A internet produz seus intelectuais como o intestino produz suas fezes. Apressadas e disformes, as grandes mentes do circuito de blogs progressistas se digladiam pela frase perfeita, pela expressão perfeita, pelo “close certo”. Deve-se entender que a nova pauta quente do momento, a propaganda de Duvivier em sua coluna na Folha, recebeu certo brilho devido a uma característica do discurso da internet que mostrarei ao longo deste texto.
Uma das grandes características do discurso tipicamente da internet, que circula em blogs e redes sociais, é a constante problematização de coisas irrelevantes. O discurso da internet cria seus objetos para poder problematizá-los porque é a própria problematização que satisfaz a reprodução do discurso.
Melhor: o discurso da internet se preocupa em resolver os problemas que coloca em jogo tanto quanto em performar sua descrição.
O que interessa aos novos militantes que cedo ou tarde terão seus megabytes reduzidos pelas operadoras é falar sobre o problema. Como já dito, este problema vem de um objeto que pode muito bem ser inventado, como no caso da coluna merketeira de Duvivier.
Duvivier fez uma propaganda sobre seu filme. Falcão participa, também, do filme, e recebeu o papel de alvo da suposta carta de amor. Ponto final.
É claro que isso não é o suficiente. Como uma boa mente que maquina em prol da eterna performance, a cabeça do cybermilitante se desvia fácil deste empecilho meramente formal: não interessa se é uma propaganda, a coluna foi interpretada como carta de amor e é assim que precisará ser analisada, na relação que os leitores firmam entre eles e a carta. Isso significa que a coluna de Duvivier não é o que realmente é e, de certa forma, não interessa. A coluna de Duvivier é daquelas provas universais da existência do patriarcado (não é necessário dizer que a existência do patriarcado precisa de tantas provas quanto a existência da exploração do trabalho).
É desta forma que uma ícone da cybermilitância, Stephanie Ribeiro, trata a situação em seu perfil no Facebook,
É claro que, antes de tudo, é necessário dizer que a atenção que a coluna de Duvivier recebe, juntamente com a atenção dada à própria Falcão, acontece “independente deles serem brancos e de classe média alta”. É sempre necessário pontuar que, ao carregarem a essência do branco e do classe-média-alta, automaticamente Gregório e Clarice deixam de ser vulneráveis às estruturas sociais, a não ser que essa fragilidade fique exposta visivelmente e, assim, eles voltam a ser somente humanos.
Isso mesmo, como já dito anteriormente em minha coluna, as declarações de gênero, raça e classe social dadas pela militância da internet servem como maneira de separar o joio do trigo e, ao mesmo tempo, naturalizar comportamentos. A militância da internet não entende que os sujeitos não são máquinas que respondem B sempre que o estímulo A é feito. A vida em sociedade é, ainda bem, mais complicada do que a determinação social fula digna da filosofia mecanicista de um Hobbes.
A necessidade de declarar que a indignação à coluna de marketing feita por Duvivier ocorre independentemente “deles serem brancos e de classe média alta” ajuda a entender a performatividade do discurso da internet. Assim como todos os discurso, é necessário utilizar os enunciados que obedeçam às regras de formação do discurso. A declaração de essência (declarar, antes de tudo, qual a raça, classe, gênero, orientação sexual e etc e etc) de uma pessoa antes de qualquer argumentação é fundamental ao discurso da internet: essa declaração exibe operadores lógicos que classificam o sujeito em questão no grupo daqueles que devem ser criticados ou daqueles que devem ser amparados.
Por fim, aqui aparece o objeto estranho: a coluna de Duvivier deixa de ser uma coluna propagandística e passa a ser um exemplo da maternidade compulsória, pelo autor declarar que se ambos tivessem um filho, poderia levá-la para sempre com ele. Como este objeto se transformou tão rapidamente? Este objeto nunca existiu: ele foi criado na medida em que o enunciado poderia ser dito.
Na medida em que era possível falar sobre um tipo de abuso masculino (que deve fato existe e o objetivo desta coluna não é negá-lo), o objeto foi criado para que o enunciado pudesse ser executado. Este texto tem como único objetivo demonstrar essa faceta do discurso da internet: sua vontade incessante de criar seus objetos na medida em que seus enunciados possam ser ditos. Esta característica, aliás, não é só do discurso da internet, é do discurso em geral, mas esta situação específica permite visualizar como este mecanismo acontece.
Pode-se vê-lo em outro texto. Desta vez, no artigo “Homem: sua declaração pública de amor não é fofa“, do blog Deixa de Banca.
De fato, a pessoa que escreveu este texto entendeu que a coluna de Duvivier era uma propaganda, no entanto, não foi suficiente saber disso, era necessário demonstrar como a narrativa de Duvivier apagou a existência de Falcão. Nós temos aqui dois conceitos: narrativa e invisibilização. O objeto passou a existir: o texto de Duvivier é uma maneira de mostrar pro mundo como homens, historicamente, são os donos da narrativa (e de fato são, mas você entendeu que o ponto é o nascimento do objeto na medida em que os enunciados precisam ser ditos, correto?).
O texto termina caminha com a seguinte declaração,
Tudo isso pode muito bem ser fato, e provavelmente é; a questão é anterior a Gregório e o relacionamento dele, e ele deveria ter consciência disso. Homens jogando sob os holofotes o amor que sentem e, ironicamente, apagando a existência da própria mulher que despertou esse sentimento é uma narrativa gasta que ainda nos emociona. E isso precisa parar.
Essa narrativa horripilante faz Drake se sentir no direito de entregar um VMA para Rihanna e acreditar que a coisa mais relevante a ser dita é uma declaração sobre o quanto ele a ama desde quando ele era um feto.
Gregório é o responsável direto, por ser homem, pelo apagamento da existência feminina e, por ser este responsável direto ele, como homem, “deveria ter consciência disso”. A essência que está em Gregório neste texto cumprimenta a essência que está em ambos no status exibido acima.
Este caso é um exemplo, no entanto, este mecanismo não é raro. Perceba em meu texto sobre a apropriação cultural, leia os textos linkados e veja se não há o nascimento do objeto na medida em que os enunciados precisam ser ditos.
A pauta Duviver deveria se torna um momento para entender como funciona esse discurso específico da internet. Usemos assim, pois assim ela valerá algo.
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Aproveite e leia minha opinião sobre local de fala e entenda como o conceito de essência permeia o discurso da internet, veja aqui.
Já sou velho, mas olho para o mundo a partir de seu ineditismo, nunca sob o ranço interminável dos anciãos.
Cara, como você é chato ¬¬
Obrigado, você também!
“A internet produz seus intelectuais como o intestino produz suas fezes” já inicia o texto muito bem! Obrigada por tais apontamentos. Eu me sinto meio alienígena por fora das coisas que acontecem virtualmente, não sabia dessa coluna e muito menos quem era Clarice Falcão e esse rapaz. Parabéns pelo site e a todos colunistas.
Grande abraço!
Esses discursos de militantes são medonhos e, com o tempo, as pessoas que os endossam vão perdendo a capacidade de entender as coisas mais óbvias e só enxergam nesses termos pobres que esses grupos colocam.
Bom texto, Valter.
Obrigado, grande abraço!