Índice
Introdução
Em seu ensaio Literatura e Personagem, Anatol Rosenfeld se dedica a identificar as características produção literária ficcional que a distinguem de outros tipos de textos, como artigos científicos, reportagens, ensaios de filosofia, etc.
De início, Rosenfeld nos apresenta a ideia de que a obra literária, no sentido de Belas Letras, pode ser assim categorizada não apenas pelo seu valor estético, mas também pelo seu caráter ficcional. Obras que possuem alto valor estético mas não são ficcionais, como os sermões do Padre Vieira, conjuntos de cartas pessoais de grandes autores, etc., são frequentemente colocadas ao lado de peças de ficção quando se considera o que é literatura.
Três questões acerca do texto de ficção
Mas se a identificação do que constituiria um “alto valor estético” na obra de arte é já um problema, outro problema é o que torna um texto ficcional. Para tanto, Rosenfeld examina três questões distintivas do texto de ficção, começando pelo que chama de problema ontológico. Em qualquer texto, uma das funções das orações é a projeção de determinados “contextos objectuais”, relações entre objetos e suas características, como sua constituição ou o espaço que ocupam. Orações como “o vaso é azul”, “a menina está na praia”, nos apresentam estas relações de predicação, entre sujeitos e predicados, e tais orações são presentes em todo tipo de texto, ficcional ou não.
Também comuns a todos os tipos de texto são os efeitos de tais orações, o objeto apresentado por elas é apenas uma representação, esteja a frase presente em um texto de jornal ou em um romance. São “puramente intencionais”[1], como coloca o autor.
A diferença, porém, entre uma mesma oração em um texto ficcional e um texto não ficcional é a referência do contexto objectual produzido por ela. Uma matéria de jornal que apresente a oração “o vaso estava na mesa” faz referência a um vaso que existe na realidade, de maneira separada e independente da oração. A mesma oração em um texto ficcional não faz referência a vaso nenhum, objeto é produzido pela oração e nela se encerra. Ainda que exista uma referência direta a determinado objeto da realidade, mesmo àqueles dotados de individualidade marcante, a fundação ontológica do objeto na ficção não está na realidade, mas no texto.
A seguir, Rosenfeld apresenta a segunda questão, o problema lógico. Enunciados em textos científicos, jornalísticos, históricos, podem (e são) medidos e valorados por ideias de verdade e mentira. Um texto de física que falsifica abertamente experimentos possui problemas e é valorizado negativamente. Da mesma maneira um texto de jornalismo que minta será considerado mau jornalismo. A obra de ficção é alheia a essas considerações de verdade e mentira e não pode ser valorada por meio destas. A noção de “verdade” na obra de literatura ficcional possui frequentemente uma acepção bastante diferente, calcada na concepção aristotélica de que a ficção não tem compromisso com aquilo “que é”, mas sim com aquilo que “poderia ser”.
A verdade na ficção é então uma questão de verossimilhança. Esta não necessariamente se atém a considerações lógicas externas ao texto. Um texto ficcional que tenha como ambiente um colégio, a exemplo, pode apresentar relações genéricas realmente existentes em colégios do mundo real, afim de ancorar a ambientação em esquemas sociais “reais”, ainda que fictícios. Ao mesmo tempo, o texto de ficção pode apresentar relações e objetos dentro de relações lógicas completamente apartadas do mundo real. Obras de fantasia, por exemplo, nos apresentam mundos que, de maneira categórica, não existem. A Terra Média de Senhor dos Anéis, é um mundo inexistente na realidade. Mesmo assim, é esperado do texto ficcional um certo compromisso lógico dos contextos objectuais que esse nos apresenta. Este compromisso no texto ficcional é, portanto, dependente de uma lógica interna, enquanto o texto ficcional se ancora em uma lógica externa. Espera-se do leitor, também, que aceite que aquilo é uma produção que não poderá lhe informar sobre verdades ou mentiras, mas apenas de aparências verdadeiras ou falsas.
A terceira questão apresentada por Rosenfeld é o problema epistemológico. Aqui o autor trata da questão da personagem, que considera ser a característica mais marcante do texto ficcional. Mesmo em formas discretas, como por exemplo no “Eu Lírico” da poesia, a personagem é um objeto do texto ficcional. Ainda que a poesia apresente determinados aspectos psíquicos e sentimentais realmente existentes no autor, quem nos declama estes aspectos por meio de versos é uma personagem completamente ficcional, cuja relação com o autor e sua vida interior é indireta. Resgatando Pessoa, Rosenfeld sintetiza a questão na paráfrase do poeta que “finge mesmo a dor que deveras sente”. Mas se a poesia nos apresenta essa personagem difusa do Eu Lírico, que pode até passar impressões de se tratar da voz real do autor, outros tipos de literatura ficcional demarcam a constituição ficcional de maneira muito mais clara.
A narrativa épica é um destes casos. Segundo Rosenfeld, “é geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou não fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária”[2]. A oração “o homem estava na sala” pode ser parte de um texto ficcional ou de uma matéria de jornal, mas quando complementada com algo do tipo “o homem estava na sala enquanto pensava sobre os problemas de sua vida” leva o leitor a crer que se trata uma personagem imaginária, que não pertence ao mundo real.
Certos elementos dêiticos também distinguem personagens em textos ficcionais, como por exemplo advérbios de tempo. “Amanhã João iria à escola” é uma frase que dificilmente poderia estar em um texto histórico, mas que é uma produção extremamente genérica em um texto ficcional. Já na dramaturgia, a personagem adquire um papel ainda mais central quando da execução teatral do texto. Se na prosa épica a figura do narrador pode nos apresentar personagens com uma voz própria, no texto teatral existência da personagem é dada por ela mesma na sua existência dentro do espaço do palco.
A narração tal como a que existe em um romance se extingue, mas se mantém a apresentação da personagem como marca de existência drama. O que separa um palco montado de uma peça de teatro é justamente a aparição da personagem, cujas ações também são absolutamente essenciais para o desenrolar da peça. Se no romance é possível manter a personagem estática enquanto o texto se concentra em aspectos de ambientação, observações psíquicas e descritivas, no teatro a única maneira de desenvolver o texto é pela ação da personagem no palco.
A personagem
Por não ser constrangida pelas determinações da realidade (o problema ôntico) nem pela expectativa de produzir alguma espécie de verdade (o problema lógico), a personagem na obra de arte ficcional pode exercer o papel de agir em determinadas situações de modo exemplar, ou seja, entrar em relações cuidadosamente esquematizadas pelo autor afim de produzir efeitos específicos.
Através destas relações a personagem é capaz de revelar ao leitor determinados aspectos da vida humana que não são claros na realidade, mas que no universo ficcional podem ser explorados e trazidos à tona de maneira muito mais nítida e coerente. É a personagem, em sua gama infinita de possibilidades, que permite ao leitor experimentar as camadas mais profundas do texto ficcional, ela é que permite o acesso à imensa diversidade que a produção literária imaginária pode oferecer.
Referências
ROSENFELD, A. Literatura e Personagem. In: ROSENFELD, Anatol; C NDIDO, Antônio; PRADO, Décio de A.; GOMES, Paulo Emílio S. A personagem de ficção. 2. ed. São Paulo: 1970.
[1] Intencionalidade, na filosofia escolástica, é a capacidade da mente em produzir representações, percepções, preferências, crenças.
[2] P. 23.
Cite este artigo:
SILLOS, José. Literatura e personagem – Anatol Rosenfeld. Colunas Tortas. Acesso em [DD Mês AAAA]. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/literatura-e-personagem-anatol-rosenfeld/>>.
Graduando em letras.