O dispositivo – Giorgio Agamben

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. Revista Outra Travessia n. 5, Ilha de Santa Catarina – 2° semestre de 2oo5.

Generalizando posteriormente a já amplíssima classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder e em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – porque não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar.


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Não seria provavelmente errado definir a fase extrema da consolidação capitalista que estamos vivendo como uma gigantesca acumulação e proliferação dos dispositivos. Certamente, desde que apareceu o homo sapiens havia dispositivos, mas dir-se-ia que hoje não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo. De que modo, então, podemos fazer frente a esta situação, qual a estratégia que podemos seguir no nosso corpo-a-corpo cotidiano com os dispositivos? Não se trata simplesmente de destruí-los, nem, como sugerem alguns ingênuos, de usá-los de modo justo.

Por exemplo, vivendo na Itália, isto é, em um país cujos gestos e comportamentos dos indivíduos foram remodelados de cima abaixo pelo telefone celular (chamado familiarmente de “telefonino”), eu desenvolvi um ódio implacável para este dispositivo, que deixou ainda mais abstratas as relações entre as pessoas. Apesar de me surpreender muitas vezes pensando em como destruir ou desativar os “telefoninos” e como eliminar ou ao menos punir e aprisionar aqueles que o usam, não acredito que seja esta a solução justa do problema.

O fato é que com toda a evidencia os dispositivos não são um acidente no qual os homens caíram por acaso, mas eles têm a sua raiz no mesmo processo de “hominização” que tornou “humanos” os animais que classificamos sob a rubrica homo sapiens. o evento que produziu o humano constitui, com efeito, para o vivente, algo assim como uma cisão, que reproduz de algum modo a cisão que a oikonomia introduziu em Deus entre ser e ação. Esta cisão separa o vivente de si mesmo e da relação imediata com o seu ambiente, ou seja, com o que Uexkühl e, depois dele, Heidegger chamam de o círculo receptor-desinibidor. Quebrando ou interrompendo esta relação, produzem-se para o vivente o tédio – isto é, a capacidade de suspender a relação imediata com os desinibidores – e o Aberto, isto e, a possibilidade de conhecer o ente enquanto ente, de construir um mundo. Mas, com essas possibilidades, e dada imediatamente também a possibilidade dos dispositivos que povoam o Aberto com instrumentos, objetos, gadgets, bugigangas e tecnologias de todo tipo. Por meio dos dispositivos, o homem procura fazer girar em vão os comportamentos animais que se separaram dele e assim gozar do Aberto como tal, do ente enquanto ente. Na raiz de cada dispositivo está, deste modo, um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo em uma esfera separada constitui a potencia específica do dispositivo.

 – Giorgio Agamben.

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