O contemporâneo é uma relação singular com o tempo, por Giorgio Agamben – DROPS #66

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Editora Argos: Chapecó, 2009, p. 57-62.

A pergunta que gostaria de escrever no limiar deste seminário é: “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que significa ser contemporâneo?”. No curso do seminário deveremos ler textos cujos autores de nós distam muitos séculos e outros que são mais recentes ou recentíssimos: mas, em todo caso, essencial é que consigamos ser de alguma maneira contemporâneos desses textos. O “tempo” do nosso seminário é a contemporaneidade, e isso exige ser contemporâneo dos textos e dos autores que se examinam. Tanto o seu grau quanto o seu êxito serão medidos pela sua – pela nossa – capacidade de estar à altura dessa exigência.

Uma primeira e provisória indicação para orientar a nossa procura por uma resposta nos vem de Nietzsche. Numa anotação dos seus cursos no College de France, Roland Barthes resume-a deste modo: “O contemporâneo é o intempestivo”. Em 1874, Friedrich Nietzsche, um jovem filólogo que tinha trabalhado até então sobre textos gregos e, dois anos antes, havia atingido uma inesperada celebridade com O nascimento da tragédia, publica as Unzeitgemasse Betrachtungen, as “Considerações intempestivas”, com as quais quer acertar as contas com o seu tempo, tomar posição em relação ao presente. “Intempestiva esta consideração o é”, lê-se no início da segunda “Consideração”, “porque procura compreender como um mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se orgulha, isto é, a sua cultura histórica, porque eu penso que somos todos devorados pela febre da história e deveremos ao menos disso nos dar conta’: Nietzsche situa a sua exigência de “atualidade”, a sua “contemporaneidade” em relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo.


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Essa não-coincidência, essa discronia, não significa, naturalmente, que contemporâneo seja aquele que vive num outro tempo, um nostálgico que se sente em casa mais na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre e do marquês de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe foi dado viver. Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu tempo.

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.

Em 1923, Osip Mandel’stam escreve uma poesia que se intitula “O século” (mas a palavra russa vek significa também “época”). Essa contém não uma reflexão sobre o século, mas sobre a relação entre o poeta e o seu tempo, isto é, sobre a contemporaneidade. Não o “século’: mas, segundo as palavras que abrem o primeiro verso, o “meu século” ( vek moí):

Meu século, minha fera, quem poderá
olhar-te dentro dos olhos
e soldar com o seu sangue
as vértebras de dois séculos?

O poeta, que devia pagar a sua contemporaneidade com a vida, é aquele que deve manter fixo o olhar nos olhos do seu século-fera, soldar com o seu sangue o dorso quebrado do tempo. Os dois séculos, os dois tempos não são apenas, como foi sugerido, o século XIX e o XX, mas também, e antes de tudo, o tempo da vida do indivíduo (lembrem-se que o latim saeculum significa originalmente o tempo da vida) e o tempo histórico coletivo, que chamamos, nesse caso, o século XX, cujo dorso – compreendemos na última estrofe da poesia – está quebrado. O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra. O paralelismo entre o tempo – e as vértebras – da criatura e o tempo –
e as vértebras – do século constitui um dos temas essenciais da poesia:

Enquanto vive a criatura
deve levar as próprias vértebras,
os vagalhões brincam
com a invisível coluna vertebral.
Como delicada, infantil cartilagem
é o século neonato da terra.

O outro grande tema – também este, como o precedente, uma imagem da contemporaneidade – é o das vértebras quebradas do século e da sua sutura, que é obra do indivíduo (nesse caso, do poeta):

Para liberar o século em cadeias
para dar início ao novo mundo
é preciso com a flauta reunir
os joelhos nodosos dos dias. 

Que se trate de urna tarefa inexecutável – ou, de todo modo, paradoxal – está provado pela estrofe sucessiva que conclui o poema. Não apenas a época-fera tem as vértebras fraturadas, mas vek, o século recém-nascido, com um gesto impossível para quem tem o dorso quebrado quer virar-se para trás, contemplar as próprias pegadas e, desse modo, mostra o seu rosto demente:

Mas está fraturado o teu dorso
meu estupendo e pobre século.
Com um sorriso insensato
como uma fera um tempo graciosa
tu te voltas para trás, fraca e cruel,
para contemplar as tuas pegadas.

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