Da série Contos de uma São Paulo Privada.
“Quem grita vive contigo”
-Milton Nascimento, Menino
Havia muitas pessoas que optavam por morar na São Paulo Privatizada, mesmo com condições para habitar lugares melhores. Não eram imigrantes e emigrantes com uma renda financeira baixa, que eram levados para morar nas habitações sem nenhuma outra opção, mas sim pessoas com ideais distintos.
Ana Arruda, Livre docente em direito pela PUC de Porto Alegre e professora há mais de doze anos na instituição, achou em um primeiro momento que, para honrar a sua ideologia Ultra-liberal, seria necessário que ela apoiasse a privatização territorial, como a feita pela Repartição em São Paulo. A infeliz escolha foi algo que nenhum de seus colegas de trabalho apoiou, e Robs, com quem era casada há oito anos, não a levou nem ao aeroporto.
Construiu um quarto de luxo no terraço de um edifício na Rua General Jardim, onde recebia tudo que precisava por meio de Drones. Engordou um pouco, porque mal saia do quarto, não sabia quem eram os vizinhos nem tinha a mínima vontade de sabê-lo. A entrada para o terraço era lacrada e guardada por um segurança privado.
Além de sua aposentadoria, vivia com as aulas online que dava sobre “Direito no dia a dia: tutoriais básicos”- os que mais eram procurados diziam respeito à aposentadoria precoce com 63 anos e como preencher formulários digitais para dar entrada em passaportes.
Alguém Fascinante
Um dia, saiu com seu triciclo para tomar um ar, dando voltas pelo terraço, no qual havia colocado grama sintética. Não se preocupou em tirar seu pijama listrado de rosa e azul, que mostravam as pernas brancas e um pouco apertadas nos shorts do uniforme para dormir.
Olhava para a Avenida Higienópolis, contornando os prédios em sua volta e a encontrando em sua vista novamente. Pessoas passavam frenéticas com as cabeças baixas; muitas trabalhavam para as empresas quarteirizadas e quinteirizadas, de coleta de lixo reciclável a limpeza das ruas. A maioria dos lixões era no quarteirão e Ana havia pedido especificamente por uma residência perto dessa região, já que por muitos anos havia sido professora de Direito e Sustentabilidade contemporânea, sendo o caso de Fraude no Lixão de Farropilha, na década de 2050, o tema de sua tese de mestrado.
O cheiro forte do lixo algumas vezes driblava os aromatizados que Ana Arruda mandara instalar em volta do terraço. Se respirasse muito fundo, podia sentir o odor que empesteava a avenida. Via os funcionários usando mascaras bolhas de respiração: um composto de látex que era espirrado no rosto todo, formando uma espécie de saco de respirar.
A roda frontal de seu triciclo creme de repente começou a se mover de maneira estranha. Fazia um movimento em forma de Z e não avançava; de repente, começou a fazer um ruído alto e parou de se mexer.
Descendo do veiculo, Ana empurrou-o para tentar ver o que acontecia. Ele continuava travado, mas percebeu que havia algo preso à roda e, enfiando a mão nas frestas, encontrou um enorme tufo de linha. Apesar da espessura, era possível perceber que havia um misto de cores em sua formação, que mudava pela maneira que a luz batia.
– Hey, já era! Tá na mão! Alguém próximo gritou.
Ana ouvia um barulho que parecia ser de objetos sendo pressionados e depois os passos acelerados de alguém correndo.
Logo, viu que um braço pequeno e magrelo surgiu no parapeito do terraço ao seu lado. Assustou-se com o vulto, que surgiu tímido no lado de sua vista. Agora era um par de braços brancos e cheios de tatuagens.
– Pode deixar essa porra a.. – as sobrancelhas finas do menino, escondido por um par fino de óculos espelhados, se arregalaram quando viram Ana Arruda ao lado do triciclo.
Tinha o rosto magro e o nariz com os buracos grandes. A boca aberta mostrava os dentes de leite tortos, ainda em formação.
– Nossa moça desculpa ai! Achei que eu tinha taiado algum dos Drô que sempre passa por aqui. – Disse enquanto terminava de subir. Usava apenas um short cinza de velcro e chinelos de um azul vivo.
– Ah, então é você que fica tentando derrubar os Drones que passam por aqui?!?
Ana Arruda já tinha percebido que, às vezes, suas entregas demoravam para chegar. E quando eram depositadas pela entrada no telhado, ouvia o barulho defeituoso das hélices. Sempre teve um ouvido bom para defeitos eletrônicos, diferente um pouco do seu para defeitos humanos. Sempre viu muito as pessoas como inocentes e culpados, era assim que viveu toda a vida, e não iria mudar isso.
Foi na direção do menino, apressada. Ele limpava os joelhos encardidos e com algumas cicatrizes.
– Você não sabe que existem leis para esse tipo de arruaça sua? A maioria, de antes de a sua avó nascer! São de um a quatro anos de reclusão por tentar derrubar um Drone, ainda você pode tomar um tiro paralisante, que esses bichos são armados até os dentes – encarou com os braços cruzados o menino, ainda se limpando.
– Ah, mas ninguém sabe que sou eu moça! Eu tenho esse decodicador no Cel aqui. – Puxou de trás do short seu aparelho, um circulo de plástico laranja transparente.
– Ai…. – Ana Arruda colocou a mão no rosto, balançando a cabeça. – Como é seu nome?
– Alex da Brasi.
– Brasi o quê? – Questionou Ana.
– Brasilândia – disse o menino, já distraído com o celular.
Gastou a tarde toda tentando lhe explicar como as empresas contratavam grupos de seguranças digitais, que tinham sistema que nem consideravam o seu decodificador, por tão fraco que era. Pediu comida indiana, mas exigiu que viessem por um motoboy, para não confundir a cabeça de Alex.
Já fazia muitos anos que não tinha contato com uma criança daquela idade. Seu filho Cleber já tinha 42 anos, e viu poucas vezes seus netos, que moravam em Berlim com a mãe.
Ele era filho único, mas passava os dias da semana com a avó, que morava em algum prédio próximo ao de Ana, pois seu pai trabalhava em Aparecida do Norte, como assistente de serviços gerais.
Quando o menino foi embora, checou sua coleção de louças reforjadas, que ficavam na estante, em cima da televisão, para ver se não faltava nenhuma de suas joias. Mas quando viu que tudo ainda estava ali, sentiu-se culpada pela desconfiança.
O que se torna bom rápido, logo se desmantela.
O ritual se iniciou de maneira tão espontânea como o encontro dos dois. Alex sempre aparecia no começo da tarde, pelo mesmo lado do parapeito. Ana, a partir do segundo dia, já pedia a comida antes, assim, quando ele chegasse, almoçavam juntos e ficavam conversando a respeito do que Alex aprendia na escola pública, nos dois dias da semana que tinha aula.
Colocava para ele alguns desenhos da época em que Cleber era menor. Animações que a cada dez segundos mudavam de personagens bruscamente, passando de gatos dentro de um armário para astronautas gordos, sem nenhum aviso. O menino não teve muita paciência no começo, mas, depois de um tempo, os pedia já quando se sentava no sofá.
Teve a ideia de colocar os desenhos, pois Alex lembrava muito as memórias já quase esquecidas que tinha de seu filho quando criança. A maneira como olhava quando a dúvida pairava na cabeça. E quando tirava os óculos espelhados, Ana via os mesmos olhinhos espremidos, que nunca soube se era por algum problema de vista ou apenas um charme, que a fazia sorrir automaticamente.
Começou a dar alguns trocados para o menino, na véspera dos dias em que ele ia para a aula. Ana Arruda fez isso de livre e espontânea vontade e ainda se surpreendeu, quando ele, em um primeiro momento, recusou.
– Não Dona Ana, isso não é justo, não – Alex ergueu a mão em direção à quantia.
Como alguém daquele tamanho tinha alguma noção de justo? Era um fenômeno!
Mas insistiu dizendo que era de coração, e o menino começou a aceitar. Nunca havia pensando em fazer isso, era totalmente contra qualquer tipo de incentivo financeiro ou agrado, só que havia algo em Alex que a fazia querer ter essas ações; tentava acalmar sua consciência, vendo a ação como um incentivo.
Seus planos de lhe bancar os estudos, primeiramente colocando-o em uma escola particular com aulas todas as semanas, desapareceram junto com Alex. Quando ele não apareceu nos dias que costumava vir, sentiu a quebra de algo que normalmente se pensa ser eterno, como o amor inicial de um relacionamento, mas mesmo assim se acalmou – “talvez o pai tenha conseguido uma folga” – pensou.
Rapidamente, passaram-se quatro dias e Ana sentia o peso do sumiço. Esqueceu-se de fazer a coisa mais mundana, que há muitas décadas já havia quase que literalmente substituído o “Olá”, que era pedir os contatos da pessoa.
Não tinha como contatar Alex, o passeio com o triciclo pelo terraço agora era para ver se ele surgia, mas sua presença foi se decompondo como o seu lanche do primeiro dia que não viera, mofando em cima do sofá de seda.
Pediu para o seguranças que guardava a porta procurar informações a respeito do “menino que sempre estava aqui comigo!”. O rosto confuso do homem enorme, que Ana jurava que a vira junto com Alex, quando os dois andavam pelo terraço, lhe gerou uma dúvida.
Um reflexo bem fundo (ou não?)
Passada uma semana, pediu para o homem enorme ir aos prédios próximos para ver se conseguia informações a respeito de Alex. Havia duas meninas que moravam com seus avós nas proximidades, mesmo que Alex mentisse, o homem disse que não havia nenhuma criança com a descrição dele.
Tentou comunicar a Recon, empresa que cuidava da segurança daquela região privada de São Paulo, mas se perdia quando era transferida para as empresas de investigação terceirizadas pela própria Recon.
Após algumas tentativas frustradas para encontrar o menino, se lembrou da reação do homem ao ouvi-la falar sobre Alex. Algumas lembranças dele davam-lhe a mesma sensação das recordações que tinha de Cleber criança, e logo elas pareceram se fundir na sua consciência…
Teria imaginado Alex? Olhando a parte de onde o garoto surgia, o local era alto demais para alguém conseguir subir ali, ainda mais do seu tamanho. Mas e as suas refeições? Não achou nenhuma embalagem, mas também o lixo já havia passado, já que naquela avenida era o único local que a coleta era pontual.
Mas a única prova era a roda do triciclo, havia guardado a linha em dentro de uma das porcelanas.
Ficou em frente da televisão, encarou por um tempo o vasinho que havia guardado a linha. Pegou na mão, mas não virou a ponto de ver o conteúdo.
Para que precisava provar se o menino existia ou não? Talvez ele era um reflexo daquele local, aonde não via muito do que havia estudado, mas pensava que logo presenciaria o progresso da privatização daquela região.
Colocou o pote de novo na estante em cima da televisão. Iria esperar por Alex surgir novamente, ou mesmo ouvir o som de um Drone danificado por suas linhas, sempre com um sorriso.
***
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Dissonante desde o momento em que eu bater na sua bigorna.
Escritor do acaso. Na vida amarga, que horas apodrece mais rápido mas também estabiliza no prazer.