Como a maioria dos escritores do chamado boom da literatura latino-americana, o peruano Mario Vargas Llosa entrou nos anos 1960 como um socialista convicto. A Revolução Cubana, em 1959, fora vista por escritores como ele e o colombiano Gabriel García Márquez como o grande acontecimento político da região no século XX, e quiçá um dos episódios mais importantes da história da América Latina. O encanto, porém, durou pouco: ao longo daquela década, Llosa foi se tornando crítico do governo revolucionário cubano ao mesmo tempo em que se inclinava para um liberalismo cuja referência encontrara nas leituras do filósofo espanhol José Ortega y Gasset.
A virada definitiva não poderia ser mais simbólica: em fevereiro de 1976, durante uma sessão de cinema na Cidade do México, ele esbofeteou García Márquez – já próximo de Fidel Castro e responsável pela recém-criada Prensa Latina – no rosto. Outrora amigos íntimos, eles não voltariam a se falar nunca mais.
Nessa época, A Rebelião das Massas, publicado como livro por Ortega y Gasset em 1930, em Madri, na Espanha (a obra começara a ser feita em 1926 por meio de artigos escritos no jornal espanhol El Sol, onde ele trabalhava como jornalista), já era mais famosa do que o seu autor, que morrera em outubro de 1955. Um ano depois do soco de Llosa em García Márquez, o filósofo espanhol Julián Marías escreveu um prefácio à uma nova edição dizendo que ali estava uma das obras mais relevantes do século XX – e agregava: “Yo diría que también de los más malinterpretados”.
Miguel Farías, em um artigo intitulado Sobre Ortega y la lectura de La Rebelión de las masas a propósito de dos ediciones de su obra e publicado em 2003 na revista espanhola Otro Lunes, parece escancarar um desses mal-entendidos: o de que, ao falar sobre a existência de uma “massa rebelde”, Ortega y Gasset estaria se referindo em realidade à classe trabalhadora espanhola do começo do século XX, que começava a ter voz no contexto da Segunda República Espanhola (1931-1939). É uma confusão comum porque muitas leituras se afiam ao exemplo de rebeldia que o autor enxergou no sindicalismo francês como se ele fosse o único objeto de sua crítica, o que não é verídico porque, “en distintas ocasiones Ortega los desautoriza proponiendo una imagen más ‘universal’, menos ‘concreta’” da figura de massa.
De fato, Ortega y Gasset esclarece logo no primeiro capítulo que “a divisão da sociedade em massas ou minorias excelentes não é […] uma divisão em classes sociais, mas em classes de homens, e não pode coincidir com a hierarquização em classes superiores e inferiores. […] Dentro de cada classe social há massa e minoria autêntica” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 82 grifos meus). Não é menos verdade, porém, que o filósofo considerava ser mais fácil encontrar “indivíduos sem qualidade” nas classes inferiores, assim como grandes homens nas classes superiores – e nisso sua filosofia, além de deixar de ser reflexão concreta para ser juízo de valor, constrói uma ferramenta conceitual que estabelece divisões sociais a partir das posições de classe, uma estratégia comum dos estratos superiores intelectualizados, como argumenta Pierre Bourdieu (2006).
Julián Marías, porém, pode ter colaborado para as confusões interpretativas que rodeiam até hoje o livro de Ortega y Gasset, como a leitura que foi feita de A Rebelião das Massas no Brasil dos últimos anos, em que houve uma ascensão de grupos conservadores na sociedade suficiente para transbordar para a política institucional. Teólogo além de filósofo, ele é autor de A Perspectiva Cristã, livro de 1999 que hoje é difundido à exaustão em fóruns da direita conservadora brasileira. Como Marías participou de cursos que Ortega y Gasset ministrou na Espanha nos anos 1930 – há quem diga que foi seu mentor –, a associação dos pensamentos entre ambos parece natural. A Rebelião das Massas, que hoje também é compartilhado por alunos de Olavo de Carvalho nas redes sociais e disponibilizado em sites e blogs nomeadamente conservadores, como o Terça Livre, além de ser lido por autores como Reinaldo Azevedo (ele escreveu em 2017 que é seu “livro de cabeceira”), no entanto, possui argumentos que, se lidos com acuidade e honestidade intelectual, são na verdade caros a essas posições – especialmente no Brasil de 2018-2019. Três deles serão expostos aqui.
A violência como norma
O primeiro deles serve como base para todo o pensamento do filósofo tanto em A Rebelião das Massas como em seus demais livros e ensaios: a crítica à violência como norma. Ortega y Gasset diagnosticava em 1926 que, pela primeira vez na história da Europa, um tipo específico de ator público assumia o controle da sociedade: o homem-massa, em cuja estrutura psicológica se encontravam duas concepções vulgares da vida – a de que a existência humana não necessitava mais de esforço para ser praticada, de que os limites haviam sido superados pelos séculos anteriores, dos quais ele era um herdeiro desleixado, e a de que, por causa disso, ele sentia-se intelectual e moralmente completo, sendo incapaz de escutar razões que não as suas próprias. Esse “homem vulgar”, que a história sempre havia relegado à obediência e que agora estava à frente da Europa, resolvera agir no mundo por meio da “ação direta”, como ele via nos fenômenos do sindicalismo francês e do fascismo italiano – era o “garoto mimado da história humana” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 173) que andava por toda a parte impondo sua “barbárie íntima” (idem).
A complexidade do conceito de homem-massa acendeu debates em várias partes do Ocidente no futuro imediato à publicação do livro, quando da ascensão do nazi-fascismo no continente e da Segunda Guerra Mundial, e até depois, quando do retorno de seu pensamento à arena online de discursos políticos no Brasil e em outros países. As esquerdas, obviamente, torceram a boca para o pessimismo de sua filosofia em relação às hierarquias sociais – que para ele são ontológicas em qualquer sociedade –, e acreditaram que, quando Ortega y Gasset falava do homem-massa, se referia apenas à classe trabalhadora, enquanto as direitas conservadoras preferiram se atentar apenas à sua teoria da história.
O homem-massa é, para o autor, uma postura no mundo, uma forma de ser, um saber de si que Ortega y Gasset julga equivocado e assim, longe de se referir a classes sociais, propõe analisar sua psicologia. “Por massa […] não se entende especialmente o operário; não designa aqui uma classe social, mas uma classe ou um modo de ser homem que hoje está em todas as classes sociais” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 186, grifos meus). Grande numericamente nos centros urbanos europeus, a massa na qual se encontrava esse novo ator havia tomado o poder, e o problema desse diagnóstico era que ela tinha resolvido governar mundo sem ser capaz, sobrando-lhe só a violência como instrumento:
“Ter uma ideia é crer que se possuem as razões dela, e é, portanto, crer que existe uma razão, uma orbe de verdades inteligíveis. Idear, opinar, é uma mesma coisa como apelar a tal instância, submeter-se a ela, aceitar seu código e sua sentença, crer, portanto, que a forma superior da convivência é o diálogo em que se discutem as razões de nossas ideias. Mas o homem-massa sentir-se-á perdido se aceitasse a discussão, e instintivamente repudia a obrigação de acatar a essa instância suprema que se acha fora dele. […] Detesta-se toda forma de convivência que, por si mesma, implique acatamento de normas objetivas, desde a conversação até o parlamento, passando pela ciência. Isso quer dizer que se renuncia à convivência da cultura, que é uma convivência sob normas, e retrocede-se a uma convivência bárbara” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 146, grifos meus).
O oposto da violência, para Ortega y Gasset, poderia ser encontrado na essência do homem europeu: aquela liberdade que filósofos como John Stuart Mill tinham exaltado no liberalismo. Nesta forma política, o diálogo, a convivência e a aceitação do outro estavam impregnados em instrumentos como a razão, os trâmites, a justiça e as normas, expressões de uma “suprema generosidade” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 149) antinatural que os seres humanos haviam alcançado na organização de suas sociedades em contraposição à força, à barbárie e a incivilidade. Mais do que o liberalismo, portanto, o autor de A Rebelião das Massas acreditava que ele precisaria ser democrático – leia-se progressista.
“O liberalismo é o princípio de direito político segundo o qual o poder público, não obstante ser onipotente, limita-se a si mesmo e procura, ainda à sua custa, deixar espaço no Estado que ele impera para que possam viver os que nem pensam nem sentem como ele, quer dizer, como os mais fortes, como a maioria. O liberalismo – convém hoje recordar isto – é a suprema generosidade: é o direito que a maioria outorga à minoria e é, portanto, o mais nobre grito que soou no planeta. Proclama a decisão de conviver com o inimigo; mais ainda, com o inimigo débil. Era inverossímil que a espécie humana houvesse chegado a uma coisa tão bonita, tão paradoxal, tão elegante, tão acrobática, tão antinatural. Por isso, não deve surpreender que tão rapidamente pareça essa mesma espécie decidida a abandoná-la. E um exercício demasiado difícil e complicado para que se consolide na Terra” (idem)
E sobre o liberalismo em oposição à barbárie do homem-massa, ele diz que:
“Trâmites, normas, cortesia, usos intermediários, justiça, razão! De que veio inventar tudo isso, criar tanta complicação? Tudo isso se resume na palavra ‘civilização’, que, através da idéia de civis, o cidadão, descobre sua própria origem. Trata-se com tudo isso de fazer possível a cidade, a comunidade, a convivência. Por isso, se olhamos por dentro cada um desses instrumentos da civilização que acabo de enumerar, acharemos uma mesma entranha em todos. Todos, com efeito, supõem o desejo radical e progressivo de cada pessoa contar com as demais. Civilização é, antes de tudo, vontade de convivência. É se incivil e bárbaro na medida em que não se conte com os demais. A barbárie é tendência à dissociação. E assim todas as épocas bárbaras têm sido tempo de espalhamento humano, população de mínimos grupos separados e hostis” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 148)
Ortega y Gasset falava tendo como óbvio ponto focal seu próprio habitus de classe, e nisso – para dar um exemplo – se assemelhava à postura que Raymond Williams (2001) encontrou nos românticos britânicos da metade do século XIX. Conhecedores da situação da classe trabalhadora na Inglaterra das cidades industriais, obrigada a longas jornadas de trabalho e vivendo em condições degradantes de moradia, romancistas como Charles Dickens viam nos operários homens afetuosos e honestos, mas desorganizados e ingênuos, cuja única possibilidade de melhora de vida não estava em sua chegada ao poder – como vociferavam os novos sindicatos – mas em uma “aristocracia ilustrada” consciente de seus privilégios. Elizabeth Gaskell, autora de Mary Barton, de 1848, é uma demonstração de como as classes altas inglesas da época, ainda que “piedosas” com a degradação da vida dos trabalhadores, também temiam sua “violência” como instrumento de transformação da estrutura social.
O filósofo espanhol, da mesma forma, prognosticava uma sociedade governada por “elites inteligentes”, distintas da massa rebelde, que fossem capazes, nas palavras de Farías, de idealizar, liderar e executar “un proyecto común de sociedad correctamente ajustada: unos mandan y otros obedecen”.
Críticas à parte, o argumento central de Ortega y Gasset é um ataque conceitual e moral a várias facetas da parcela conservadora da direita brasileira atual – que o cultua. A primeira é ao movimento monárquico que, em uma crescente desde os protestos contra a então presidenta Dilma Rousseff, a partir de 2015, ganhou materialidade no atual governo por meio de ideias, prestígio e até cargos eletivos: Luiz Philippe de Orleans e Bragança, sobrinho de Bertrand Maria José Pio Januário Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orleans e Bragança, que seria o imperador do Brasil em caso de uma restauração, é deputado federal pelo PSL de São Paulo.
A segunda é ao seu comportamento violento na arena pública durante as eleições presidenciais do ano passado, cujo ápice de sua expressão foi quando o então candidato a deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL-RJ) quebrou uma placa de rua que fazia referência à vereadora Marielle Franco – assassinada no Rio de Janeiro em março do ano passado – durante um evento de sua campanha. A placa havia sido colocada em um logradouro do bairro da Cinelândia por membros do PSOL, partido de Marielle. Eleito com mais de 140 mil votos um mês depois, Amorim ressimbolizou o ato emoldurando a peça quebrada e pendurando-a no seu novo gabinete – exatamente a expressão da violência como norma.
A terceira faceta atacada pelo argumento de Ortega y Gasset são as posições e proposições violentas e “incivilizadas”, nos seus termos, que se expressam na figura do hoje presidente da República, Jair Bolsonaro. Para não citar ataques a grupos minoritários da sociedade na imprensa, ele iniciou, ainda quando parlamentar, um movimento de exaltação à figura de Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel do Exército que ficou conhecido como um dos principais torturadores do período militar brasileiro (1964-1985). Frei Tito, uma das vítimas, escreveu em um relato de 1970 que, antes de um interrogatório, Ustra lhe afirmou que ele iria conhecer a “sucursal do inferno”. O Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), que ele chefiou entre 1970 e 1974, matou 47 pessoas, segundo a Comissão da Verdade. Para além das declarações, Bolsonaro venceu a campanha eleitoral de 2018 prometendo que, se eleito, tentaria modificar as regras da Lei do Desarmamento para facilitar o acesso dos cidadãos a armas de fogo. Entidades nacionais e internacionais consentem que a medida tenderá a recrudescer a violência na sociedade brasileira. Ainda assim, o projeto avançou por meio de um decreto que o presidente assinou em fevereiro.
O sábio-ignorante
Em seu artigo na Otro Lunes, Miguel Farías relaciona a “filosofia social” de Ortega y Gasset à sociologia de Émile Durkheim — especialmente a Divisão do Trabalho Social, de 1893. Segundo sua interpretação, o filósofo via na solidariedade orgânica uma chance fundamental em que, se alcançada em sociedades industriais como da Europa do começo do século XX, marcadas pelo anonimato e pela impessoalidade, seria possível coesão social por meio de uma divisão do trabalho que fosse além de sua pretensa função econômica. Dessa forma, Farías nota que a ascensão das massas não era apenas um alerta negativo de Ortega y Gasset, mas também “un anuncio de una nueva era histórica, si las élites de las viejas democracias liberales son capaces de transformarse en esa ‘nobleza’ de nuevo cuño que requieren los tiempos: […], ser guía de las masas, convencer a las masas de su papel proactivo en la consecución de un proyecto común, colectivo, que las élites se encargarían de diseñar”.
A interpretação de Farías é possível, mas em A Rebelião das Massas Ortega y Gasset talvez tenha preferido expor os problemas dessa divisão do trabalho marcada pelo fenômeno do especialismo. Um deles tinha ligação instantânea com o diagnóstico do homem-massa: seu caráter de sábio-ignorante.
O sábio-ignorante era produto da organização social vintecentista, porque fora nesse século que a ciência passou a abranger (e a depender de) um maior número de pessoas para operar. Nesse movimento, ela se recortou progressivamente em áreas tão distintas que, em dado momento, se tornou impossível construir uma interpretação geral da realidade – como faziam os intelectuais “pré-modernos” –, e setores científicos passaram a ser completamente estranhos uns aos outros. Assim, o cientista moderno
“É um homem que, de tudo que precisa saber para ser um sujeito sensato, só conhece uma determinada ciência, e mesmo desta ciência só conhece bem a pequena porção em que é um investigador ativo. Chega a proclamar como uma virtude não se interar de tudo que esteja fora da estreita paisagem que cultiva especialmente, e chama de diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 188)
O fenômeno do especialismo já vinha sendo criticado de várias formas desde antes dos anos 1920 e ganharia expressão popular por meio do filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin (1936), mas Ortega y Gasset via nele um problema mais grave. Sendo o indivíduo moderno um especialista em sua área de conhecimento, um “indivíduo parcialmente qualificado”, ele assumia aquela postura típica de segurança de si do homem-massa e, de posse dela, se colocava em todos os outros debates existentes dos quais, recortados pela própria ciência, ele nada sabia. Se a característica desse sujeito é “não querer dar razões nem querer ter razão” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 146), o sábio-ignorante
“… se trata de um senhor que se comportará em todas as questões que ignora não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem é um sábio em sua questão especial. […] Ao especializá-lo, a civilização o tornou hermético e satisfeito dentro de sua limitação; mas é essa mesma sensação íntima de domínio e valor que o levará a querer predominar fora de sua especialidade” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 190 e 191, grifos meus)
O sábio-ignorante, para o filósofo espanhol, é um homem médio entre a ignorância e o conhecimento que, por meio de sua posição especializada, constrói idéias taxativas sobre o mundo e não consegue escutar nada nem ninguém que não a sua própria opinião. Em sociedades em que a violência é a norma, em que o convívio com os outros por meio do diálogo é a última ratio, “já não é tempo de escutar, mas ao contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 144). Portanto, em todas as questões da vida pública era fácil encontrar as análises grosseiras do sábio-ignorante, um “cego e surdo impondo suas opiniões” (idem). Neste diagnóstico aparecem tanto a preocupação do filósofo com a situação do saber e do fazer científico de sua época como com uma civilização idealizada por ele a partir da tolerância e aceitação do outro – e que na Europa da década de 1930 estava longe de se realizar.
Ortega y Gasset escreveu isso sete décadas antes do surgimento e da expansão das redes sociais virtuais que, como afirmou o escritor italiano Umberto Eco em 2015, sem nenhuma preocupação com o tom das palavras, “deram voz a uma legião de imbecis”. De fato, delas saíram questões controversas da contemporaneidade, mas que demonstram como suas preocupações eram legítimas: o debate sobre o formato do planeta Terra, a difusão em grande escala de fake news, o crescimento do ódio na Internet e seu transbordamento para a realidade em vários países e a capacidade de manipulação de dados e de informações para fins políticos e econômicos afirmam a atualidade de A Rebelião das Massas para além das divisões dos espectros políticos. O que ele apontava é observado agora, em que a última atitude de uma direita em ascensão e no controle do Estado é “escutar” críticas possíveis.
Se por um lado, a colocação de mais gente na arena pública que as redes sociais operaram é um dos últimos fenômenos alcançados pelas democracias, por outro é uma das armas de sua própria destruição, porque permitiu, nos termos de Ortega y Gasset, que os sábios-ignorantes não apenas expandissem sua capacidade de opinar sobre o que não sabem, como lhes deu poder para arregimentar outros da mesma estirpe e aumentar sua capacidade de ação. Em outras palavras, o filósofo estava dizendo que um homem medianamente qualificado, seguro de si mesmo o suficiente para não escutar, só falar e fazer, era um perigo para a vida civilizada moderna. E se essa crítica pode ser usada pelos conservadores em relação aos espectros que se lhe opõem, como as esquerdas, cabe perfeitamente também para si mesma, já que até para cultuar a história em detrimento ao futuro é preciso algum conhecimento correto dela.
“Brasil acima de tudo…”
José Ortega y Gasset provavelmente seria um dos maiores opositores do slogan que fez parte da campanha vitoriosa de Jair Bolsonaro no ano passado e que hoje é repetido à exaustão por ele, sua equipe, seus eleitores e apoiadores virtuais. Não apenas por considerar qualquer nacionalismo inútil, mas também porque seu grande objetivo em A Rebelião das Massas era mostrar como ele era um fenômeno improdutivo para a Europa da sua época.
A segunda parte da obra é inteiramente dedicada a explicitar o problema e apresentar sua solução – e tomaria demasiado tempo detalhá-los aqui. De forma breve, Ortega y Gasset notava que, depois de séculos do exercício de domínios diversos sobre o mundo, da moral à política, a Europa deixara de ocupar essa posição sem que lhe houvesse um substituto. Os Estados Unidos não eram uma alternativa possível porque, para o filósofo, eram uma cópia além-mar de todas as idéias, princípios e valores europeus dos séculos passados, e não uma invenção autóctone. O enfraquecimento europeu, segundo ele, era consequência justamente do crescimento dos sentimentos nacionais nos países do continente que, fortes como nunca, bloqueavam uma união que poderia promover a restauração do poder da Europa sobre o globo.
O nacionalismo é um traço elementar das direitas, em contraposição à postura internacionalista das esquerdas, principalmente aquelas de formação marxista, para quem o “trabalhadores do mundo, uni-vos!” do Manifesto Comunista segue sendo um referencial teórico e prático.
No entanto, mais do que obstáculos, esses nacionalismos originavam-se de interpretações equivocadas da ideia de Estado-nação. Ortega y Gasset via nessa forma de Estado o motor ideal do liberalismo que afirmava: ao contrário de outras organizações estatais da história, ele era o único que dependia apenas da convivência de homens diferentes com base em um objetivo comum e da adesão deles a esse projeto. Portanto, se em Thomas Hobbes o Estado aparecia como fruto de um contrato produzido e mantido pela pressão violenta de uma instância superior grupos díspares, forçando-os a conviverem, neste caráter moderno
“…o vigor estatal nasce da coesão espontânea e profunda entre os ‘súditos’. Em realidade, os súditos já são o Estado, e não o podem sentir — isso é o novo, o maravilhoso, da nacionalidade” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 259)
Dessa forma, raça, “sangue”, localização geográfica, classe social e língua são elementos secundários para a existência de um Estado-nação. O que importa é o corpo político e o que o determina é a existência de sujeitos políticos dispostos a aderir a uma empresa comum. Nas palavras do próprio filósofo, “não o que fomos ontem, mas o que vamos fazer juntos amanhã nos reúne em Estado” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 254). É por isso que, no limite do argumento, o filósofo chega a dizer que as fronteiras nacionais são flexíveis: elas existem apenas para delimitar a união momentânea – a última – de sujeitos políticos que foi conquistada. Seja como for, seu objetivo está sempre em vista da Europa, e ele não deixa de anunciar, quase no final da obra, que havia chegado a “ocasião em que o continente poderia se converter em ideia nacional” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 262).
Nada seria mais caro à direita brasileira em 2019 do que essa afirmação do livro que, no site Terça Livre, por exemplo, aparece como representante de uma “autêntica filosofia”. Os monarquistas são saudosos de um tempo em que o Brasil tinha um império escravocrata, não um Estado-nação feito por sujeitos políticos; os conservadores usam a nacionalidade para afirmar supostas purezas sociais – há alguns movimentos regionais que pedem o reconhecimento do “ser paulista” ou a independência da região Sul –; e os liberais exaurem símbolos da nação, como as cores da bandeira representadas na camiseta da Seleção Brasileira de futebol, para acusar quem não está em concordância com eles de ser pouco patriota (“A nossa bandeira jamais será vermelha”). Os nacionalismos, para Ortega y Gasset, não são nacionalizadores, como deveriam ser, porque são “exclusivistas, não inclusivistas” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 266). Sem contar a dificuldade de aceitação que grande parte desse espectro tem em relação aos imigrantes – como o próprio presidente Jair Bolsonaro já expressou em diversas oportunidades.
Os fluxos migratórios, aliás, são uns desses aspectos que dificultam a aceitação de Ortega y Gasset pela atual direita europeia, que jamais consentiria com afirmações como “o Estado consiste na mescla de sangues e línguas. É mestiço e plurilíngue” (ORTEGA Y GASSET, 2016, p. 236) que aparecem em A Rebelião das Massas. No entanto, a leitura do livro em seu continente aparentemente é mais cuidadosa e honesta.
A filosofia de Ortega y Gasset é repleta de ferramentas e pressupostos ricos para a interpretação da realidade da sua época – e não à toa ele previu a barbárie do nazi-fascismo e do regime franquista na Espanha ainda em seus germes – e para a de agora, como sua análise da expansão das possibilidades vitais da vida. Por outro lado, tem bases filosóficas contaminadas por juízos de valor que correspondem, como mostraria Bourdieu, à limitação imposta por sua posição de classe. Longe de ser apenas pessimismo intelectual, sua conclusão de que as sociedades são ontologicamente hierarquizadas e que, por isso, o ideal é que “elites inteligentes” devem controlá-las – e que a Europa é a “civilização superior” que precisa governar o mundo – é a única possível para um filósofo europeu membro das classes superiores que encontrou na filosofia uma forma de legitimar as estruturas sociais desiguais – e assim preservar sua própria posição.
É jornalista e cientista social. Atualmente é mestrando do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Escreve também no blog Arimandia.
Primorosíssima sua análise, Vinícius! O alcance de sua leitura crítica ultrapassa muito o que majoritariamente se pública sobre temas congêneres no Brasil. Seus discurso é tão lúcido e sério quanto o do Jessé Souza.
Excelente texto!! Quando vejo a direita neo fascista brasileira citar Ortega y Gasset como se este corroborasse a barbárie pregada por loucos como Olavo de Carvalho e seus seguidores, me dá um tremendo mal estar. Esse texto diz o óbvio e no tempo que vivemos dizer o óbvio é prestar um grande serviço ao país. Parabéns!
sim, preciso desta referencia ?