O Outro negro, por Achille Mbembe – DROPS #48

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo, SP: N-1 edições, 2020, p. 133-135.

Passemos às formas de sofrimento que o racismo produz. A que tipos de tormentos são expostos os que são alvo de racismo sob as diferentes formas que acabamos de enumerar? Como podemos caracterizar as feridas que lhes são infligidas, as pragas com que são assolados, os traumas que sofrem e o tipo de loucura que vivenciam? Responder a essas perguntas exige que analisemos de perto a maneira como o racismo opera e constitui a partir de dentro o sujeito exposto à sua fúria.


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Antes de mais nada, o sujeito racializado é o produto do desejo de uma força externa a si mesmo, que não foi escolhida por ele, mas que paradoxalmente inicia e sustenta o seu ser. Grande parte do sofrimento descrito por Fanon se deve ao acolhimento que o sujeito oferece a essa força externa, que, ao fazê-lo, se converte em momento constitutivo de sua inauguração. Essa constituição do sujeito no desejo de subordinação é uma das modalidades específicas, internalizadas, da dominação racial. Deve-se, ademais, levar a sério o processe pelo qual o sujeito colonial se volta contra si mesmo e se emancipa das condições do seu surgimento na sujeição e por meio dela. A vida psíquica está fortemente implicada nesse processo de emancipação, que, para Fanon, deriva naturalmente de uma prática absoluta da violência e de um processo de extração de si mesmo, se necessário, pela via da insurreição.

Em seguida, ser reduzido ao estado de sujeito racial é se colocar desde o início na posição do Outro. O Outro é aquele que deve, a todo momento, provar aos outros que é um ser humano, que merece ser considerado seu semelhante; que é, como Fanon nunca deixa de repetir, “um homem igual aos outros”, “um homem como os outros”, que é como nós, que é um de nós, que é dos nossos. Ser o Outro é sentir-se sempre em uma posição instável. A tragédia do Outro é que, por causa dessa instabilidade, o Outro está constantemente em alerta. Ele vive na expectativa de um repúdio. Faz de tudo para que isso não aconteça, sabendo que necessariamente vai acontecer e em um momento que ele não tem como controlar.

Em vista disso, ele tem medo de se mostrar como realmente é, preferindo o disfarce e a dissimulação à autenticidade, e convencido de que deve se envergonhar de sua existência. Seu ego é um nó de conflitos. Cindido e incapaz de enfrentar o mundo, como poderia realizar sua moldagem? Como poderia tentar habitá-lo? “Queria simplesmente ser um homem entre outros homens. [,,,] Queria ser homem, nada mais do que um homem”. E eis que “me descubro objeto em meio a outros objetos”. o desejo de ser um homem entre outros homens é frustrado pela decretação da diferença. Do sujeito racial, ou seja, definido pela diferença, o racismo exige uma “conduta de negro”, quer dizer, a de um homem à parte, pois negro representa essa parcela dos homens que são mantidos à parte – a parte à parte. Constituem uma espécie de resto, compelido à desonra e à desgraça.

Corpo-objeto, sujeito no objeto, de que tipo de objeto estamos falando? Trata-se de um objeto real e material, como móvel? Serão imagens de objetos – o negro como máscara? Ou será um objeto espectral e fantasmático, no limite do desejo e do pavor – o fantasma do negro que me viola, me chicoteia e me faz gritar, sem que eu saiba exatamente se é um grito de prazer ou de pavor? Sem dúvida, é tudo isso de uma só vez e, mais ainda, objetos parciais, membros desconjuntados, que, em vez de formarem um corpo, emergem não se sabe de onde: “Meu corpo era devolvido desancado, desconjuntado, demolido, todo enlutado, naquele dia branco de inverno”.

Luto de inverno nesse dia branco, branco de inverno nesse dia de luto, num lugar vazio, o tempo de uma evisceração, e a cortina se fecha. A pessoa humana essencial, testemunha de sua dissolução em coisa, é subitamente despojada de qualquer substancialidade humana e encerrada em uma esmagadora objetalidade. O Outro “fixou-me” “como se fixa uma solução com um estabilizador”. Eis-me aqui, o “sangue coagulado”, prisioneiro do círculo infernal. Uma instância representativa do “branco” tomou o meu lugar e fez da minha consciência o seu objeto. De agora em diante, essa instância respira por mim, pensa por mim, fala por mim, vigia a mim, age por mim. Ao mesmo tempo, essa instância mestra tem medo de mim. Nela trago à tona todos os sentimentos sombrios enterrados nas penumbras da cultura – terror e horror, ódio, desprezo e injúria. A instância mestra imagina que eu a poderia sujeitar às mais variadas sevícias degradantes, possivelmente as mesmas que ela me inflige. Alimento nela um termo ansioso, que deriva não do meu desejo de vingança, muito menos da minha ira ou da raiva impotente que me habita, mas do estatuto de objeto fobígeno com que ela me adornou. Ela tem medo de mim não pelo que lhe fiz, nem pelo que lhe dei a ver, mas por conta do que ela me fez e que ela pensa que eu poderia fazer a ela em retribuição.

As formações racistas são, assim, por definição, produtoras e redistribuidoras das mais diversas loucuras miniaturizadas. Contêm em si núcleos incandescentes de uma loucura que se esforçam para liberar as doses celulares, na forma de neurose, psicose, delírio e até mesmo erotismo. Ao mesmo tempo, secretam situações objetivas de loucura, que envolvem e estruturam toda a existência social. Estando todos presos nas tramas dessa violência, em seus diversos espelhos, ou em suas diferentes refrações, todos são, em graus variados, sobreviventes dela. O fato de estar de um lado ou do outro não significa de modo algum que se esteja de fora do campo ou impedido de jogar, longe disso.

 – Achille Mbembe.


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