Trata-se de fazer justiça ao livro de um dos maiores filósofos de todos os tempos da pós-contemporaneidade, o grande Gilles Deleuze. Conversações são reuniões de textos e entrevistas que foram produzidas em um período de quase 20 anos (1972-1990). Segundo o próprio autor porque as vozes, as conversações duram tanto que já não se sabe se são conversas sobre a paz ou guerra.
Ao desbravar o mundo hipnótico que o renomado francês nos causa já que ele tem o poder de nos inquietar e nos provocar da forma mais intensa. Nesse livro de 255 páginas que pude apreciar, Deleuze aborda o encontro com o psicanalista Félix Gattari, seu amigo e companheiro, retratam o Anti-Édipo (outro livro escrito pelos dois afins – o tema central é que o livro em si seja usado como máquina de guerra fazendo valer conceitos indicados pela psicanálise, pondo-os em outro ambiente); o cinema também é posto como estudo do imagético ao indicar cineastas como Godard, Fellini, Pasolini, ente outros e os meios de comunicação na configuração de poder de massa. Sem falar que os autores citam Kant, Michel Foucault e Nietzsche. Aja fôlego para digerir!
A escrita para Gattari se parece com o fluxo esquizofrênico, pois, pode arrastar qualquer tipo de coisa. Já para Deleuze:
Por que não poderia inventar um discurso sobre qualquer coisa, inclusive ainda que se trate de um discurso completamente irreal ou artificial, sem que se tenha que reclamar dos títulos que por eles não me autorizam? Se a droga produz às vezes delírios, e por que eu não poderia delirar sobre ela? O que posso fazer com tua “realidade” própria. Chato realismo é o teu. Portanto, por que me lês? O argumento da experiência reservada é um mau argumento, além de irracionário. A frase do Anti-Édipo que eu mais gosto é esta: “Não, jamais vamos ver esquizofrênicos”.
Eis o capítulo X “A vida como obra de arte” traduzido:
Você já tinha feito muitos comentários sobre a obra de Foucault. Qual é o significado deste livro, dois anos depois de sua morte?
– Necessidade minha, admiração por ele, senti antes de sua morte, antes deste trabalho interrompido. É verdade que, de fato, já antes havia escrito alguns artigos sobre determinados pontos específicos (a declaração, o poder). Mas, neste caso, o que me interessa é a lógica de que pensei sobre esse pensamento que me parece uma das filosofias mais importantes da modernidade. A lógica do pensamento não tem nada a ver com sistema racional e equilibrado. Inclusive a linguagem foi considerada por Foucault como um sistema desequilibrado. A lógica de um pensamento de acordo com Leibniz: quando pensávamos que tinha alcançado a porta, nós encontramos novamente no mar. Este é o caso de Foucault. Seu pensamento continua a adicionar novas dimensões, nenhum deles estava contido pelo pensamento anterior. O que é que o obriga a aventurar-se nesta ou naquela direção, recorrer o caminho, sempre inesperado? Não há um só grande pensador que não atravessa essas crises, pois marcam as horas de seu pensamento.
Você acha que Foucault, acima de tudo como um filósofo, enquanto outros insistem mais em sua pesquisa histórica.
– É inegável que a história é parte de seu método. Mas Foucault, ele nunca se tornou um historiador. Foucault é um filósofo que inventou uma relação com a história completamente diferente das filosofias da história. A história, segundo Foucault, nos cerca e nos delimita, não diz o que somos, mas aquilo de que nos diferem, não estabelece a nossa identidade, mas se dissipa em favor da outra que estamos. Portanto, Foucault considera uma série curto espaço de tempo e recente (entre os séculos XVII e XIX). E mesmo quando se trata como em seus últimos livros, uma série de longa duração desde os Gregos e o Cristianismo é para encontrar aquilo em que nós não somos gregos, nem cristãos, ao ponto em que nos tornamos algo diferente. Em suma, a história é o que nos separa de nós mesmos, e que devemos negociar e a travessar para pensar a nós mesmos. Como Paul Veyne disse, a atualidade é o que se opõe tanto ao tempo como a eternidade. Foucault é o mais atual dos filósofos contemporâneos, ele que fez uma ruptura mais radical no século XIX (daí a sua capacidade de pensar o século XIX). O que Foucault está interessado é sobre a atualidade, o mesmo que Nietzsche chamava de inatual ou intempestivo, o que está em ato, à filosofia como um ato do pensamento.
É este o sentido da sua declaração, segundo o qual o essencial de Foucault seria a pergunta, “O que significa pensar”?
– Sim, o pensamento concebido como um ato perigoso. Foucault é certamente, junto com Heidegger (embora de uma forma totalmente diferente), um dos que renovaram de forma mais profunda o pensamento. Uma imagem que tem diferentes níveis, como camadas e diferentes campos sucessivos da filosofia de Foucault.
Pensar é em princípio ver e falar, mas com a condição de que o olho não se vê as coisas e que se eleve essas “visibilidades”, a condição de que a linguagem não permanece em palavras ou em frases e alcance as declarações. Pensa-se como um arquivo. Depois, pensar é poder, é dizer é construir relações de forças, a condição de compreender que essas relações são irredutíveis à violência, que constituem ação sobre outras ações, ou seja, atos como incitar, induzir, desviar, favorecer ou impedir, fazer mais ou menos possível. O pensamento como uma estratégia. Finalmente, em seus últimos livros, se descobre o pensamento como “processo de subjetivação”: é estúpido tentar ver em nele uma retomada do sujeito, se trata da constituição dos modos de existência ou, como dizia Nietzsche, possibilidades vitais. Não a existência como sujeito, mas sim como obra de arte; o pensamento é um pensamento-artista.
O importante é, obviamente, mostrar por que se produz necessariamente essa transição de uma determinação das coisas: as transições não são dadas de antemão, coincide com os caminhos de Foucault traça os caminhos que vão subindo e não preexistem com as comoções que existem a medida que se vai experimentando.
Considere os caminhos pela sua ordem. O que é o “arquivo”? Você afirma que o arquivo é, de acordo com Foucault, “audiovisual”?
– A arqueologia, genealogia, é também uma geologia. Arqueologia não trata necessariamente do passado, existe também uma arqueologia do presente. Arqueologia é o arquivo, e o arquivo tem duas partes: áudio-visual. A lição da gramática e a lição das coisas. Não se trata de palavras e de coisas (os livros de Foucault que levam este título é ironia). Há que abrir as coisas para extrair sua visibilidade. E a visibilidade de uma determinada época, é um regime luminoso, seus flashes, seus reflexos, os relâmpagos produzem ao contato com a luz das coisas. Por exemplo, há que entrelaçar as palavras ou frases para extrair deles os enunciados. E o enunciado de uma época é seu regime de linguagem, as variações inerentes pelas que atravessa constantemente, pulando de um sistema homogêneo para outro (a língua é sempre um sistema desequilibrado).
Este é o grande princípio histórico de Foucault: toda formação histórica diz tudo o que pode dizer e ver tudo o que você pode ver. Por exemplo, a loucura no século XVII: A que luz pode ser vista, em que enunciado pode dizer? Em Quanto ao nosso presente, o que é que nós somos hoje capazes de dizer, o que somos capazes de ver? Os filósofos geralmente consideram a sua filosofia como um personagem involuntário em terceira pessoa.
Aqueles que já conheceram Foucault confessam que os que os chama atenção eram seus olhos e voz. Raios e trovões, enunciados que escapam das palavras, inclusive as risadas de Foucault foi uma declaração. O que significa a existência de uma disjunção entre ver e dizer, o fato de ambos estarem separados por um intervalo, por uma distância irredutível? Somente o problema do conhecimento (ou, em vez disso, o “saber”) não pode ser resolvido recorrendo a um acordo ou uma correspondência. Temos de procurar em outro lugar para a razão que ver e dizer se encontram interligados e entrelaçados. Ocorre como se o arquivo estivesse atravessado por uma enorme falha cujas margens se mostram de forma visível, e a outra a forma do enunciado ambos mutuamente irredutíveis. O fio esticado que os une se encontra fora, em outra dimensão.
Não se faz neste ponto algumas semelhanças com Maurice Blanchot, ou até mesmo influência?
– Foucault sempre reconheceu que tinha uma dívida com Blanchot. Poderíamos dizer que esta dívida diz respeito a três questões. Primeiro, “falar não é ver”, essa diferença implica que, ao dizer o que não pode ver, empurramos a língua até seu limite extremo, elevando para o poder do indizível. Em segundo lugar, a superioridade da terceira pessoa – “ele” ou o neutro, o “é” – sobre as duas primeiras, a rejeição de toda personologia linguística. E para terminar, o tema de fora: a relação (ou mesmo a não-relação) com o que está fora, o que está mais distante de todo o mundo exterior e por isso mesmo o mais próximo do mundo interior.
O que não diminui a importância das convergências de Foucault com o fato de Blanchot o compreender como Foucault prossegue para desenvolver autonomamente todas estas questões: a disjunção ver / falar, que culmina no livro sobre Raymond Roussel e o texto sobre Magritt implica um novo estatuto do visível e do enunciável: toda teoria da declaração será animada pelo que “fala”; as transformações do próximo são distantes na linha do lado de fora, como prova de vida ou morte, eles vão produzir seus próprios atos do pensamento de Foucault, (também muito diferente de Heidegger) e se encontram na base dos processos de subjetivação.
Atrás do arquivo ou após a análise do conhecimento, Foucault descobre poder e, em seguida, subjetividade. Qual é a relação entre conhecimento e poder, e entre o poder e subjetividade?
– O poder é precisamente este elemento informal que atravessa as formas de conhecimento, que está abaixo deles. Assim chamado microfísica. É força, relações de pode e não formas. A concepção das relações de Foucault tem força na parte de Nietzsche, é um dos pontos principais de seu pensamento. É uma dimensão diferente de saber, mas na mistura concreta de poder e conhecimento não é perceptível. O problema todo é o seguinte: por que Foucault necessitou adicionar outra dimensão, porque a subjetividade é algo que distingue tanto o saber quanto o poder? Diz-se agora que Foucault voltou ao assunto, que redescobriu a noção de sujeito Eu que tinha sempre rejeitado. Mas nada disso. Seu pensamento atravessou certamente uma crise a todos os níveis, mas foi uma crise criativa, não um simples arrependimento.
A partir da vontade de saber, Foucault está cada vez mais tendo a impressão de ficar aprisionado sob as relações de poder. Invoca, sim, alguns pontos de frentes de resistência de poder, de onde vêm essas resistências? Foucault pergunta: como atravessar a linha, como também superar as relações de forças? Estamos condenados a estar cara a cara com o poder, se as tem, como sem o sofrimento? E faz um de seus textos mais violentos e também mais curiosos, sobre os “homens infames“. Foucault demorou em dar uma resposta. Negociar a linha de força, rebaixar o poder, significa dobrar a força, conseguir que afete a si mesma em vez de afetar outras forças: Um “pliegue“, de acordo com Foucault, uma relação de força consigo mesma. Você tem que “dobrar” o equilíbrio de poder, um relacionamento com ele mesmo que nos permite resistir, fugir, reorientar a vida ou morte contra o poder.
Isto é, de acordo com Foucault, o que os gregos inventaram. Já não é uma questão de conhecimento, de formas determinada ou, como no caso de poder, as regras coercitivas: são regras opcionais que produzem a existência como obras de arte, as regras éticas e estéticas que constituem modos de existência ou estilos de vida (dos quais até mesmo o suicídio faz parte). A isto chamou Nietzsche de atividade artística de vontade de poder, invenção de novas “oportunidades de vida”. Há muitas razões por que falar de um retorno ao sujeito: os processos de subjetivação variam de acordo com a época e possuem lugar de acordo com regras bem diferentes.
Tanto é assim que, em cada caso, o poder nunca deixa de se recuperar e submetê-lo às relações de forças, e eles não para de renascer e de inventar novas maneiras. Portanto, não é um retorno aos gregos. Um processo subjetivo é dizer a produção de um modo de existência, não pode confundir com um sujeito, a menos que você despoje de toda a identidade e toda interioridade. A subjetividade não tem mesmo a ver com a pessoa, se trata da individuação, particular ou coletiva, que caracteriza um acontecimento (hora do dia, uma corrente, vento, a vida…).
Se trata de um modo intensivo e não de um sujeito pessoal. É uma dimensão específica, sem a qual não seria possível superar ou resistir ao poder. Foucault analisa então os modos gregos de existência, os cristãos, a maneira como eles são introduzidos no conhecimento e alcançam compromissos com os poderes. Mas sua natureza é basicamente outra. Por exemplo, a Igreja como poder pastoral não deixa de tentar conquistar os modos de existência cristã, modos que por sua vez não deixam de questionar o poder da Igreja, mesmo antes da Reforma. E, de acordo com o método, o que essencialmente interessa para Foucault não é retornar aos gregos, o que importa somos nós aqui e agora: o que é nosso modo de existência, o que são as nossas possibilidades de vida e nossos processos de subjetivação… Temos algum modo de constituirmos a nós mesmos, e como diria Nietzsche ainda somos suficientemente “artísticos”, além do conhecimento e do poder? Somos capazes disso (porque, em certo sentido, nós jogamos a vida e a morte)?
Foucault já havia desenvolvido o tema da morte do homem. Este tema é compatível com uma existência humana?
– Com a morte do homem acontece algo ainda pior com o tema do sujeito porque é o ponto de pensamento de Foucault nos quais acumula mais contradições. Contradições nunca são inocentes misturam maldade com estupidez: algumas pessoas gostam, no entanto encontram em um pensador que o compreende.
Então eles disseram: Como poderia Foucault manter lutas políticas se você não acredita no homem e, portanto, nem nos direitos do homem? Na verdade, a morte do homem é um assunto muito simples e rigoroso que Foucault leva Nietzsche para desenvolvê-lo de uma forma muito original. Concerne nas formas e nas forças. Forças são sempre em relação a outras forças. Considere as forças do homem (por exemplo, ter uma vontade, uma compreensão…), Com que outras forças se relacionam e qual é a forma que se resulta dessa composição? Em palavras e coisas, Foucault mostrou que o homem, em tempos clássicos, não se pensa como tal, mas apenas unicamente a “imagem” de Deus, porque suas forças se compõem com as forças do infinito.
No século XIX, em contraste, estas forças do homem afrontam as forças da finitude enquanto tal, a vida, a produção, a linguagem, de modo que o composto é em forma de homem. Mas, desta maneira não se preexistiu, tampouco há razão para pensar que tem que sobreviver no momento em que as forças do homem entrem em relação com novas forças: o composto será de uma forma de novo cunho, nem Deus, nem homem. Por exemplo, o homem do século XIX, enfrenta a vida e inclui com ela através da força de carbono.
Mas o que dizer quando as forças dos homens são feitos com silício. O que acontece com as novas formas que podem nascer? Os dois precursores de Foucault são Nietzsche e Rimbaud, que acrescentam sua versão esplêndida: Que novas relações mantemos com a vida e com a linguagem? Quais as novas lutas com o poder? A chegada à questão dos modos de subjetivação será uma maneira de continuar com o mesmo problema.
É isso que você chama de “modos de existência”, e que Foucault denominava “estilo de vida”, como você acabou de referir, uma estética vital: a vida como arte. Mas há também uma ética?
– Sim, a constituição dos modos de existência ou os estilos de vida não é só estético, mas é, em termos de Foucault, a ética (que se opõe a “moral”). A diferença é que a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo específico que consiste em julgar as ações e intenções relacionando-as com valores transcendentes (isto é certo, isto é errado…); Ética é um conjunto de regras opcionais que avaliam o que fazemos e dizemos no modo de existência que isso implica. Nós dizemos tal coisa, fazer qualquer outro modo de existência que envolve tudo isso?
Existem coisas que você não pode fazer ou dizer que de certa maldade na alma, do ressentimento ou vingança contra a vida. Às vezes, basta um gesto ou uma palavra. São os estilos de vida sempre implicados, que nos constituem como tal ou qual. Essa era a ideia de modos de Spinoza. Já não é presente a primeira filosofia Foucault? O que nós somos capazes de ver e dizer (no sentido de declaração)? Mas, ainda que isso possa envolver uma ética inteira, é também de um problema estético. O estilo dos grandes escritores é também um estilo de vida, não algo pessoal, mas a invenção de uma possibilidade vital, um modo de existência. É curioso as vezes que se diga que os filósofos carecem de estilo, que escrevem mal.
Deve ser por isso que ninguém os lê. Sem sair da França, Descartes, Malebranche, Maine Biran, Bergson e mesmo Auguste Comte, que tinha de Balzac, são grandes estilistas. Foucault se encaixa nessa mesma linha, é um grande estilista. O conceito adquire contraponto ou valores rítmicos, como em esses curiosos diálogos consigo mesmo como termina alguns de seus livros. Sua sintaxe inclui reflexos e brilhos do visível ao mesmo tempo em que serpenteia se pega ou desapega ou se estende a maioria dos enunciados. Este estilo, nos últimos livros, procura uma espécie de apaziguamento, tende para uma linha cada vez mais sóbria, mais pura.
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