Da série “O Anticristo“.
Uma diferença sutil que Friedrich Nietzsche quer deixar claro em O Anticristo é em respeito ao que homem crê (crença, aqui, em seu sentido religioso) e ao que o homem combate (num sentido moral). O autor não está procurando converter alguém para um ateísmo simples ou para uma nova religião – o combate que Nietzsche trava em seu livro não é contra alguma crença em específico ou contra um homem, mas contra um sistema moral que conduz o homem para o caminho inverso dos seus instintos vitais (a vida, a vontade, a vitalidade) e torna os homens com um bom instinto vital impedidos de se tornarem mais fortes ao elevar a fraqueza como algo bom e os fracos ao controle.
Dessa forma, de nada vale um cristão converter-se ateu se ele não superar a moral cristã e os valores que dela acompanham – isso seria equivalente a superar quase nada ou mesmo coisa alguma: uma moral pode mudar suas formas, mas seu sistema continuar intacto. A ciência e o cristianismo podem ter efeitos parecidos sob este ponto de vista: tranformar as pessoas em massa, manter um certo tipo de consciência dócil, reprimir a expansão da potência, tornar a vida uma trajetória para a dor.
O próprio cristianismo, para Nietzsche, é uma reconfiguração do platonismo para as massas. O ateísmo, então, não é uma luta contra Deus, mas é uma tentativa de superação da moral dos fracos, uma tentativa de superação da vida que reprime a vontade de potência. Assim, aquilo que diferencia o homem superior não é seu ateísmo, mas sua luta contra a valoração do danoso contra a vida, figurado na religião cristã:
O que nos distingue não é o fato de não encontrarmos nenhum deus na história, nem na natureza, nem atrás da natureza – mas que não consideramos “divino” aquilo que foi venerado como deus, e sim como deplorável, absurdo, danoso, não apenas como erro, mas como crime contra a vida… [1]
O fato de não ser o ateísmo aquilo que destaca os homens, mas sim suas ações morais, Nietzsche dá como exemplo Otto von Bismarck e Guilherme II, dois homens “grandes”, que superaram a moral dos fracos, e que ainda se dizem cristãos.
Onde foi parar o último sentimento de decência, de respeito por si mesmo, se até nossos estadistas, usualmente homens de uma espécie muito desenvolta e anticristão resolutos da cabeça aos pés, ainda hoje se denominam cristãos e tomam parte na Santa Ceia? …Um jovem príncipe, à frente de seus regimentos, magnífico como expressão do egoísmo e da petulância de seu povo – mas, sem qualquer vergonha, confessando-se cristão!… [2]
Da mesma forma, é possível traçar o caminho inverso:
Não é uma “fé” que distingue o cristão: o cristão age, ele se distingue por agir de um outro modo. Ele não opõe resistência, nem com palavras nem em seu coração, a qual lhe quer mal [3]
Nietzsche está tratando de condutas, e não de fé. Da mesma forma com que o cristianismo – uma “rebelião dos escravos” – só se converteu em instrumento de dominação (Igreja) a partir do momento em que inverteu os valores – aquilo que era forte (a moral aristocrática dos gregos e dos romanos) virou algo pecaminoso e aquilo que era fraco (o cristianismo, que possuía forte presença entre os povos dominados e das classes baixas) foi tornado algo elevado, Nietzsche está buscando uma des-valoração, e isso não é possível fazer apenas declarando-se ateu: é preciso superar a moral dos fracos – e nisso, de nada adianta ser um “ateu cristão”, mas um guerreiro dos valores.
Não subestimemos o seguinte: nós próprios, nós, espíritos livres, já somos uma “transvaloração de todos os valores”, uma declaração: em pessoa, de guerra e de vitória a todos os velhos conceitos de “verdadeiro” e “falso” [4]
Nietzsche é a negação da negação da vida: é o oposto dos teólogos e de “tudo que tem teólogo no corpo”[5] – Nietzsche é “anti” por essência: é necessário negar o cristianismo, mas também a Platão e aquilo que foi escanteado pela filosofia socrática, buscando – posteriormente – criar o novo.
A criação do novo é, necessariamente, a criação de si enquanto novo sujeito, a criação de si enquanto nova forma de existência e enquanto superação da antiga.
Referências
[1] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 88.
[2] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p. 70.
[3] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p. 62
[4] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p. 27
[5] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. p. 21
Publicado originalmente em 2016. Atualizado em 2024.
Estudante de Letras (Habilitação: Linguística/Português) e marxista.