O espaço urbano é lugar de contradição; é fonte de criação e decadência. Como espaço de expressão de uma civilização (no caso, capitalista), não pode ser compreendido como unidade, uma vez que a divisão de classes é característica intrínseca de tal sistema socioeconômico e pressupõe a existência de discursos antagônicos. Pressupõe a existência de uma literatura hegemônica, comercial, e uma literatura periférica.
Ora, pensar também a cultura de uma cidade como unidade, como coisa homogênea nos impossibilita perceber as contradições existentes no espaço urbano como produto das relações sociais.
O escritor e ensaísta alemão Dietrich Schwanitz, em seu livro “Cultura Geral: Tudo o que se deve saber”, define a literatura como manifestação artística que “torna dignas de nota as relações complexas existentes entre processos sociais e trajetórias pessoais dos indivíduos, dando-lhes uma face e um endereço”. No entanto, é correto afirmar que a concepção humanista de cultura, que planeia culturais apenas uma parcela de toda produção humana, somada à transformação do produto artístico em mercadoria redefiniu e precarizou as relações que caracterizam o trabalho literário como tal. A complexidade dos processos sociais perde, a cada dia mais, a sua importância: subordinada à sede de lucro do mercado editorial, a produção literária está a serviço da espetacularização do segmento.
É em meio ao caos organizacional das grandes metrópoles e em meio a precarização contemporânea da literatura em nome do lucro que surge a literatura periférica, manifestação artística de classes marginalizadas pela conjuntura do sistema. Surge como produto de resistência de uma minoria contra o discurso hegemônico instaurado por meio do aparato cultural que se apropria dos objetos e a eles dão o adjetivo de artístico em detrimento de outros.
Este uso da arte pelos aparelhos ideológicos de Estado tende a marginalizar diversas formas de expressão cultural, o que transforma a própria cultura em mercadoria e, ao mesmo tempo, retira de circulação aquilo que não pode se tornar “boa mercadoria”, ou seja, aquilo que pode ser vendido em massa e sem grandes problemas no nível discursivo em que a ideologia neoliberal que transforma os sujeitos em empreendedores de si, precariado, os constitui.
Mesmo que destinados ao ostracismo pela indústria cultural, escritores que provém da periferia, como Ferréz, Alan da Rosa, Sergio Vaz, Marcus Vinicius Faustini, Sacolinha, dentre inúmeros outros, assim como movimentos artísticos como os saraus da “Cooperifa” (encabeçado por Vaz), os do “Sarau do Binho” e o projeto “Periferia em Movimento”, ganham cada vez mais força dentro e fora das respectivas comunidades em que surgiram por apresentar trabalhos consistentes, reflexivos, incisivos, que trabalham a linguagem sem as amarras da erudição e a utilizam como um instrumento de possibilidades para quem as possibilidades são escassas.
Verdadeiros arautos da literatura, tais escritores e movimentos dão a essa manifestação artística a face e o endereço a que Schwanitz faz referência, uma vez que reivindicam identidade, voz própria e a dignidade do povo que reside nas periferias, sujeito sempre às percepções e representações mais negativas por conta da difusão de discursos contaminados pela ideologia capitalista. Tornam possível a todos os leitores a vivência de um mundo a partir de suas perspectivas e experiências cotidianas, de suas esperanças, reduzindo a distância que acarreta sérias dificuldades para o conhecimento real dos indivíduos, como dizia Gramsci.
G.U.E.R.R.A
(Ferréz)
datilógrafo
escritor do gueto
plantador de ódio,
injetor do kaos moderno
terrorista literário
de fuzil bic na mão
arma nuclear
a informação
conseguiram do povo
a desunião
50 cents de pistola na mão
Luter king morreu em vão
se for falar o que penso
tem coisa que não compreendo
Pornô mundo
Mundo pornô
Me mostra
A nudez da sua cor
amor pela quebrada
virou frase de para-choque
a ideologia tá em crise
pra quem tá em choque
o povo chora a dor, chora dor
mensageiro da mentira para senador
mas no meu peito zumbi
na mente mariguela
no punho Solano
quebrada favela
são anos de rancor em vão
chega de tiração
Deus perdoa
eu não
o pavio é fácil de acender
no clip tem tudo
que você quer ser
na rua tanta solidão
verdades são mentiras jão
anota 10 a minha nota
pro sistema hipócrita
todo mundo é fantoche,
mas eu vejo as cordas.
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O Colunas Tortas é uma proto-revista eletrônica cujo objetivo é promover a divulgação e a popularização de autores de filosofia e sociologia contemporânea, sempre buscando manter um debate de alto nível – e em uma linguagem acessível – com os leitores.
Nietzsche, Foucault, Cioran, Marx, Bourdieu, Deleuze, Bauman: sempre procuramos tratar de autores contemporâneos e seus influenciadores, levando-os para fora da academia, a fim de que possamos pensar melhor o nosso presente e entendê-lo.
Não é nada de novo! Novo é o reconhecimento e apenas! Estava mais que na hora disso ser respeitado e dado a conhecimento público. Aliás, eu diria que isso é quase uma evolução, senão uma consequência, da literatura de intervenção. É por isso que sempre “louvei”, à minha forma, o “Manifesto Pau Brasil”. Como está dito: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.” e “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como
falamos. Como somos.”. E que se fodam aqueles de hoje em dia que ainda defendem um ideal parnasiano! Seria a moldura mais importante que a fotografia?