A teoria anarquista, a verdadeira teoria, é só uma. Tenho a que sempre tive, desde que me tornei anarquista. V. já vai ver… Ia eu dizendo que, como era lúcido por natureza, me tornei anarquista consciente. Ora o que é um anarquista? É um revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente — no fundo é só isto. E de aí resulta, como é de ver, a revolta contra as convenções sociais que tornam essa desigualdade possível. O que lhe estou indicando agora é o caminho psicológico, isto é, como é que a gente se torna anarquista; já vamos à parte teórica do assunto. Por agora, compreenda V. bem qual seria a revolta de um tipo inteligente nas minhas circunstâncias. O que é que ele vê pelo mundo? Um nasce filho de um milionário, protegido desde o berço contra aqueles infortúnios — e não são poucos — que o dinheiro pode evitar ou atenuar; outro nasce miserável, a ser, quando criança, uma boca a mais numa família onde as bocas são de sobra para o comer que pode haver. Um nasce conde ou marquês, e tem por isso a consideração de toda a gente, faça ele o que fizer; outro nasce assim como eu, e tem que andar direitinho como um prumo para ser ao menos tratado como gente. Uns nascem em tais condições que podem estudar, viajar, instruir-se — tornar-se (pode-se dizer) mais inteligentes que outros que naturalmente o são mais. E assim por aí adiante, e em tudo…
As injustiças da Natureza, vá: não as podemos evitar. Agora as da sociedade e das suas convenções — essas, por que não evitá-las? Aceito — não tenho mesmo outro remédio — que um homem seja superior a mim por o que a Natureza lhe deu — o talento, a força, a energia; não aceito que ele seja meu superior por qualidades postiças, com que não saiu do ventre da mãe, mas que lhe aconteceram por bambúrrio logo que ele apareceu cá fora — a riqueza, a posição social, a vida facilitada, etc. Foi da revolta que lhe estou figurando por estas considerações que nasceu o meu anarquismo de então — o anarquismo que, já lhe disse, mantenho hoje sem alteração nenhuma. [1]
Em O Banqueiro Anarquista, Pessoa une o lirismo à análise política – assim como Camus e Cioran fizeram com a filosofia – ao contar a história de um banqueiro, que explica a seu amigo porque, mesmo considerando seu emprego, é um anarquista. A história segue no formato dos diálogos socráticos, onde o personagem secundário apenas faz perguntas e o principal explica suas perspectivas da forma mais racional possível.
Pessoa definia o anarquismo como um processo individual de libertação das “tiranias das ficções sociais”. Dessa forma, organizações que se dizem libertadoras do proletariado, para dar um exemplo, seguiriam sendo estruturas de poder, com hierarquia, com pessoas preocupadas com o meio para a igualdade pela perspectiva socialista – o poder ditatorial – do que com o fim – a igualdade em si.
Uma “ficção social” seria tudo que sobrepusesse à realidade natural – família, dinheiro, religião, Estado. Pessoa afirma que somos qualquer coisa – rico, protestante, marido – em virtude das ficções sociais. Além disso, ele complementa – através de seu banqueiro – que qualquer sistema que não seja o puro sistema anarquista é também uma ficção. Não haveria sentido em tentar suplantar uma ficção por outra, ou, no caso da prática, não haveria sentido em tentar suplantar o capitalismo em socialismo. Sobre a impossibilidade do seu sistema, o banqueiro retoma novamente o conceito de naturalidade afirma:
Por que é que o sistema anarquista não seria realizável? Nós partimos, todos os avançados, do princípios, não só de que o atual sistema é injusto, mas de que há vantagem, porque há injustiça, em substituí-lo por outro mais justo. Ora, de onde vem este critério de justiça? Do que é natural e verdadeiro, em oposição às mentiras da convenção. […] em outras palavras, ou a sociedade pode ser natural ou ela é essencialmente ficção e não pode ser natural de maneira nenhuma. [2]
É importante notar as contradições inerentes à argumentação do banqueiro: é um burguês, um detentor da capacidade de impor a força de sua ficção social – o dinheiro – e ainda assim consegue notar o exercício de poder do capital sobre o homem – tanto em seu processo de desigualdade social quanto no de subjetivação – e combatê-lo à sua forma. Como combater algo no qual estamos “mergulhados”, no caso do banqueiro, as relações do capital? Nesse sentido Pessoa evoca uma perspectiva do anarquismo individualista: É preciso subjugar cada uma das ficções por si mesmo, diminuir ao máximo a influência delas à sua existência e às suas decisões e essa seria a única forma de implantar o anarquismo sem a criação de novos paradigmas restritivos à liberdade humana. De fato, uma análise mais subjetiva da obra e de suas terminologias pode nos mostrar a contradição em termos de toda ideologia com sua prática, por melhor intencionada que seja.
Em suma, mantive as minhas considerações e citações atadas ao início do livro, não só por ele ser bastante curto, por ainda se tratar de uma obra com muitas outras perspectivas e para manter o caráter de apresentação. Tanto para socialistas quanto liberais vale a leitura, e não só por se tratar de um dos gigantes da literatura de todos os tempos.
O Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa
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Referências
[1] PESSOA, 1987, p. 3. Voltar ao texto
[2] PESSOA, 1987, p.4. Voltar ao texto