Da série Contos de uma São Paulo Privada
Ilustrações feitas com Giz Pastel.
Dos prédios ocupados pelas empresas de moradias da Repartição, o Ori ou Biro, originalmente Oriente, era talvez o que mais representava a decadência daqueles tempos efêmeros.
As leis de imóveis nas Áreas de Fragilidade Econômica estipulavam que os edifícios particulares deviam ser leiloados caso não houvesse nenhuma atividade no imóvel em um período de quinze anos. Com isso, a Repartição ativava seu departamento de moradia para mover pessoas sem uma casa para os edifícios, e costurava alguns acordos com os donos originais do imóvel.
Mas o problema era que todos os edifícios sofriam esse processo, sendo para moradia ou não. E o Ori era um dos menos preparados. O edifício numero 500 foi por muitos anos um shopping Center na Rua Oriente, na região do Brás. Depois de um alguns anos virou uma agencia de investigação para crimes na internet, chamada de Bureau.
Depois que a Repartição tomou conta daquela parte de São Paulo, o imóvel estava há quase vinte anos fechado.
Como não havia estrutura para a moradia, uma minúscula empresa de São Caetano do Sul que trabalhava com reutilização de pallets para móveis e casas foi contratada para fazer pequenas residências, com cozinha/sala, banheiro e quarto. Todas foram pintadas com um cinza quase branco, e portas laranja de plástico. Eram como vários caixotes colocados em uma estante estreita.
Com alguns anos da inauguração, as portas já haviam sido trocadas, alguns colocaram grandes obeliscos de ferro com muitos trincos, os que não tinham condição, deixaram do mesmo jeito, caso ainda existisse, ou apenas colocaram uma cortina.
Os habitantes no inicio eram na maioria imigrantes vindos da Botsuana, Grécia e Venezuela. Mas com o tempo as casas começaram a ser alugadas pelos próprios moradores, que iam para lugares com melhores condições de vida.
Um corpo estranho
Venceslau morava na ultima casa do segundo andar. Pagava aluguel para uma senhora Grega que agora vivia em um dos blocos do Edifício IV Centenário, na Praça da Republica. A senhora alta de cabelos azuis sempre lhe mandava uma mensagem uma semana antes do dia combinado para o pagamento, informando o despejo caso não quitasse o aluguel, que estava sempre em ordem.
Conseguiu se afastar por seis meses até que conseguisse se acostumar com a sua prótese. Na verdade a licença fora um acordo para que não processasse o frigorifico que trabalhava na Rua Angélica.
Foi mandado por Josias, seu chefe, desentupir um moedor de carne. Teve que empurrar com a perna uma costela que travou as engrenagens. Apesar da cena de filme de terror estar estabelecida, a perda da perna foi porque a maquina, calçada com tijolos, desabou, e caiu em cima da perna esquerda de Venceslau.
Josias, que nunca tinha ido com a sua cara, demorou muito para chamar uma ambulância, já que todos os aparelhos celulares eram recolhidos na entrada, e apenas devolvidos na hora do almoço e saída.
Além da licença, o setor de Recursos Humanos lhe conseguiu uma prótese Bio-Hidráulica, e dois meses de medicamento para a adaptação. Os psicotrópicos eram necessários para que o corpo reconhecesse o novo membro e, com isso, auxiliasse os nervos do toco conectados ao da prótese a “se entenderem”, como disse a Doutora.
Mas a adaptação era algo horrível. Sentia fortes enjoo e espasmos das partes originais do corpo. E às vezes tinha a sensação de que haviam nascido outros dedos e membros. Isso lhe causou horríveis síndromes, tinha pânico de sair de casa às vezes, não atendia a porta se fosse um estranho e se irritava muito facilmente. A prótese exalava um cheiro estranho, como furos de brinco ou alargador no corpo, que empesteava o local.
Emagreceu oito quilos, pois só se alimentava de bolachas de arroz e refrigerante de laranja, vinho ou qualquer coisa engarrafada, pois não tinha um filtro para a água cor de sangue que saiu dos encanamentos.
Olhava pelas frestas das madeiras, a janela para o lado de fora. Dava uns poucos trocados para que o filho de seu vizinho, um menino descendente de indígena com olhos espertos chamado Vlads, lhe comprasse algumas coisas de necessidade básica. Ficava na internet o dia todo, enganando seus parentes de Itu com noticias alegres a respeito da vida.
Há três meses naquela situação, havia conseguido um contato que iria vender um revolver Colt Python 357 Magnum impresso em carbono. O homem havia prometido passar em sua casa dentro de três dias.
Venceslau planejava matar Josias.
A senhora do Corredor
No inicio do segundo andar, todas as pessoas que chegavam pelas escadas, tinham sempre que desviar de Yuri, mas sempre com um sorriso obrigatório.
Pesava cento e cinco quilos. Tinha conseguido engordar tanto devido ao fim do seu relacionamento com Nestor, há quase três anos. Ficava a manhã e tarde toda sentada, cuidando de seu negócio no segundo apartamento. Conseguiu um esquema com um programador que desviava drones entregadores de farmácia. Pílulas para Alzheimer, Sífilis, analgésicos… Qualquer pessoa que não tinha simpatia com a política de injeções publica podia muito bem chegar ao Ori e comprar a grama, mais barato que nas farmácias da elite.
Deixava seu irmão mais velho cuidando dos negócios. Ramon era mais habilidoso com os trabalhos manuais, facilitando a pesagem e embalagem das mercadorias. Ainda era ele que descia para levar a propina para a Recon toda a semana.
Como ficava mais no corredor, raramente tirava a camisa já mega desbotada e com as golas cortadas, de um filme de ficção cientifica de décadas passadas, do qual Yuri nunca havia assistido. Ramon a buscava em sua casa no Bairro do Ipiranga, então às vezes só se dava ao trabalho de vestir a camisa velha e seus sapatos de borracha laranja. Deixava o celular entre os peitos, preso com o sutiã, que era necessário já que havia herdado o tamanho dos de sua avó, nascida em La Paz.
Embaixo da velha carteira escolar na qual ficava sentada o dia todo, deixava sua submetralhadora Tec-9 de um modo que pudesse puxa- la rapidamente. Teve que sacar a arma poucas vezes, na maioria quando precisar expulsar algum ansioso-depressivo em abstinência, tendo crises agressivas e nervosas.
Sempre tinha alguém para ficar conversando durante o seu expediente, era algum cliente esperando Ramon lhe entregar as suas compras ou um morador que parava para falar sobre algum vídeo bizarro que foi enviado para o grupo do prédio nos aplicativos de mensagem.
Quando chegava a sexta feira a noite, Yuri era levada pelo seu irmão para casa, que voltava para o Ori para ficar cuidando dos negócios no fim de semana, e ai depois de fazer as contas de quanto havia sido a renda da semana, tomava um banho longo e se arrumava lindamente pela primeira vez na semana.
Parecia totalmente diferente, usando suas roupas caras e sapatos importados, no fim de semana. Dando festas lotadas ou indo a baladas que viraram os dias até o domingo à noite, quando desabava na sua cama de casal para outra semana de serviço. Voltando a ser o obstáculo no inicio do segundo andar.
Dormindo em uma parte do seu armário
Desde o começo da utilização do Ori como edifício de moradia, o Multi milionário Fabio Geraldo, dono de uma enorme rede na internet de revenda de veículos importados, se interessou muito pela obra. Desde viu no site da Repartição sobre esse projeto, entrou em contato imediatamente para comprar um quarto ali em sigilo, enquanto o edifício ficasse como um imóvel de moradia.
Seis anos após o falecimento de Fabio Geraldo, sua filha do meio Lucia, revisitava o local, perplexa. Um dos pedidos de seu pai no testamento era que apagasse tudo relacionado a ele da internet. Não quem era ou sua história, o que naqueles tempos não era um serviço mais tão difícil como há muitas décadas atrás, mas sim suas contas de e-mail, redes sociais, bancos online e coisas desse tipo. Deixou uma extensa lista com todos os seus endereços.
O seu filho mais velho, Fabio Geraldo Filho era encarregado de realizar o pedido, mas talvez seu pai havia previsto que sua morte iria causar uma paz na conturbada relação que sempre tiveram, o que não acabou acontecendo, sobrando para Lucia realizar o serviço.
Apagou tudo, menos um e-mail que acabou deixando para realizar depois, devido a complexidade exaustiva de paginas e mais paginas de feedbacks obrigatórios que o servidor pedia para fazer a exclusão da conta, e dado a rotina frenética que estava por administrar os negócios, decidiu fazer quando estivesse mais tranquila.
E quando finalmente se preparou mentalmente, uma mensagem de uma IACAB (Inteligência Artificial de Contabilidade e Análise de Balanço) ,requisitando uma nova conta para os débitos automáticos do endereço, apareceu.
Ficou intrigado, pois nunca tinha ouvido falar daquela aquisição de seu Pai, e levando em vista quando vislumbrou a sacada do Ori pela primeira vez, não fazia a mínima ideia por que ele iria frequentar aquele lugar.
Era na ultima casa do primeiro andar, um lugar minúsculo e abafado, além de extremamente inquieto, pois a pessoa que morava em cima da sua casa fazia muito barulho andando de um lado para o outro. Havia apenas uma cama simples, que devido ao sol que entrava pelas frestas das madeiras, não tinha nenhum cheiro de bolor ou algo parecido, mesmo com o tempo que o lugar estava fechado.
Sentada na cama, olhava o lugar vazio, imaginando o que seu pai fazia por lá. Será que levava alguma amante para o local? Talvez não, seu pai não fazia o tipo de pessoa que fazia isso, o que também automaticamente o tornava alguém com potencial.
Logo, começou a imaginar coisas mais sérias. E se ele usava aquele lugar para fazer uso de drogas? Ou mesmo realizar algum fetiche bizarro, como se vestir de cachorro e beber a água laranja da privada. E se fosse um Serial Killer que levava suas vitimas ali para tortura-las e depois comer seus corpos?
Enxergou uma mancha escura no chão! Seria sangue? Esperma? Fezes?
Quando uma imagem de seu pai, aquele senhor calvo e simpático, lambuzado de um dessas substancia surgiu, me sentiu um pouco zonza e deitou-se na cama.
Olhando para o teto escuro, ficou uns minutos encarando-o.
Apesar de todas as bizarras possibilidades que imaginou, agora que estava deitada ali sentia uma tranquilidade quase desconhecida. O tamanho, o calor e o barulho não incomodavam tanto como a vida quase sem intervalos. Talvez, e se sentiu culpada por essa ser a ultima, porém mais inocente das coisas que imaginou, seu pai tenha adquirido aquele lugar para ficar exatamente como estava naquele momento, longe de todos. Sozinha e calma.
Continuou a pagar as contas do local.
***
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Dissonante desde o momento em que eu bater na sua bigorna.
Escritor do acaso. Na vida amarga, que horas apodrece mais rápido mas também estabiliza no prazer.