“Pretendo beneficiar um filho meu, sim”, respondeu o presidente Jair Bolsonaro sete dias depois de anunciar a indicação de filho mais novo (entre os três que são políticos), o deputado federal (PSC-SP) Eduardo Bolsonaro, para o cargo de embaixador brasileiro em Washington, nos Estados Unidos. “Se puder dar um filé mignon ao meu filho, eu dou”, continuou durante uma transmissão realizada em suas redes sociais.
A declaração, filtrada por uma primeira e simples análise sociológica das condições de cada posição entre as relações de classe brasileiras, se assemelha à situação daquele pai cuja grande adversidade econômica e lembrança negativa na trajetória social recente foi o confisco provisório da poupança — onde se guardava todas as economias de uma família em seus primeiros momentos — decretada pelo presidente Fernando Collor de Mello no início do seu mandato, em 1991. Seus filhos, transeuntes da vida da classe média e membros do núcleo duro da geração millennial — que não consegue sair da casa dos pais — ao mesmo tempo, são, assim, aqueles que precisam torcer moralmente o discurso anterior do “mérito” por meio do trabalho e do esforço individual para validar a ajuda financeira e social paterna que recebem como legítima.
A escolha do chefe do Executivo, no entanto, não é a única etapa para que Eduardo ocupe o cargo: ele precisa convencer a maioria dos 17 integrantes da Comissão de Relações Exteriores do Senado ou, em caso de reprovação, ganhar a autorização via plenário. Segundo Bolsonaro, tudo já foi negociado com o presidente da Casa, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP).
A imprensa brasileira se dividiu entre chamar a indicação de nepotismo, como insinuou a revista Veja, ou em criticar a “sobreposição entre relações familiares e institucionais, abrindo brecha para um entrelaçamento pouco republicano das esferas pública e privada”, segundo editorial da Folha de S. Paulo publicado na sua edição do dia 13 de julho. Periódicos como o Estado de S. Paulo e O Globo também já publicaram artigos criticando, em termos políticos, o governo Bolsonaro, e grandes jornais mundiais, como o britânico The Guardian e o estadunidense The New York Times, viram na decisão de Bolsonaro uma oportunidade de explorar suas críticas latentes ao novo governo brasileiro.
Pouco mais de uma semana antes, o Ibope publicara a última pesquisa de aprovação do governo Jair Bolsonaro: com 32% de pessoas considerando seu governo “bom” ou “ótimo”, ele perdera três pontos em relação a abril, quando o índice era de 35%. No final de junho, outras 32% consideravam o trabalho do presidente “regular” e ainda mais 32% o achavam “péssimo” — é a pior aprovação no primeiro semestre de um governo em primeiro mandato desde a redemocratização do Brasil.
Apesar de somar dados negativos em outras perguntas (51% dos brasileiros não confiam em Bolsonaro e 48% desaprovam sua maneira de governar), a maioria da população vislumbra um futuro melhor com ele: para 39% dos entrevistados, a perspectiva para o restante do seu mandato é “boa” ou “ótima”.
Os dados da pesquisa completa, no entanto, revelam mais: sua aprovação declina conforme se desce na hierarquia das rendas familiares (49% entre as que têm renda mensal de mais de cinco salários mínimos, 42% entre as que têm entre dois e cinco, 29% entre as que têm entre um e dois e 21% entre as que têm até um) e conforme se avança do Sul (52% de “bom” ou “ótimo”), passando pelo Sudeste (35%) até o Nordeste (17%). É também maior entre quem tem ensino superior (37% contra 34% de pessoas com ensino médio completo), entre homens (36% contra 29% de mulheres) e entre jovens (66% das pessoas entre 16 a 34 anos considera o governo Bolsonaro “bom” ou “ótimo” contra 63% dos entrevistados entre 35 a 54 anos) — ainda que esses últimos índices sejam relativamente próximos.
O bolsonarismo como ideia, como define a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, assim, parece ter maior aderência em um eleitorado jovem, masculino, com diploma universitário, bem remunerado e habitante das regiões historicamente mais ricas do país, o Sudeste (onde estão localizadas as duas principais cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro) e o Sul. Logo, trata-se também de um fenômeno de classe (ou melhor dizendo, das classes dominantes, considerando o conceito de “classe” utilizado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu.
Os modos de produção da opinião política
No último capítulo de A Distinção[1], Bourdieu, após empreender toda a teorização dos conceitos de campo, habitus, estilo de vida, gosto, classe e fração de classe, argumenta que, possuidoras de visões de mundo distintas e até antagônicas em certos aspectos, as classes sociais francesas do início da segunda metade do século XX interpretavam os assuntos da política interna e externa do país por meio de princípios diferentes: o ethos, é dizer, a ética, a moral, o costume, ou então a política em si mesma, como “sistema” ou como “linha partidária”. Para ele (considerando sempre os dados de pesquisas feitas na França entre 1960 e 1970),
… para compreender a relação entre o capital escolar e a propensão para responder às questões políticas, não basta levar em consideração a capacidade de compreender o discurso político, de reproduzi-lo, até mesmo, de produzi-lo, que é garantida pelo diploma escolar; convém fazer intervir, também, o sentimento autorizado e incentivado do ponto de vista social – de ter bons motivos para dedicar-se à política, de ser autorizado a falar de política, de ter autoridade para falar politicamente das coisas políticas, implementando uma cultura política específica ou seja, princípios de classificação e de análise explicitamente políticos, em vez de responder pontualmente a partir de princípios éticos. [2]
Para Bourdieu, portanto, “a competência técnica” de falar sobre política é, para a “competência social”, o que a “capacidade de falar é para direito à palavra” (idem). O uso do termo “competência” não aparece à toa na análise bourdieusiana: ele é um conceito sociológico que permite mapear, em uma dada sociedade e em um dado momento, uma certa capacidade sobre alguma possibilidade em jogo — no caso em questão, a possibilidade de falar de política. No contexto das pesquisas utilizadas por ele, ter uma posição propriamente política, isto é, ter o “direito à palavra” (BOURDIEU, 2006, P. 384) era uma condição atrelada aos homens parisienses com ensino superior completo que, por tal posição, sentiam-se prontos para ter uma “opinião autorizada” sobre política. Assim,
À palavra autorizada da competência estatutária, palavra poderosa, que contribui para fazer o que ela diz, responde o silêncio da incompetência não menos estatutária que, vivenciada como incapacidade técnica, condena a delegação, o desapossamento irreconhecido e reconhecido dos menos competentes em favor dos mais competentes, das mulheres em favor dos homens, dos menos instruídos em favor dos mais instruídos, daqueles ‘que não sabem falar’ em favor daqueles ‘que falam bem’.[3]
E no jogo das competências, estabelecia-se, para Bourdieu, uma divisão do trabalho político clivada não apenas pela classe social, mas pelo gênero, isto é, pelas classes dominantes e pelos homens em detrimento às classes dominadas e às mulheres.
Por um lado, aqueles que admitem que a política não lhes diz respeito e que, por serem desprovidos dos meios reais de exercê-los, abdicam dos direitos formais que lhes são reconhecidos. Por outro, aqueles que se sentem no direito de pretender manifestar a ‘opinião pessoal’ ou, até mesmo, a opinião autorizada, atuante, que é monopólio dos competentes: duas representações opostas, mas complementares da divisão do trabalho político que reproduzem nas disposições, práticas e discursos, a divisão objetiva dos ‘poderes’ políticos entre as classes e os sexos, contribuindo, por conseguinte, para reproduzir tal divisão.[4]
Uma das grandes descobertas científicas de Bourdieu na sociedade francesa em questão, a partir disso, foi perceber que havia uma divisão entre os modos de produção da opinião política que, como já dito anteriormente, se distinguiam em três princípios (dos quais apenas dois nos interessam aqui): o “ethos de classe” e o “partido político sistemático”. No primeiro, a interpretação da política era ética, moral, a mesma usada para se estabelecer todas as relações práticas com o mundo, típica das classes empobrecidas e, portanto, dominadas. No segundo, era produzida por meio de um sistema, no sentido teórico do termo, em que era possível controlar a lógica e impetrar uma reflexão, de forma que o seu resultado fosse uma “linha” ou um “programa” no qual todos os julgamentos propriamente políticos se encontrariam. Uma percepção do mundo tendencialmente encontrada nos membros das classes dominantes ou pretensiosas (leia-se, em ascensão).
Nas palavras de Bourdieu, enquanto um princípio era implícito, construído por esquemas de pensamentos e de ação “pré-reflexivos”, o outro era explicitamente político. Ambos estavam ligados às classes sociais, ainda que não mecanicamente (isto é, era dever do sociólogo encontrar sua realização no campo de pesquisa), por intermédio, principalmente, das “condições materiais de existência — cujas urgências vitais se impõem com um rigor desigual, portanto, abonado desigualmente para ‘neutralizar’ do ponto de vista simbólico — e da formação escolar capaz de proporcionar os instrumentos do controle simbólico da prática, ou seja, da verbalização e conceitualização da experiência política”[5].
Na França das décadas de 1960 e 1970, assim, um agricultor interiorano era mais propenso a defender que não se deveria falar sobre sexo com crianças e adolescentes menores de 15 anos do que os empregados e quadros médios parisienses, que respondiam positivamente à questão sobre abordar o tema antes que seus filhos completassem 11 anos. A questão, para Bourdieu, era que nessas reações se encontravam dois modos de produção da opinião distintos: um amparado na moral doméstica popular e outra na “boa vontade cultural a reconhecer […] a norma dominante”[6] das classes mais afastadas das necessidades urgentes. Em outras palavras, o argumento era que, quanto mais se descia no espaço social, ou o que dá no mesmo, quanto mais se chegava perto das urgências materiais da vida, mais a interpretação dos fatos se tornava ética, pré-reflexiva, moral, princípio implícito, não propriamente político, sistemático, reflexivo e esquemático.
O bolsonarismo como fenômeno inverso
No final de abril, em sua coluna na Folha de S. Paulo, o filósofo e professor Pablo Ortellado argumentou que, ao contrário das críticas estruturais ao bolsonarismo, que versavam sobre um argumento central de que toda a mobilização de pautas morais que balizaram sua campanha eleitoral era uma espécie de “disfarce” para a agenda neoliberal de seu projeto de país, cuja expressão máxima era a figura Paulo Guedes, hoje ministro da Economia, o mandato do presidente e o fenômeno social do qual ele é consequência são essencialmente morais. “É um governo conservador que utiliza de maneira acessória e até mesmo oportunista a agenda liberal —e não o contrário”, diz Ortellado.
“Nas eleições, o que vimos foram duas linhas de discurso moral articuladas por uma retórica populista, antielitista: de um lado, críticas à corrupção promovida pelo Partido dos Trabalhadores e outros partidos ‘tradicionais’; de outro, ataques ao discurso progressista dos movimentos sociais que teriam ocupado escolas, universidades, os meios de comunicação, as ONGs e as artes. É contra essas mal definidas elites políticas e culturais que a mobilização conservadora se articulou. Essa é a essência política do governo, e não as reformas liberais”, continua o filósofo.
Ortellado, porém, ainda não chegou a responder a questão sobre quem são os receptores atuais dessas “linhas de discurso moral articuladas” de Bolsonaro, e Rosana Pinheiro-Machado, em uma entrevista concedida a mim durante as eleições do ano passado, sugeriu que se tratava de um “homem branco que sempre sustentou a família e que agora está se sentindo frustrado, que acha que o problema é dar tudo para as minorias, mas ainda assim é um sujeito negociável” — um perfil que, levando em conta os dados do Ibope de junho, não se sustenta mais, ainda que tenha algum sentido considerando o contexto da campanha eleitoral. O bolsonarismo em seu formato atual segue masculino, mas é sobretudo um fenômeno de classe médias sudestinas e sulistas que, ao contrário do que Bourdieu encontrou na França, mas mantendo sua divisão analítica, têm um modo de produção da opinião política baseado nos princípios implícitos, isto é, interpretam os fatos políticos por meio de um ethos, não da reflexão estritamente política.
Não foi, porém, o que aconteceu nos momentos finais dos governos petistas: em episódios homólogos ao de Eduardo Bolsonaro e a embaixada em Washington, como a nomeação de Luís Inácio Lula da Silva para a Casa Civil pela então presidente Dilma Rousseff, em abril de 2016, a interpretação da decisão foi explicitamente política. O argumento latente presente nas reportagens dos jornais e, posteriormente, manifesto na voracidade da oposição à nomeação, era que ele se tornaria ministro de Estado apenas para ganhasse o foro privilegiado do cargo e, por consequência, não fosse preso (o que estava na iminência de acontecer). O próprio julgamento social do impeachment de Dilma foi político — tão político que, retirada do cargo por um crime passível de discussão jurídica pela sua recorrência nas práticas do Executivo, ao fim do processo institucional ela não perdeu seus direitos políticos, uma punição que seria a consequência imediata da infração política cometida. Naqueles meses anteriores à queda da presidente, a grande imprensa do país pautou todas as reações sociais às decisões tomadas pelo governo por meio de produtos políticos no duplo sentido do termo — as reportagens tinham intenções e interesses políticos e eram mercadorias sobre política — que eram da mesma forma recebidos.
Pode-se argumentar, ainda que superficialmente, que a interpretação propriamente política de episódios como esses nas vésperas do fim do petismo foi apenas uma estratégia — um blefe, como diz Bourdieu — das mesmas classes e frações de classe para justificar uma recusa que era essencialmente moral. Uma prova dessa afirmação, talvez, seja o discurso da então professora de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Janaína Paschoal, em abril de 2016, quando se referiu à presidente como “cobra” — um dos momentos mais controversos daquele período. Dias depois, em entrevista ao jornal O Globo, ela precisou esclarecer que não era “pastora” evangélica nem estava “possuída”.
É dizer, portanto, que ao contrário do que Bourdieu notou em suas pesquisas da França dos anos 1960 e 1970, no Brasil de agora há uma inversão dos modos de produção da opinião política: a classe que sustenta o bolsonarismo, tanto a ideia social como o projeto político, e que interpreta a política por princípios implícitos, pré-reflexivos, éticos, morais, os mesmos utilizados para mensurar todas as práticas do cotidiano, não é aquela em que estão os mais pobres, os estratos populares, mas sim uma classe com volumes significativos de capitais escolar e econômico. Ao contrário, no espectro brasileiro momentâneo, considerando os dados do Ibope, os mais empobrecidos são justamente aqueles que tendem a se opor ao bolsonarismo — o que não significa que eles interpretem os fatos políticos necessariamente em termos políticos.
É para uma base social mais distante das ‘urgências materiais”, que hoje representa um terço da aprovação e pode se expandir para aqueles que consideram o governo “regular”, que Jair Bolsonaro ocupa o mesmo lugar que o colocou no topo da campanha eleitoral: o de “mito” (cuja imagem, aliás, é moral, porque mitos não são reais e muito menos políticos profissionais). Ou como diz Ortellado, espantado, em outro artigo de sua mesma coluna, ao invés de pedir desculpas pelas declarações e atitudes politicamente polêmicas dos últimos meses, Bolsonaro “parece divertir-se com a indignação que causa — e uma parte do seu público também”.
“Cada vez que Bolsonaro faz uma provocação, a reação de revolta é recebida pelos seus seguidores com uma espécie de júbilo de triunfo. Se os bandidos, os corruptos, os vagabundos ou os comunistas desgostaram, deve ser porque o governo está no rumo certo. Por isso, a indignação e o protesto dos descontentes de sempre têm pouco efeito prático sobre o governo e sobre a base mais fiel de Bolsonaro”, escreveu Ortellado.
A “base mais fiel de Bolsonaro”, neste momento, usa lentes muito específicas para observar o mundo: aquelas mesmas que, prontas para ver na indicação do filho do presidente à embaixada brasileira mais estratégica legitimidades tanto política e moral, só resolveu colocar estes óculos porque eles lhe permitiram validar o que, a olho nu, lhes era politicamente indefensável.
Referências
[1] BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP, 2006.
[2] BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento… p. 382-383.
[3] BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento… p. 387.
[4] BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento… p. 388.
[5] BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento… p. 392.
[6] BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento… p. 393.
É jornalista e cientista social. Atualmente é mestrando do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Escreve também no blog Arimandia.
Mon ami, na minha lente, estamos num estado de total anomia. Esse desclassificado eleito presidente representa uma nação de acéfalos que custei a crer que existisse, mas é isso, existe!
Se cremos no que ouvimos e lemos nas mídias sociais, damos vida àquilo que cremos, trazemos à luz o que o inconsciente nos reservava, logo, os clamores superficiais irrefletidos se materializam, tudo pela voz de um só elemento despretensioso de qualquer noção de coletividade e afinado no discurso das mídias sociais mais rasas.
Um tolo não tem compromisso com nada, um sábio é comprometido com a busca da verdade, o sábio morre nesse esforço, o tolo vibra e se assenta no lugar do sábio dizendo, chegou a minha vez, essa é a verdade.
Z.P
Professora