. Kriterion: Revista de Filosofia, v. 57, n. 135, p. 781–802, set. 2016.

Este pessimismo metafísico pode ser delimitado a partir de um critério conceitual mais específico na medida em que se reconhecem como seu pano de fundo elementos da fundamentação schopenhaueriana da moral. A partir deste parâmetro, tal pessimismo metafísico poderia ser identificado sob três principais pressupostos metafísico-morais explicitados pelo próprio filósofo. Os três referidos pressupostos seriam:

  1. O reconhecimento do egoísmo e da maldade como tendências intrínsecas ou como instintos e impulsos fundamentais (Grundtriebfedern) ao caráter do homem: “A motivação principal e fundamental, tanto no homem quanto no animal, é o egoísmo, ou seja, o ímpeto para a existência e o bem-estar” (Schopenhauer, 1840, p. 120). Não se trata, então, de um “pessimismo antropológico”, pois apesar de o egoísmo animal não consistir em um “interesse próprio” (Eigennutz) e planejado, ele ainda seria um “amor-próprio” (Selbstsucht). Na natureza humana, porém, o egoísmo interesseiro não conhece limites: “Cada um traz em si o único mundo que conhece e de que sabe como sua representação, e por isso esse mundo é o seu centro […]. É assim que este egoísmo, que está entre um homem e outro como uma larga cova, cresce sempre mais” (ibidem, p. 122). Ao sublinhar essa “grandeza do egoísmo” (die Größe des Egoismus), Schopenhauer chega à nefasta consideração de que “alguns homens seriam capazes de assassinar um outro só para engraxar suas botas com a gordura dele” (ibidem, p. 124). E, por mais que os elementos céticos em relação à existência de um fundamento natural para a ética e a constatação da corrupção moral do mundo não sejam suficientes para se negar qualquer possibilidade de algum recanto para a moralidade genuína, o são “para moderar nossa expectativa sobre a disposição moral do ser humano […] e considerar que a motivação para o bem não pode ser tão poderosa” (ibidem, p. 117). Esta desconfiança pessimística é ainda maior quando se considera que a manifestação da tendência de antimoralidade intrínseca em cada caráter é sempre ocultada pela ordem legal, pela necessidade da honra, pela cordialidade, ou mesmo pela educação, esta que é preponderantemente díspar em relação à realidade e que as crianças recebem logo cedo. Não fossem estes “disfarces” legais e civis, a maldade e a crueldade estariam na ordem do dia. Daí ser preciso “ler histórias criminais e descrições de situações anárquicas […], e ver os milhares que se acotovelam uns aos outros num transitar pacífico […], como se fossem tigres e lobos cujas mandíbulas estivessem seguras por forte focinheira” (ibidem, p. 118), para se saber o que é propriamente o ser humano no aspecto moral.
  2. A impossibilidade de melhoria do caráter, somada à necessidade como regente das motivações e das ações, o que faz com que a compaixão, enquanto motivação casual e sem poder ser promovida, fique à mercê de seu encontro com um caráter – o caráter inteligível, inato e imutável – que seja receptivo a esta classe de motivos. O pessimismo delineado nesses termos se deixaria identificar, então, pelo não reconhecimento de êxito por parte de experiências, cultura, religião ou qualquer doutrinamento, caso estes visem a imutável e constante individualidade. Aqui é necessário pressupor os aspectos elementares da doutrina schopenhaueriana do caráter tomada enquanto caráter inteligível, caráter empírico12 e, ainda, como caráter adquirido (este que será abordado no âmbito do pessimismo pragmático). A tese da fixidez e da constância do caráter se faz presente em todas as fases da produção filosófica do pensador: ela é formulada ainda no fragmento póstumo 159, de 1814;13 é pressuposta durante a formulação da metafísica da vontade e a fundação da ética; e é novamente repetida no Vol. II dos “Parerga e paralipomena”: “a característica [da vontade individual] é inata e incapaz de qualquer melhoramento (Verbesserung) mediante a formação” (Schopenhauer, 1851a, § 117, p. 73). A insistência nesta perspectiva não deixa de se reportar diretamente à noção metafísica de caráter e pode ser notada também quando se considera a defesa de que o autêntico critério de distinção fundamental entre uma religião e outra, enaltecido pelo pensador em diversos momentos, não consiste

    no fato de serem elas [as religiões] monoteístas, politeístas, panteístas ou ateias, mas somente no fato de serem otimistas ou pessimistas, ou seja, de conceberem a existência deste mundo como justificada em si mesma, e por isso a louvarem e a exaltarem, ou ao contrário, de considerarem tal existência como algo que só pode ser compreendido como fruto de nossa culpa e que, então, não deveria existir na medida em que se reconhece que dor e morte não podem residir na eterna, original e imutável ordem das coisas […] (Schopenhauer, WWV II, Kap. 17, p. 188, grifos meus).

    O cristianismo, com sua doutrina da “queda do homem”, do pecado original, da perversidade e da perdição natural humanas, juntamente com a doutrina da expiação dessa condição por obra do Redentor, apresenta-se como autêntico pessimismo (cf. Schopenhauer, 1851a, § 181, p. 269). Justamente por isso a visão pessimista schopenhaueriana se oporia ao otimismo notado no hebraísmo e no islamismo, mas coincidiria com o brahmanismo e com o budismo, conforme sustentado pelo próprio filósofo.

  3. A indicação da autêntica ação moral como ação misteriosa: “Este processo é, eu repito, misterioso, pois é algo de que a razão não pode dar conta diretamente e cujos fundamentos não podem ser descobertos pelo caminho da experiência” (Schopenhauer, 1840, p. 163, grifos do autor). Também neste sentido, muito embora a superação do “Véu de Maja” possa representar a superação do próprio pessimismo empiricamente constatado, tratar-se-ia de um pessimismo que se justificaria pela oposição schopenhaueriana ao otimismo em relação à produção da ação moral: a imediatez das ações altruístas não pode ser ensinada e disseminada com uma quantidade e intensidade cada vez maiores. O argumento de Schopenhauer, quanto a este ponto, é preciso:

    Se as muitas instituições religiosas e os esforços moralizantes não tivessem errado o alvo, a metade mais velha da humanidade teria de ser significativamente melhor do que a mais jovem, pelo menos na média. Há, porém, tão poucos traços disto que, inversamente, esperamos antes algo bom dos jovens do que dos velhos, que ficaram piores com a experiência (ibidem, p. 194).

É diante dessas teses, entre outras, que se pode captar o diferencial que Schopenhauer atribui à sua fundamentação da ação e da existência humanas em relação ao “otimismo de todos os sistemas filosóficos”, expressão empregada pelo próprio filósofo em “Sobre a vontade na natureza” (1911-1941d, p. 423). Desse modo, embora o pensador não tenha usado o termo Pessimismus de forma direta para com ele englobar os assuntos dos três tópicos acima elencados, a textual oposição ao otimismo dos “outros sistemas” permite que consideremos tais tópicos como legítimos pressupostos e conteúdos do chamado pessimismo metafísico schopenhaueriano.

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