Fernando Holiday tem vivência (e/ou local de fala)?

Fernando Holiday é uma das provas de que o conceito de vivência gerado na internet está completamente errado. Holiday rasgou o Hino à Negritude. Clique aqui e veja porque o conceito de vivência não faz sentido.

Claro que vocês conhecem o Movimento Brasil Livre (MBL), certo? Se trata daquele movimento financiado pelo Students for Liberty, fundo de assistência para grupos liberais que atua em países com algum tipo de turbulência política. Kim Kataguiri é parte desse grupo e o personagem principal do presente texto, Fernando Holiday, é também um membro.

Fernando Holiday
Fernando Holiday, nervosão, em um de seus vídeos contra as cotas. Imagem: Youtube.

Kataguiri talvez seja mais conhecido: ele tem uma coluna na Folha, onde fala sobre Power Rangers e Lula, além de ter feito campanha de doação para sua conta pessoal, sob a desculpa de ter como objetivo a sustentação do MBL durante as manifestações pró-impedimento da presidenta.

Já Fernando Holiday é a presença ilustre: um negro contra o movimento negro. Sob a demagogia de que cotas são migalhas do Estado, uma ofensa ao povo negro que tem condições de passar no vestibular, Holiday ganhou espaço no grupo após fazer aquilo que nenhum membro de grupo minoritário faria: atacar seus grupos de defesa.

Fernando Holiday rasga Hino à Negritude.
Fernando Holiday rasgou o Hino da Negritude e criticou as cotas raciais. Foto: Gustavo Lima / Câmara dos Deputados.

Holiday, em Comissão Geral em homenagem ao Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, realizada nesta terça-feira (22) no Congresso Nacional, chamou o Hino à Negritude de “hino da segregação” (veja o vídeo no fim da coluna). “O que vi aqui foram negros rebaixando os negros. Dizendo que os negros não são capazes de atingir seus objetivos por suas próprias capacidades. Eu não defendo as cotas raciais, muito pelo contrário”, disse Holiday.

“As cotas reforçam o racismo e é isso que a gente vê pelo mundo. Eu acredito que os negros podem, sim, alcançar a vitória. Eu acredito que os pobres podem, sim, alcançar a vitória. Mas não por meio de migalhas do Estado”, falou em sua vez no púlpito. Holiday foi chamado pelo partido Democratas (DEM) para representar o MBL na Comissão.

Conceição Lemes, em matéria no Viomundo, entrevistou Vicentinho, deputado do PT-SP, após a lamentável cena de Holiday rasgando o Hino à Negritude, “foi um gesto altamente agressivo, desrespeitoso, um  dos mais horríveis que já vi aqui na Câmara. Não  é uma violência contra mim pessoalmente. É uma violência contra o povo negro, contra o povo escravo, contra Mandela… Uma coisa realmente inaceitável”. Vicentinho escreveu a lei que oficializa o hino no país.

Por sua vez, Cidinha da Silva, em matéria ao Diário do Centro do Mundo, critica a função que Holiday acaba exercendo, “ele desempenha o papel de negro da casa grande, aquele que goza de algumas benesses, tais como comer as sobras dos donos da casa ou dormir fora da senzala. E procura a todo o custo, inclusive o de delação dos planos de fuga dos negros aquilombados, salvar a própria pele”.

Holiday, aliás, será candidato a vereador em São Paulo, este ano – pelo DEM, claro.

E porque eu disse isso tudo? Estou só contanto o caso? Não, aqui, cabe uma reflexão um pouco maior: Holiday tem vivência, tem local de fala?

Vivência e local de fala em Fernando Holiday

Eu já falei sobre o problema da vivência (da versão deste conceito gerada nas redes sociais brasileiras) aqui e sobre o problema do local de fala aqui.

A função da vivência é retirar o indivíduo de uma história geral, um experiência geral que deveria ter, para colocá-lo em uma experiência particular, mas ainda massificante. Digo, quando se fala de vivência, se fala do relato em oposição à grande narrativa: o particular em oposição ao universal.

Mas o particular, ao contrário do que se pensa, também é estruturado como uma narrativa universalizável. É claro que a palavra “universal” passa a ter um significado diferente: seria aquilo que pode ser universalizado no grupo específico. A vivência serve para fazer com que todas as pessoas de um grupo específico tenham a mesma experiência particular, sintam as mesmas coisas e tenham a mesma memória. A vivência cria uma memória coletiva.

No entanto, isso tudo fica nas entrelinhas, porque, no plano do dito, do consciente, a vivência seria uma experiência individual que é dotada de autoridade por ser experimentada por um indivíduo de um grupo oprimido. Desta forma, me pergunto, a vivência de Holiday é válida?

Segundo a forma explícita do conceito de vivência, sim, ela é válida. Segundo o objetivo mais profundo do conceito de vivência, não, não é possível que ele possa ser um negro com vivência. Pode até ter uma vivência, mas não vivência de negro. Ele é um negro sem vivência de negro. Pode isso?

Ele tem local de fala? Se levarmos em consideração que o local de fala está diretamente ligado a vivência, então ele tem e não tem local de fala. Ele tem, no conceito explícito de local de fala, mas não tem quando se tenta perceber que o local de fala serve para chancelar a autoridade de quem tem a vivência.

E o que significa o aparecimento de um Holiday rasgando o Hino à Negritude? É da demonstração da fraqueza dos conceitos de vivência e local de fala: o conceito de vivência se apresenta como uma maneira essencialista de classificar as pessoas, partindo do princípio de que a essência determinará a consciência e que a consciência será a confirmação do local de fala.

Holiday também é dotado de consciência e é negro. Porque ele vive o paradoxo de ser um negro de direita, segundo Cidinha da Silva, acima citada? Eu diria que não há paradoxo porque não há determinação prévia da consciência. Porque não há vivência que o transforme em sujeito de esquerda.

Porque vivência não existe.

Vivência como ideologia

Se eu já falei da função da vivência anteriormente (deixo aqui meu texto, novamente), agora preciso de uma perspectiva diferente. Eu disse que vivência atua como um tipo particular de narrativa: ela coage os mesmo de um grupo particular a terem as mesmas experiências e sentirem os mesmo afetos, daí vem a vivência de negro, vivência de gay, vivência de branco, vivência de cis e etc. São classificações de experiência que as pessoas devem sentir, de memórias que elas devem armazenar e de culpas ou direitos que elas devem ter.

O conceito de vivência é só um deslocamento da autoridade da narrativa, mas não uma abertura real para a expressão livre do sujeito. Afinal, isso não existe. O problema da vivência está no fato de que a vida é um espaço bem mais dinâmico que o conceito pode conceber.

Quando aparece um Holiday da vida, o que fazer? Dizer que ele tem a vivência dele, particular? Mas ele não é negro? Ele não tem vivência de negro? Por que a vivência acaba se transformando em experiência individual nesses casos?

Esta contradição que o conceito de vivência carrega me faz considerá-la como uma ideologia. Como parte da ideologia específica da internet (local em que esse conceito ganhou força) mas sem ter nascido lá, talvez.

O conceito de vivência só faz sentido num mundo de aproximações identitárias. No entanto, num mundo em que tudo é mercadoria, de onde vem a identidade? Da mercadoria. A vivência talvez seja a maneira de procurar uma associação que tente fugir da mercadoria, que tenha como base uma vida mais profunda, uma experiência mais estrutural.

Mas esse viés identitário aparece como? Aparece com a suposta falência do viés de classes. Já que não posso dizer que há luta entre proletários e patrões, já que o capitalismo ganhou, então a oposição social mais importante passa a ser a da identidade. Não nos exploram porque querem lucro, nos exploram por que pertencemos a um grupo minoritário, porque somos classificados como aqueles que devem sofrer.

A vivência organiza um grupo fora da estrutura econômica.

A vivência, sendo assim, não tem como objetivo quebrar a estrutura econômica, mas sim incluir os grupos dentro dela. São organizados para se incluírem, para terem espaço.

É, portanto, ideologia, porque faz uma luta não-estrutural parecer como tal. A exploração capitalista não acaba quando negros como Holiday ganham espaço no Congresso – coisa que dificilmente se vê com negros da esquerda comunista.

***

Anexo: vídeo de Holiday rasgando o Hino à Negritude

Leituras obrigatórias

Quer saber o que eu penso sobre o conceito de “desconstrução das opressões”? Clique aqui.

Clique aqui para entender que chamar os outros de academicista só vai te fazer mais burro.

Clique aqui para entender qual a minha opinião sobre o conceito de apropriação cultural.

Banner-facebook

3 Comentários

  1. Completamente? Creio que haja uma fixação sua para desconstruir o conceito de ”local de fala”. Um conceito não é validado apenas quando se torna universal, até porque conceitos universais jamais se aplicariam à questões sociais, discursivas, psicológicas, pois mataria suas particularidades e isso seria reduzi-las.
    O local da fala é importante, e isso já foi nos mostrado desde Freud, enfatizado por Lacan. Foucault também procura caracterizar o discurso como produto de um lugar. Ou seja, o local existe, e se faz valer, mesmo que não seja algo que fidedignamente traga validade ao que se fala, até porque o próprio conceito de ”validar” o discurso já é algo para se pensar.
    Não quero entrar no argumento ad hominem mas as vezes Paulo Freire acerta com precisão assustadora ”quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”.

  2. O “lugar de fala” é um termo que aparece com frequência em debates entre militantes de movimentos identitários de esquerda, como feministas, negros e LGBT; ele é um argumento comumente utilizado por grupos que, diz-se, historicamente tiveram menos espaço de expressão. A ideia é que apenas membros desses grupos possam argumentar sobre determinados temas que digam respeito a esses grupos ou que apenas os argumentos dos membros de tais grupos seriam válidos ou verdadeiros. Contudo, segundo o professor Pablo Ortellado, o chamado Lugar de Fala seria uma modalidade de Ad Hominem abusivo:

    “(…) o lugar de fala indiretamente reforça na esquerda os argumentos “ad hominem”, interrompendo uma tradição progressista de racionalismo esclarecido. Os argumentos “ad hominem” são falácias condenadas desde a antiguidade clássica porque desqualificam quem fala para não precisar discutir o teor do que diz o adversário. Quando o movimento social condena discursos sobre a opressão que não são enunciados pelos próprios oprimidos, de certa maneira ele resgata e legitima uma modalidade de argumento ad hominem. (Pablo Ortellado)” [5]

    Ou seja, imaginar que a posição social ocupada por um sujeito ou suas características físicas ou psicológicas tornariam os argumentos do mesmo válidos ou inválidos, verdadeiros ou falsos seria um claro exemplo de falácia ad hominem.

    A preocupação é em sublinhar e chamar a atenção para as características pessoais do debatedor no lugar de se analisar seus argumentos.
    Exemplos:
    “As afirmações de Richard Nixon a respeito da política de relações externas em relação à China não são confiáveis pois ele foi forçado a abdicar durante o escândalo de Watergate.”
    “Pessoas brancas não podem falar sobre racismo, pois elas são brancas e não tiveram tal experiência subjetiva”
    “Homens não podem falar sobre machismo, pois são homens e não tiveram tal experiência subjetiva”
    O mesmo vale para outros casos semelhantes em que se sublinham as características pessoais e as experiências subjetivas do debatedor no lugar de se tentar refutar seus argumentos e apresentar contraprovas às evidências que ele apresentou.

Deixe sua provocação! Comente aqui!