Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe![1]
Um caminho sem fim. Mesmo sendo situado entre os estados da Bahia e de Minas Gerais, com um misto de locais reais e frutos da imaginação épica de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas prevalece a uma simples narrativa a respeito da vida sertaneja, a obra é uma arqueologia do Ser, relacionado a todo o mundo do qual este toma conhecimento durante a vida.
Rosa segue uma tradição modernista, difundida a partir de James Joyce e Virginia Woolf, de buscar pelos instrumentos populares que formam a base estrutural da cultura. Dialetos locais, trejeitos e crendices, como Mário de Andrade tornou popular na prosa com Macunaíma, muito mais do que apenas constituir diálogos crédulos, essa construção transforma a elaboração ortográfica, fazendo o questionamento de sua autoridade como base elementar narrativa.
Claro que o autor antes disso busca por uma noção linguística própria, mas existe a priorização da dúvida, da incerteza factual, do suporte aos devaneios. Pelo seu conhecimentos de muitas outras línguas além do português (Guimarães Rosa falava Alemão, Francês, Inglês, Russo e alguns outros idiomas), foi cabível a ele explorar um campo desafiador, a criação de uma dialeto único, que mistura muitas adaptações do português e das outras línguas, tudo em virtude do ofício de se contar uma história.
A respeito disso, Rosa tinha pulso firme em dizer que “não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filologia, ciência linguística, foram inventadas pelos inimigos da poesia.”[2] Em Grande Sertão: Veredas, o autor deixa claro que qualquer tentativa de amparo que o leitor procure em uma fonte filológica, resultara apenas em perda de tempo. A língua passa do signo e se torna o Ser.
Talvez por isso, a viagem ao mundo desta obra seja tensa quando se percorre as primeiras cinquenta páginas, só que uma vez dentro dela, a leitura se torna uma viagem híbrida e muito profunda, invertendo o materialismo e a metafísica em cada particularidade narrativa.
Riobaldo, personagem principal dessa história, já se apresenta ao leitor como uma vitima da incógnita que é a vida. O antigo Jagunço narra sua trajetória pelos sertões, tendo como acompanhamento principal o conceito da dúvida. Em contraste com o receptor, que se mantém mudo às suas palavras, Riobaldo se desconcerta, tenta às vezes invocar uma certa formalidade, desculpar-se ou mesmo confrontar esta figura, que com o passar do livro é possível entender ser de uma posição social mais elevada que o protagonista. É uma espécie de Objeto posto paralelo à simplicidade de suas ações, o qual torna a trajetória de Riobaldo sempre intensa.
Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada Vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que fizeram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.[3]
Os discursos de Riobaldo mostram as características essenciais da história oral, como os elementos particulares do uso dessa fonte para resgatar a memória, pois ela é “um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia.”[4]. O resgate feito por Riobaldo através das situações de sua vida, se faz entender muito do que cada individuo representa para a coletividade social.
A estranha relação que o protagonista revela ter com a figura do demônio, já nas primeiras páginas, talvez seja a maior dúvida que mova a história. Para Riobaldo, o Diabo é algo que se espreita em quase toda a esquina, podendo estar sempre presente nas ações de cada um. Ele próprio se, vê em muitos momentos, próximo à sua presença, em situações das quais uma tensão o faz questionar suas atitudes.
A figura do demônio cristão é uma abstração da dúvida constante em Grandes Sertão, assim como para Feuerbach a razão e a essência do homem são movidas para um outro Objeto (Deus). Nos momentos mais derradeiros, como quando Riobaldo se torna líder de seu grupo de jagunços, O “Urutu Branco”, ali muitos de seus devaneio a respeito de como se impor como uma figura de liderança são filtradas pela figura do diabo.
Um outro filtro de sua insegurança se mostra na figura de Diadorim, cujo o nome verdadeiro é Reinaldo, amigo de infância de Riobaldo e companheiro na vida de Jagunço. Por meio de seus diálogos e interações com ele, Riobaldo se mostra conflituoso, sente uma atração por ele que não consegue explicar, se repreendendo, muitas vezes imaginando a possibilidade de algo mais, que logo retorna ao que acha sensato. Diadorim, em muitas ocasiões, capta a insegurança do protagonista ou ele mesmo a projeta em seu amigo quando está por perto.
Se descobre que na verdade Diadorim era uma mulher, após morrer lutando com Hermógenes, traidor dissidente do grupo de Riobaldo. A implantação desse personagem como a materialização da dúvida, nesse momento, se torna completa.
Nesse local, do qual as características principais da sociedade recém-industrial ainda não se encontravam, as questão sociais se tornam embates discursivos, pequenos rascunhos e brisas de um modo de vida tão distante para os viventes do sertão.
Quando o grupo de Riobaldo se reúne para discutir qual decisão tomar a respeito de um líder inimigo capturado, Zé Bebelo, surge aos presentes por Titão Passos a dúvida da emulação do Estado como instituição julgadora, e qual seria o peso moral de se realizá-la, pois como Riobaldo ressalva: “antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.”[5] Quais sãos as consequências de reproduzir o discurso da justiça?
Sem querer ofender ninguém – vou afiançando. O que eu acho é que é o seguinte: que este homem não tem crime constável. Pode ter crime para o Governo, para delegado e juiz-de-direito, para tenente de soldados. Mas a gente é sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis vir guerrear, veio – achou guerreiros! Nós não somos gente de guerra? Agora, ele escopou e perdeu, está aqui, debaixo de julgamento. A bem, se, na hora, a quente a gente tivesse falado fogo nele, e matado, aí estava certo, estava feito. Mas o refrego de tudo já se passou. Então, isto aqui é matadouro ou talho?… Ah, eu, não. Matar, não. Suas licenças…”[6]
A discussão estabelece uma crítica ao sistema de poder do aparelho social, como Foucault fez ao discutir a justiça popular com militantes maoistas em 1968. Não é dever do Jagunço reproduzir um tribunal, ferramenta do poder estatal, para condenar seus criminosos, mas cabe aos próprios jagunços realizarem uma ação orgânica, de acordo com a sua forma de vivência, pois “a decisão delas (pessoas) não é uma decisão de autoridade, quer dizer, elas não se apoiam em um aparelho de Estado que tem a capacidade de impor decisões. Elas as executam pura e simplesmente.”[7]
Embates nessa terra fantástica moldam o indivíduo em Grande Sertão: Veredas, situações que passam da convivência com o próximo, que se envolvem na concepção do que é humano, além do implícito. As palavras que constituem uma metafisica introspectiva, elaboram um novo sentido para as relações sociais, palavras essas que mostraram que “Viver é muito perigoso.”[8], como sempre será a Vereda colossal que é a vida.
Referências
[1] ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro. 1994. P 134.
[2] BRAIT, Beth. Literatura Comentada: Guimarães Rosa. Editora Abril, São Paulo, 1982, p 102
[3]ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro. 1994. P 132.
[4]LE GOFF, Jacques. História e Memória. Editora Unicamp, São Paulo, 1990. p 250
[5]ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro. 1994. P 376
[6]ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro. 1994. P 377
[7]FOUCAULT, Michel. Sobre a Justiça Popular IN Microfísica do Poder. Roberto Machado Org. p 26
[8]ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro. 1994. P 439
Dissonante desde o momento em que eu bater na sua bigorna.
Escritor do acaso. Na vida amarga, que horas apodrece mais rápido mas também estabiliza no prazer.
Gostei!
Muito obrigado!! 🙂
Também gostei da contextualização e analogias.Infere-se pelo texto, bem escrito, a importância em amplos sentidos da obra de Rosa.
Muito obrigado pelos elogios Leandro! 🙂
Salve, Lucas Silva.
Tudo bem? Espero que sim.
Olha, o nome verdadeiro de Diadorim não é Reinaldo. O próprio personagem Diadorim, em uma passagem de GS:V, confidencia a Riobaldo que o seu nome Verdadeiro é Diadorim. Na edição da Nova Fronteira, está na página172: — ” Pois então: o meu nome, verdadeiro, é Diadorim… Guarda esse meu segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar. digo e peço, Riobaldo…”. No finalzinho do livro, saberemos inclusive (segue spoiler a partir daqui), Diadorim é como um codinome, um “vulgo” para Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins.
Grande abraço e viva Guimarães Rosa!!!!
Donizete Ribeiro