Da série “Necropolítica“.
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo, SP: N-1 edições, 2020, p. 93-97.
Atuando em conjunto, movimentos de ódio, formações engajadas na economia da hostilidade, da inimizade e das lutas multifacetadas contra o inimigo contribuíram, no final do século XX, para um aumento significativo das formas e dos níveis aceitáveis de violência que podem (ou devem) ser infligidos aos fracos, aos inimigos e aos intrusos (todos os que não foram considerados como sendo dos nossos); contribuíram para uma intensificação das relações de instrumentalização na sociedade; para mudanças profundas nos regimes contemporâneos do desejo e dos afetos coletivos. Além disso, favoreceram o surgimento e a consolidação de uma forma de Estado que tem sido chamada de Estado de segurança e de vigilância.
O Estado de segurança se alimenta de um estado de insegurança que ele próprio ajuda a fomentar e para o qual pretende ser a resposta. Se o estado de segurança é uma estrutura, o estado de insegurança é uma paixão, ou um afeto, uma condição, ou mesmo uma força de desejo. Em outras palavras, o estado de insegurança é o que faz funcionar o Estado de segurança, na medida em que este é, no fundo, uma estrutura responsável por investir, organizar e desviar as pulsões constitutivas da vida humana contemporânea. Quanto à guerra encarregada de vencer o medo, ela não é local, nacional ou regional. Sua superfície é planetária e a vida cotidiana é seu teatro privilegiado de ação. Porque o Estado de segurança pressupõe a impossibilidade de uma “cessação das hostilidades” entre nós e aqueles que ameaçam nosso modo de vida – e pressupõe, portanto, a existência de um inimigo irredutível que nunca para de se metamorfosear -, essa guerra agora é permanente. Reagir às ameaças internas – ou vindas de fora e difundidas por dentro – agora exige a mobilização de uma série de atividades paramilitares e de enormes recursos psíquicos. Enfim, assumidamente movido por uma mitologia da liberdade que deriva, no fundo, de uma metafísica da força, o Estado de segurança se preocupa menos com a distribuição de cargos e prebendas do que com o projeto de dispor da vida dos seres humanos, sejam eles seus súditos ou aqueles que designou como seus inimigos.
Essa liberação de energia psicogênica se manifesta por meio de um apego crescente ao que outrora era chamado de ilusão. No entendimento clássico, a ilusão se contrapunha à realidade. Tomando os efeitos por causas, a ilusão consagrava o triunfo das imagens e do mundo das aparências, dos reflexos e do simulacro. Fazia parte do mundo da ficção, por oposição ao mundo real, surgido da tessitura íntima das coisas e da vida. A demanda por um excedente imaginário, necessário para a vida cotidiana, não apenas foi acelerada. Ela se tornou irreprimível. Esse excedente imaginário não é percebido como um complemento a uma existência que seria mais “real” por estar supostamente mais ajustada ao ser e a sua essência. Por muitos, ela é vivida como motor do real, como a própria condição de sua plenitude e de seu esplendor. Outrora confiada às religiões de salvação, a produção desse excedente hoje é delegada cada vez mais ao capital e aos mais variados tipos de objetos e tecnologias.
Tanto o mundo dos objetos e máquinas quanto o próprio capital se apresentam cada vez mais como uma espécie de religião animista. Nem sequer o status da verdade deixa de ser questionado. Certezas e convicções são tidas por verdades. Nada exige raciocínio. Basta acreditar e se render. Em decorrência disso, a deliberação pública (um dos elementos essenciais da democracia) não consiste mais em discutir e buscar juntos e diante dos olhos de todos os cidadãos a verdade e, em última instância, a justiça. Como a grande oposição não é mais a que separa o verdadeiro do falso, o pior passa a ser agora a dúvida. Pois na luta concreta que nos opõe aos nossos inimigos, a dúvida bloqueia a liberação total das energias voluntaristas, emocionais e vitais necessárias ao emprego da violência e, se preciso for, ao derramamento de sangue.
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À antiga distinção entre amigos e inimigos se sobrepõe agora uma outra, entre parentes e não parentes, isto é, entre aqueles e aquelas que estão ligados pelo mesmo sangue ou pela mesma “estirpe” e aqueles que se consideram proveniente de outro sangue, de outra cultura e de outra religião. Vindos de outro lugar, são, no fundo, pessoas que não poderiam ser consideradas nossos concidadãos e com as quais não teríamos quase nada em comum.
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