Fetichismo da mercadoria e seu exemplo atual, por Zygmunt Bauman – DROPS #60

BAUMAN, Zygmunt. O segredo mais bem guardado da sociedade de consumidores IN Vida para consumo, a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008.

Escrevendo de dentro da incipiente sociedade de produtores, Karl Marx censurou os economistas da época pela falácia do “fetichismo da mercadoria”: o hábito de, por ação ou omissão, ignorar ou esconder a interação humana por trás do movimento das mercadorias. Como se estas, por conta própria, travassem relações entre si a despeito da mediação humana. A descoberta da compra e venda da capacidade de trabalho como a essência das “relações industriais” ocultas no fenômeno da “circulação de mercadorias”, insistiu Marx, foi tão chocante quanto revolucionária: um primeiro passo rumo à restauração da substância humana na realidade cada vez mais desumanizada da exploração capitalista.

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Um pouco mais tarde, Karl Polanyi abriria outro buraco na ilusão provocada pelo fetichismo da mercadoria: sim, diria ele, a capacidade de trabalho era vendida e comprada como se fosse uma mercadoria como outra qualquer, mas não, insistiria Polanyi, a capacidade de trabalho não era nem poderia ser uma mercadoria “como” outra qualquer. A impressão de que o trabalho era pura e simplesmente uma mercadoria só podia ser uma grande mistificação do verdadeiro estado das coisas, já que a “capacidade de trabalho” não pode ser comparada nem vendida em separado de seus portadores. De maneira distinta de outras mercadorias, os compradores não podem levar sua compra para casa. O que compraram não se torna sua propriedade exclusiva e incondicional, e eles não estão livres para utere et abutere (usar e abusar) dela à vontade, como estão no caso de outras aquisições. A transação que parece “apenas comercial” (recordemos a queixa de Thomas Carlyle, no início do século XX, de que relações humanas multifacetadas tinham sido reduzidas a um mero “nexo financeiro”) inevitavelmente liga portadores e compradores num vínculo mútuo e numa interdependência estreita. No mercado de trabalho, um relacionamento humano nasce de cada transação comercial; cada contrato de trabalho é outra refutação do fetichismo da mercadoria, e na seqüência de cada transação logo aparecem provas de sua falsidade, assim como da ilusão ou auto-ilusão subseqüente.

Se foi o destino do fetichismo da mercadoria ocultar das vistas a substância demasiado humana da sociedade de produtores, é papel do fetichismo da subjetividade ocultar a realidade demasiado comodificada da sociedade de consumidores.

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A “subjetividade” numa sociedade de consumidores, assim como a “mercadoria” numa sociedade de produtores, é (para usar o oportuno conceito de Bruno Latour) um fatiche – um produto profundamente humano elevado à categoria de autoridade sobre-humana mediante o esquecimento ou a condenação à irrelevância de suas origens demasiado humanas, juntamente com o conjunto de ações humanas que levaram ao seu aparecimento e que foram condição sine qua non para que isso ocorresse. No caso da mercadoria na sociedade de produtores, foi o ato de comprar e vender sua capacidade de trabalho que, ao dotá-la de um valor de mercado, transformou o produto do trabalho numa mercadoria – de uma forma não visível (e sendo oculta) na aparência de uma interação autônoma de mercadorias. No caso da subjetividade na sociedade de consumidores, é a vez de comprar e vender os símbolos empregados na construção da identidade – a expressão supostamente pública do “self” que na verdade é o “simulacro” de Jean Baudrillard, colocando a “representação” no lugar daquilo que ela deveria representar –, a serem eliminados da aparência do produto final.

A “subjetividade” dos consumidores é feita de opções de compra – opções assumidas pelo sujeito e seus potenciais compradores; sua descrição adquire a forma de uma lista de compras. O que se supõe ser a materialização da verdade interior do self é uma idealização dos traços materiais – “objetificados” – das escolhas do consumidor.

Algum tempo atrás, uma das cada vez mais numerosas agências de encontros pela internet (parship.co.uk) conduziu uma pesquisa que mostrou que dois terços dos solteiros que usaram serviços de encontros em 2005 (cerca de 3,6 milhões) recorreram à internet. O negócio de “encontros pela internet” obteve 12 milhões de libras naquele ano e se espera que atinja 47 milhões em 2008.  Nos seis meses que precederam a pesquisa, a proporção de solteiros que acreditavam poder encontrar o parceiro certo na internet cresceu de 35 para 50% – e a tendência é aumentar mais. Comentando esses dados, o autor de um dos “artigos spiked” publicados na web observa:

Isso reflete uma mudança fundamental na forma como as pessoas são estimuladas a pensar sobre seus relacionamentos pessoais e organizar suas vidas, com a intimidade apresentada em público e sujeita a normas contratuais que se poderia associar à compra de um carro, uma casa ou a uma viagem de férias.

Compartilhando a opinião expressa por outro escritor “spiked”, o autor acredita que os usuários potenciais são estimulados a migrar para os serviços de internet como uma “opção mais segura e controlada”, que lhes permite evitar “o risco e a imprevisibilidade dos encontros face a face”. “O medo de estar só remete as pessoas aos computadores, enquanto o perigo representado pelos estranhos estimula o adiamento dos encontros na vida real.” Mas há um preço a ser pago. Jonathan Keane ressalta “o senso arrepiante de desconforto e injúria” que atormenta as pessoas, não importa quanto tentem evitá-lo, à medida que passam de um site para outro, assim como costumavam virar as páginas de um catálogo, na busca de um parceiro ideal.

Claramente, as pessoas que recorrem às agências da internet em busca de ajuda foram mimadas pelo mercado de consumo, amigável ao usuário, que promete tornar toda escolha segura e qualquer transação única e sem compromisso, um ato “sem custos ocultos”, “nada mais a pagar, nunca”, “sem amarras”, “nenhum agente para ligar”. O efeito colateral (é possível se dizer, usando uma expressão que está na moda, “a baixa colateral”) dessa existência mimada – minimizando os riscos, reduzindo bastante ou abolindo a responsabilidade e portanto produzindo uma subjetividade dos protagonistas neutralizada a priori – revelou-se, contudo, um volume considerável de “desabilitação” social.

A companhia de seres humanos de carne e osso faz com que os clientes habituais das agências de encontros pela internet, adequadamente preparados
pelas práticas do mercado de produtos, sintam-se constrangidos. Os tipos de mercadorias com as quais foram treinados a se sociabilizar são para tocar, mas não têm mãos para tocar, são despidas para serem examinadas, mas não devolvem o olhar nem requerem que este seja devolvido, e assim se abstêm de se expor ao escrutínio do examinador, enquanto placidamente se expõem ao exame do cliente. Podemos examiná-las por inteiro sem temer que nossos olhos – as janelas dos segredos mais privados da alma – sejam eles próprios examinados. Grande parte da atração exercida pelas agências da internet deriva da reclassificação dos parceiros humanos procurados como os tipos de mercadorias com as quais os consumidores treinados estão acostumados a se defrontar e que sabem muito bem manejar. Quanto mais experientes e “maduros” se tornam os clientes, mais ficam surpresos, confusos e embaraçados quando chegam “face a face” e descobrem que os olhares devem ser devolvidos e que, nas “transações”, eles, os sujeitos, também são objetos.

Nas lojas, as mercadorias são acompanhadas por respostas para todas as perguntas que seus potenciais compradores poderiam desejar fazer antes de tomarem a decisão de adquiri-las, mas elas próprias se mantêm educadamente silenciosas e não fazem perguntas, muito menos embaraçosas. As mercadorias confessam tudo que há para ser confessado, e ainda mais – sem exigir reciprocidade. Mantêm-se no papel de “objeto” cartesiano – totalmente dóceis, matérias obedientes a serem manejadas, moldadas e colocadas em bom uso pelo onipotente sujeito. Pela simples docilidade, elevam o comprador à categoria de sujeito soberano, incontestado e desobrigado – uma categoria nobre e lisonjeira que reforça o ego. Desempenhando o papel de objetos de maneira impecável e realista o bastante para convencer, os bens do mercado suprem e reabastecem, de forma perpétua, a base epistemológica e praxiológica do “fetichismo da subjetividade”.

Como compradores, fomos adequadamente preparados pelos gerentes de marketing e redatores publicitários a desempenhar o papel de sujeito – um faz de-conta que se experimenta como verdade viva; um papel desempenhado como “vida real”, mas que com o passar do tempo afasta essa vida real, despindo-a, nesse percurso, de todas as chances de retorno. E à medida que mais e mais necessidades da vida, antes obtidas com dificuldade, sem o luxo do serviço de intermediação proporcionado pelas redes de compras, tornam-se “comodizados” (a privatização do fornecimento de água, por exemplo, levando invariavelmente à água engarrafada nas prateleiras das lojas), as fundações do “fetichismo da subjetividade” são ampliadas e consolidadas. Para completar a versão popular e revista do cogito de Descartes, “Compro, logo sou…”, deveria ser acrescentado “um sujeito”. E à medida que o tempo gasto em compras se torna mais longo (fisicamente ou em pensamento, em carne e osso ou eletronicamente), multiplicam-se as oportunidades para se fazer esse acréscimo.

Entrar na web para escolher/comprar um parceiro segue a mesma tendência mais ampla das compras pela internet. Cada vez mais pessoas preferem comprar em websites do que em lojas. Conveniência (entrega em domicílio) e economia de gasolina compõem a explicação imediata, embora parcial. O conforto espiritual obtido ao se substituir um vendedor pelo monitor é igualmente importante, se não mais.

Um encontro face a face exige o tipo de habilidade social que pode inexistir ou se mostrar inadequado em certas pessoas, e um diálogo sempre significa se expor ao desconhecido: é como se tornar refém do destino. É tão mais reconfortante saber que é a minha mão, só ela, que segura o mouse e o meu dedo, apenas ele, que repousa sobre o botão. Nunca vai acontecer de um inadvertido (e incontrolado!) trejeito em meu rosto ou uma vacilante mas reveladora expressão de desejo deixar vazar e trair para a pessoa do outro lado do diálogo um volume maior de meus pensamentos ou intenções mais íntimas do que eu estava preparado para divulgar.

Em Soziologie der Sinne, “Sociologia dos sentidos”, Georg Simmel observa que o olhar que dirijo inadvertidamente a outra pessoa revela meu próprio eu. O olhar que dirijo na esperança de obter um lampejo de seu estado mental e/ou de seu coração tende a ser expressivo, e as emoções mais íntimas mostradas dessa maneira não podem ser refreadas ou camufladas com facilidade – a menos que eu seja um ator profissional bastante treinado. Faz sentido, portanto, imitar o suposto hábito do avestruz de enterrar a cabeça na areia e desviar ou baixar os olhos. Não olhando o outro nos olhos, torno meu eu interior (para ser mais exato, meus pensamentos e emoções mais íntimos) invisível, inescrutável…

Agora, na era dos desktops, laptops, dispositivos eletrônicos e celulares que cabem na palma da mão, a maioria de nós tem uma quantidade mais do que suficiente de areia para enterrar a cabeça. Não precisamos mais nos preocupar com a habilidade superior do vendedor para ler rostos, com seu poder de persuasão ou com nossos momentos de fraqueza. Meus temores e esperanças, desejos e dúvidas continuarão sendo o que devem ser: meus e apenas meus. Não vou me apressar em pressionar as teclas “compre agora” e “confirme” antes de ter coletado, listado e examinado todos os “prós” e “contras” das diversas escolhas possíveis. Enquanto eu continuar seguindo dessa maneira prudente, a hora da avaliação, de dar a sentença, aquele ponto sem retorno com desculpas do tipo “tarde demais para reconsiderar”, “não há como voltar atrás” e “não é possível recomeçar”, é mantido a distância. Sou o único no comando. Sinto-me protegido dos complôs e subterfúgios dos desconhecidos e impenetráveis outros – mas também de mim mesmo, de um aspecto que esteja me escapando, de agir “impulsivamente”, de uma forma que posso vir a lamentar – não tenho como saber – pelo resto da vida. Isso se aplica à compra de carros, cortadores de grama, home theaters, laptops ou a uma viagem de férias. Por que não se aplicaria à aquisição de parceiros?

E por fim, num mundo em que uma novidade tentadora corre atrás da outra a uma velocidade de tirar o fôlego, num mundo de incessantes novos começos, viajar esperançoso parece mais seguro e muito mais encantador do que a perspectiva da chegada: a alegria está toda nas compras, enquanto a aquisição em si, com a perspectiva de ficar sobrecarregado com seus efeitos diretos e colaterais possivelmente incômodos e inconvenientes, apresenta uma alta probabilidade de frustração, dor e remorso. E como as lojas da internet permanecem abertas o tempo todo, pode-se esticar à vontade o tempo de satisfação não contaminada por qualquer preocupação com frustrações futuras. Uma escapada para fazer compras não precisa ser uma excursão muito planejada – pode ser fragmentada numa série de agradáveis momentos de excitação, profusamente borrifados sobre todas as outras atividades existenciais, acrescentando cores brilhantes aos recantos mais sombrios ou monótonos.

 – Zygmunt Bauman.

“Amor Líquido em Zygmunt Bauman”. Veja aqui:

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