Este é o drops #70.
Trecho de uma palestra de Richard C. Vitzthum, dada para a Associação dos Estudantes Ateístas na Universidade de Maryland, College Park, em 14 de Novembro de 1996.
O Materialismo é a mais velha tradição filosófica na civilização Ocidental.
Originada por uma progressão de filósofos Gregos pré-socráticos nos séculos V e VI a.C., alcançou sua forma clássica completa no atomismo de Demócrito e Epicuro no séc. IV a.C. Epicuro dizia que a realidade consistia em invisíveis e indivisíveis pedaços de matéria em livre movimento, chamados átomos, aleatoriamente colidindo no vazio.
Foi sobre essa hipótese atômica que o poeta romano Lucrécio escreveu a primeira obra-prima da literatura materialista em cerca de 50 a.C., o poema filosófico “De Rerum Natura”, ou, como é normalmente traduzido, “Sobre a natureza das coisas”.
No grande poema de Lucrécio nós já podemos ver uma das marcas que distingue o materialismo de qualquer outra filosofia completa produzida pela civilização Europeia antes do séc. XX: sua insistência na observação direta da natureza e em explicar tudo o que acontece no mundo nos termos das leis da natureza.
Em outras palavras, desde o começo os materialistas sempre basearam suas teorias nas melhores evidências científicas disponíveis, ao invés de em alguma “primeira filosofia” suposta, esperando para ser descoberta através de um raciocínio filosófico abstrato.
A propensão é clara na segunda obra-prima da literatura materialista, “La Systeme de La Nature” (O Sistema da Natureza), publicada anonimamente por Barão d’Holbach, a qual apareceu na França em 1770 e foi prontamente condenada pelo governo de Luis XVI. Isso significava que o carrasco oficial do Estado estava autorizado a expropriar toda cópia do livro e tê-lo literalmente cortado em um bloco de decapitação.
D’Holback baseia seu determinismo mecânico na física Newtoniana e na psicológica Lockeana, dizendo que todo evento na natureza, incluindo todo o pensamento humano e ação moral, é o resultado de uma inexorável corrente de causalidade enraizada no fluxo do movimento atômico.
Como Lucrécio, ele insiste que a realidade não é mais que matéria se movendo no espaço, como Newton teorizou em suas leis de movimento e gravidade. D’Holbach também atribui todo o pensamento à imagens impressas na “tábula rasa” da mente, ou “estado em branco”, de modo totalmente mecânico de acordo com essas mesmas leis de movimento, como Locke havia dito.
Assim também com a terceira obra-prima da literatura materialista de antes do séc. XX, a edição de 1884 de Ludwig Buchner de “Kraft und Stoff” (sem tradução em Português, mas traduzido em inglês como “Force and Matter”, ou seja, “Força e Matéria”), um dos mais lidos e influentes livros alemães do séc. XIX.
Treinado como um cientista, Buechner, como Lucrécio e d’Holbach, saturou “Force and Matter” com a melhor ciência de seu tempo, incluindo teorias e descobertas “de ponta” na física, química, geologia e biologia, a qual, é claro, incorporou a teoria da evolução recentemente publicada de Darwin.
No entanto, nem Lucrécio, d’Holbach nem Buchner alegaram que a filosofia materialista era uma ciência empírica. Todos eles perceberam que esta repousava sobre pressupostos que eram, em última instância, “metacientíficos”, embora nunca “metafísicos” no sentido Aristotélico.
Isto é, os pressupostos do materialismo alcançaram além da ciência empírica, mas nunca além da realidade física. Esses pressupostos metacientíficos eram, antes de tudo, que a realidade material ou natural formava uma continuidade material ininterrupta que era eterna e infinita.
A natureza não possuía fim ou começo. Era um eterno, auto-gerador e auto-sustentável fato material, sem qualquer tipo de barreira ou limite separando-o de um tipo não-material, não-físico, ou sobrenatural de ser.
O único ser fundamental que havia era um ser material, e algum tipo de substância natural subjacente a todos os fenômenos visíveis.
Lucrécio chamava esse fato material sem fim de “Todo”, e com d’Holbach e Buchner concluiu-se que faltava qualquer plano ou propósito e consistia de forças opostas cegamente trancadas em um auto-cancelamento, equilíbrio ou impasse cósmico em última instância.
É claro que estes pressupostos implicavam, em segundo lugar, na ausência de qualquer governo ou de gestão do universo por qualquer tipo de inteligência transcendental.
Desde o começo o Materialismo foi implicitamente ateísta, embora suas insinuações ateístas não fossem totalmente explicitadas antes que d’Holbach o fizesse em seu Sistema.
O Materialismo sempre viu o ateísmo apenas como uma consequência necessária de suas premissas, não como um fim em si mesmo filosoficamente importante.
Deuses sobrenaturais, divindades espirituais ou moralistas imateriais não poderiam, obviamente, serem levados a sério, porque tais assuntos sequer se imaginava existirem na hipótese materialista.
Em terceiro e último lugar, o Materialismo sempre assumiu que a vida é integralmente o produto de processos naturais. Todo o pensamento e sentimento humanos emergem da matriz não-viva e inorgânica da natureza física e terminam com a morte.
Lucrécio acreditava que os pensamentos e sentimentos eram literalmente compostos por uma membrana muito fina de átomos que eram descascados de objetos e recombinados no cérebro.
d’Holbach acreditava que os pensamentos e sentimentos eram o produto final de correntes de causa física enraizadas no movimento atômico. Buchner acreditava que pensamentos e sentimentos eram impulsos elétricos de alguma forma moldados pelo sistema nervoso humano em padrões coerentes.
Além do mais, embora isso não seja amplamente conhecido, tanto Lucrécio como d’Holbach teorizaram que a vida orgânica evoluiu da matéria inorgânica, ainda que não tenha sido até a defesa da teoria Darwinista de Buchner que o Materialismo pôde justificar a teoria cientificamente.
Filósosfos materialistas:
Abaixo, uma lista de alguns filósofos materialistas, acompanhada por uma breve descrição de suas contribuições:
1. Demócrito (c. 460–370 a.C.):
– Contribuições: Conhecido como o “pai do atomismo”, Demócrito propôs que tudo no universo é composto de pequenas partículas indivisíveis chamadas átomos. Seu materialismo primitivo estabeleceu uma visão do mundo em que todos os fenômenos naturais podem ser explicados por movimentos e combinações de átomos.
O materialismo de Demócrito representa uma ruptura com as tradições mitológicas e religiosas da Grécia Antiga, ao propor uma explicação puramente física e mecânica para a realidade. Demócrito concebe o universo como uma combinação de elementos materiais (átomos) que, ao colidirem e se agregarem de diferentes maneiras, dão origem a todas as formas e substâncias. Essa visão eliminava a necessidade de um propósito ou teleologia subjacente aos eventos naturais, fundamentando a ideia de que tudo ocorre por necessidade, ou seja, de acordo com leis naturais intrínsecas às propriedades dos átomos.
Além disso, o materialismo atomista de Demócrito foi fundamental na construção de uma epistemologia que valorizava o conhecimento empírico. Ele acreditava que a verdadeira compreensão do mundo derivava da observação dos fenômenos e da compreensão dos princípios que regem os movimentos atômicos. Contudo, ele também reconhecia a limitação dos sentidos humanos, distinguindo entre o que chamou de “conhecimento obscuro”, derivado dos sentidos, e o “conhecimento legítimo”, obtido através da razão e da reflexão filosófica sobre os átomos e o vazio.
A influência de Demócrito no pensamento filosófico posterior foi significativa, sobretudo na tradição materialista. Sua ideia de que a alma humana é composta de átomos leves e sutis, que se dissipam após a morte, contribuiu para uma visão não dualista da mente e do corpo, antecipando debates modernos sobre a natureza da consciência. O atomismo de Demócrito, embora suprimido pelo idealismo platônico e pelo aristotelismo por séculos, ressurgiu com força no período moderno, influenciando pensadores como Epicuro, Lucrécio e, mais tarde, filósofos das ciências naturais.
2. Epicuro (341–270 a.C.):
– Contribuições: Epicuro desenvolveu o atomismo de Demócrito e o integrou em sua filosofia ética. Ele acreditava que o prazer, especialmente a ausência de dor, era o bem supremo, e que o medo dos deuses e da morte era infundado, já que tudo na natureza, incluindo a alma, era material e perecível.
O materialismo de Epicuro é uma extensão do atomismo de Demócrito, mas com ênfase na ética e na busca pela ataraxia (tranquilidade da alma). Epicuro acreditava que os átomos, ao se moverem no vácuo, ocasionalmente desviavam de suas trajetórias (clinamen), permitindo a criação do mundo e a liberdade humana. Ele rejeitava a interferência divina nos assuntos humanos, defendendo que o universo opera segundo leis naturais. O foco de Epicuro estava em viver uma vida simples e em harmonia com a natureza, minimizando o sofrimento e maximizando o prazer.
Para Epicuro, o prazer era o bem supremo, mas ele distinguia entre prazeres naturais e necessários, prazeres naturais e não necessários, e prazeres nem naturais nem necessários, promovendo uma vida de moderação. Através dessa moderação, acreditava que se alcançava a ataraxia, um estado de serenidade inabalável. A morte, segundo Epicuro, não deveria ser temida, pois, sendo um retorno ao estado de inexistência, não poderia causar sofrimento. A filosofia de Epicuro, portanto, integra um materialismo ontológico com um hedonismo ético, buscando desmistificar o mundo e aliviar as ansiedades humanas.
Essa visão materialista, que combina uma ontologia atomista com uma ética hedonista, teve impacto significativo na antiguidade, influenciando o poeta romano Lucrécio, que divulgou as ideias epicuristas em seu poema “De Rerum Natura”. Embora a doutrina epicurista tenha sido combatida por escolas filosóficas rivais e tenha perdido força após a cristianização do Império Romano, ela ressurgiu no Renascimento, influenciando o pensamento moderno e contribuindo para o desenvolvimento da ciência e do secularismo na filosofia ocidental.
3. Thomas Hobbes (1588–1679):
– Contribuições: Hobbes é mais conhecido por seu trabalho “Leviatã”, no qual defende que tudo, incluindo o pensamento humano, é material. Ele foi um dos primeiros a propor que a mente e a consciência poderiam ser explicadas em termos de processos físicos e mecânicos.
O materialismo filosófico de Thomas Hobbes é caracterizado pela sua visão mecanicista do mundo e da natureza humana. Hobbes argumenta que tudo, incluindo os processos mentais e as emoções humanas, pode ser explicado em termos de movimento e interação de corpos materiais. Ele rejeita a existência de entidades imateriais e defende que o universo opera de acordo com leis físicas naturais. Em sua obra mais conhecida, “Leviatã”, Hobbes estende essa visão materialista à política, descrevendo a sociedade como um contrato social criado para evitar o estado de natureza, onde a vida seria “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”.
A abordagem de Hobbes desmistifica a mente humana, tratando-a como resultado de movimentos físicos no cérebro. Para ele, pensamentos, emoções e até mesmo a vontade são efeitos de estímulos externos que agem sobre nossos sentidos e são processados mecanicamente pelo corpo. Essa visão radicalmente materialista da natureza humana tem implicações profundas para a ética e a política, pois Hobbes argumenta que as leis e as normas sociais devem ser construídas para garantir a sobrevivência e o bem-estar em um mundo onde os seres humanos são movidos principalmente por interesses materiais e desejos.
Além disso, Hobbes propõe que o Estado deve ser um Leviatã, um poder absoluto capaz de garantir a paz e a ordem social. Sem tal poder, os indivíduos estariam em constante conflito, movidos pelo medo e pelo desejo de autopreservação, o que levaria a um estado de guerra de todos contra todos. O materialismo de Hobbes, portanto, não apenas fornece uma base para sua visão da natureza humana, mas também fundamenta sua teoria política, que justifica a autoridade do soberano como necessária para a manutenção da civilização.
4. Julien Offray de La Mettrie (1709–1751):
– Contribuições: La Mettrie escreveu “L’Homme Machine” (O Homem-Máquina), onde argumenta que os seres humanos são máquinas completamente materiais. Ele defendia que todas as funções mentais e físicas poderiam ser explicadas pela biologia, sem necessidade de uma alma imaterial.
Ele considera o corpo humano uma máquina complexa, onde os pensamentos e sentimentos são produtos da organização e funcionamento material do cérebro e do sistema nervoso, comparável ao funcionamento de uma máquina.
La Mettrie também desafia as concepções tradicionais de livre-arbítrio, sugerindo que as escolhas humanas são determinadas por fatores fisiológicos e ambientais, o que faz com que a liberdade humana seja limitada. Ele critica a visão dualista cartesiana, que separa mente e corpo, propondo que os dois são indissociáveis e que a mente é uma função emergente da organização material do corpo. Essa abordagem influenciou o desenvolvimento do materialismo ateísta e do determinismo na filosofia moderna.
O materialismo de La Mettrie foi controverso em seu tempo, desafiando as doutrinas religiosas e morais estabelecidas, ao negar a existência de uma alma imortal e ao tratar o ser humano como um produto puramente natural. Suas ideias provocaram debates intensos sobre a natureza da consciência e do comportamento humano, antecipando questões que seriam centrais na filosofia e nas ciências cognitivas dos séculos posteriores. La Mettrie também foi pioneiro em sugerir que a felicidade e a moralidade humanas deveriam ser abordadas a partir de uma compreensão científica da natureza humana, em vez de princípios teológicos ou metafísicos.
5. Karl Marx (1818–1883):
– Contribuições: Marx, juntamente com Friedrich Engels, desenvolveu o materialismo histórico e dialético. Ele acreditava que as estruturas econômicas e materiais da sociedade eram as forças motrizes por trás da história e do desenvolvimento social. Marx rejeitava a metafísica e centrava suas análises nas condições materiais de vida.
6. Ludwig Feuerbach (1804–1872):
– Contribuições: Feuerbach foi uma figura chave na transição do idealismo para o materialismo na filosofia alemã. Em sua obra “A Essência do Cristianismo”, ele argumenta que a religião é uma projeção das necessidades humanas e que o foco deve ser na realidade material e nas relações humanas.
7. Friedrich Engels (1820–1895):
– Contribuições: Colaborador de Marx, Engels ajudou a desenvolver o materialismo dialético. Ele escreveu extensivamente sobre a relação entre as condições materiais e o desenvolvimento social, e defendeu que a natureza segue leis materiais que podem ser compreendidas e aplicadas à sociedade.
8. Pierre Gassendi (1592–1655):
– Contribuições: Gassendi foi um filósofo e cientista que tentou reconciliar o atomismo de Demócrito com a ciência moderna e a teologia cristã. Ele argumentou que a realidade é composta por partículas materiais e que as leis naturais governam o comportamento dessas partículas.
Esses filósofos, ao longo da história, contribuíram de maneiras diversas para a tradição materialista, questionando e reformulando a compreensão da realidade em termos de processos físicos e materiais.
[Richard C. Vitzthum é autor de Materialismo: Uma História Afirmativa e Definição. (Buffalo, NY: Prometheus Books, 1995)]
Tradução: Victória Monteiro de Lima
Originalmente publicado em 2014. Atualizado em 2024.
Acredito que a palavra segue sendo meu ponto fraco.