[…] A privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação eficaz. Algo mais fundamental do que a liberdade e a justiça, que são os direitos do cidadão, está em jogo quando deixa de ser natural que um homem pertença à comunidade em que nasceu, e quando o não pertencer a ela não é um ato da sua livre escolha, ou quando está numa situação em que, a não ser que cometa um crime, receberá um tratamento independente do que ele faça ou deixe de fazer. Esse extremo, e nada mais, é a situação dos que são privados dos seus direitos humanos. São privados não do seu direito à liberdade, mas do direito à ação; não do direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem. Privilégios (em alguns casos), injustiças (na maioria das vezes), bênçãos ou ruínas lhes serão dados ao sabor do acaso e sem qualquer relação com o que fazem, fizeram ou venham a fazer.
Só conseguimos perceber a existência de um direito a ter direitos (e isto significa viver numa estrutura onde se é julgado pelas ações e opiniões) e de um direito de pertencer a algum tipo de comunidade organizada, quando surgiram milhões de pessoas que haviam perdido esses direitos e não podiam recuperá-los devido à nova situação política global. O problema não é que essa calamidade tenha surgido não de alguma falta de civilização, atraso ou simples tirania, mas sim que ela não pudesse ser reparada, porque já não há qualquer lugar “incivilizado” na terra, pois, queiramos ou não, já começamos realmente a viver num Mundo Único. Só com uma humanidade completamente organizada, a perda do lar e da condição política de um homem pode equivaler à sua expulsão da humanidade.
ARENDT, H. Origens do totalitarismo
Em sua análise do totalitarismo, Hannah Arendt aponta para um desdobramento nefasto desse fenômeno. Alemã de origem judia, ela transporta para o campo da filosofia a experiência da perseguição vivida durante a ascensão do nazismo. E, assim, defende que os direitos humanos dependem, efetivamente, da possibilidade de mulheres e homens pertencerem a uma comunidade política. Pois uma vez que os judeus se viram apartados do resto da sociedade alemã – não por algo que fizeram, mas por aquilo que eram –, privados de qualquer possibilidade de ação ou opinião, de nada adiantaram seus direitos à liberdade e à justiça. Estes últimos, sendo mera expressão abstrata de ideais do individualismo burguês, de nada serviram para evitar o Holocausto.
Anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, residindo nos EUA, Hannah foi convidada pela revista The New Yorker para acompanhar o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. Eichmann era um oficial nazista, responsável por embarcar milhares de judeus nos trens que levavam aos campos de concentração. Ele foi capturado na Argentina, em 1960, por agentes da Mossad (serviço secreto israelense) e levado para Israel, onde foi julgado por crimes de guerra, contra a humanidade e contra o povo judeu.
O testemunho do julgamento deu origem ao livro Eichmann em Jerusalém, no qual Arendt cunhou uma expressão que se tornou célebre: a “banalidade do mal”. Obviamente, banal não foi o genocídio cometido contra os judeus. Mas a forma pela qual foi perpetrado, como se tratasse da execução de uma simples tarefa administrativa. A postura do ex-oficial nazista durante o julgamento ressalta esse aspecto, uma vez que em nenhum momento se mostrou arrependido da sua conduta, pois, em sua maneira de ver, ele estaria apenas cumprindo ordens. A “banalidade do mal” reside, portanto, na incapacidade de o sujeito pensar por si próprio e ter autonomia moral suficiente para não colocar em prática um crime contra a humanidade. Pois um crime de tal magnitude não pode ser perpetrado por um indivíduo isolado, mas por toda uma estrutura social – e esse é justamente o caso do Holocausto judeu na Alemanha nazista.
Por maior que tenha sido o impacto desse livro, parece que as reflexões de Hannah Arendt não foram suficientes para evitar que novos genocídios acontecessem desde então. Basta lembrar do Camboja (1975-1979), de Ruanda (1994) e Kosovo (1997-1999). E, nos nossos dias, olhar para o que acontece na Faixa de Gaza.
Ironicamente, o Estado de Israel, que simbolizou a recuperação da condição política e de um lar para o povo judeu, após a experiência traumática do Holocausto, hoje promove um genocídio do povo palestino. No plano político, Israel tem se oposto sistematicamente ao reconhecimento de um Estado Palestino, além de impor restrições ao fluxo de pessoas e mercadorias no território, tornando a vida ainda mais difícil em Gaza. Militarmente, em represália a foguetes lançados pelo Hamas, comanda ofensivas que tiram a vida de inúmeros civis palestinos. E, antes que alguém acuse este texto de antissemita, deve ficar claro que as críticas são endereçadas ao Estado de Israel, e não ao povo judeu.
Assim, mais do que nunca, é preciso recuperar Hannah Arendt e suas reflexões sobre o “direito a ter direitos” e a “banalidade do mal”. Pois só com o reconhecimento pleno da cidadania do povo palestino, isto é, do direito de pertencer a uma comunidade política organizada, ele poderá ter seus direitos humanos salvaguardados. Por outro lado, é preciso que os agentes do Estado de Israel e a comunidade internacional sejam capazes de pensar por si próprios e se deem conta do crime que está sendo cometido não apenas contra os palestinos, mas contra toda a humanidade. E evitar que, no futuro, tenhamos que presenciar o julgamento de um novo Eichmann – só que desta vez na Faixa de Gaza.
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